terça-feira, 12 de abril de 2011

Antes de Nascer o Mundo (Fragmentos)

A primeira vez que vi uma mulher tinha onze anos e me surpreendi subitamente tão desarmado que desabei em lágrimas. Eu vivia num ermo habitado apenas por cinco homens. Meu pai dera um nome ao lugarejo. Simplesmente chamado assim: "Jesusalém". Aquela era a terra onde Jesus haveria de se descrucificar. E pronto, final.

Meu velho, Silvestre Vitalício, nos explicara que o mundo terminara e nós éramos os últimos sobreviventes. Depois do horizonte, figuravam apenas territórios sem vida que ele vagamente designava por "Lado-de-Lá". Em poucas palavras, o inteiro planeta se resumia assim: despido de gente, sem estradas e sem pegada de bicho. Nessas longínquas paragens, até as almas penadas já se haviam extinto.

Em contrapartida, em Jesusalém, não havia senão vivos.Desconhecedores do que fosse saudade ou esperança, mas gente vivente. Ali existíamos tão sós que nem doença sofríamos e eu acreditava que éramos imortais. À nossa volta, apenas os bichos e as plantas morriam. E, nas estiagens, desfalecia de mentira o nosso rio sem nome, um riacho que corria nas traseiras do acampamento.

A humanidade era eu, meu pai, meu irmão Ntunzi e Zacaria Kalash, nosso serviçal que, conforme verão, nem presença tinha. E mais nenhum ninguém. Ou quase nenhum. Para dizer a verdade, esqueci-me de dois semi-habitantes: a jumenta Jezibela, tão humana que afogava os devaneios sexuais de meu velho pai. E também não referi o meu Tio Aproximado.Esse parente vale uma menção: porque ele não vivia connosco no acampamento. Morava junto ao portão de entrada da coutada, para além da permissível distância, e apenas nos visitava de quando em quando. Entre nós e a sua cabana ficava a lonjura de horas e feras.

Para nós, os miúdos, a chegada de Aproximado era razão de festa maior, uma sacudidela na nossa árida monotonia. O Tio trazia mantimentos, roupas, bens de necessidade. Meu pai, nervoso, saía ao encontro do camião onde se amontoavam as encomendas. Interceptava o visitante antes que o veículo invadisse a vedação que circundava o casario. Nessa cerca, Aproximado era forçado a lavar-se para não trazer contaminações da cidade. Lavava-se com terra e com água, fizesse frio ou fizesse noite. Depois do banho, Silvestre desbagageava o camião, apressando as entregas, abreviando as despedidas. Num volátil instante,mais breve que um bater de asas, ante o nosso olhar angustiado, Aproximado voltava a extinguir-se para além do horizonte.

- Ele não é um irmão directo - justificava Silvestre. - Não quero muita conversa, esse homem não conhece os nossos costumes.

Essa humanidadezita, unida como os cinco dedos, estava afinal dividida: meu pai, o Tio e Zacaria tinham pele escura; eu e Ntunzi éramos igualmente negros, mas de pele mais clara.

- Somos de outra raça? - perguntei um dia. Meu pai respondeu:

- Ninguém é de uma raça. As raças- disse ele - são fardas que vestimos.
Talvez Silvestre tivesse razão. Mas eu aprendi, tarde demais, que essa farda se cola, às vezes, à alma dos homens.

- Vem de sua mãe, Dordalma, essa claridade da pele. Alminha era um bocadinho mulata - esclareceu o Tio.

A família, a escola, os outros, todos elegem em nós uma centelha promissora, um território em que poderemos brilhar. Uns nasceram para cantar, outros para dançar, outros nasceram simplesmente para serem outros. Eu nasci para estar calado.Minha única vocação é o silêncio. Foi meu pai que me explicou: tenho inclinação para não falar,um talento para apurar silêncios.Escrevo bem, silêncios, no plural. Sim, porque não há um único silêncio. E todo o silêncio é música em estado de gravidez.

Quando me viam, parado e recatado, no meu invisível recanto, eu não estava pasmado. Estava desempenhado, de alma e corpo ocupados: tecia os delicados fios com que se fabrica a quietude. Eu era um afinador de silêncios.

- Venha, meu filho, venha ajudar-me a ficar calado.

Ao fim do dia, o velho se recostava na cadeira da varanda. E era assim todas as noites: me sentava a seus pés, olhando as estrelas no alto do escuro. Meu pai fechava os olhos, a cabeça meneando para cá e para lá, como se um compasso guiasse aquele sossego. Depois, ele inspirava fundo e dizia:


- Este é o silêncio mais bonito que escutei até hoje. Lhe agradeço, Mwanito.

Ficar devidamente calado requer anos de prática. Em mim, era um dom natural, herança de algum antepassado.Talvez fosse legado de minha mãe,Dona Dordalma,quem podia ter a certeza? De tão calada,ela deixara de existir e nem se notara que já não vivia entre nós, os vigentes viventes.


- Você sabe, filho: há a calmaria dos cemitérios. Mas o sossego desta varanda é diferente.

Meu pai. A voz dele era tão discreta que parecia apenas uma outra variedade de silêncio.Tossicava e a tosse rouca dele, essa, era uma oculta fala, sem palavras nem gramática.


Ao longe, se entrevia, na janela da casa anexa, uma bruxuleante lamparina. Por certo, meu irmão nos espreitava. Uma culpa me raspava o peito: eu era o escolhido, o único a partilhar proximidades com o nosso eterno progenitor.
*Mia Couto

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