segunda-feira, 29 de março de 2010

Heidegger e a Metafísica

Mas agora devemos dar finalmente a palavra a uma objeção já por tempo demasiado reprimida. Se o ser-aí somente pode entrar em relação com o ente enquanto está suspenso no nada, se, portanto, somente assim pode existir e se o nada somente se revela originalmente na angústia, não devemos nós então pairar constantemente nesta angústia para, afinal, podermos existir? Não reconhecemos nós mesmos que esta angústia originária é rara? Mas, antes disso, está fora de dúvida que todos nós existimos e nos relacionamos com o ente — tanto aquele ente que somos como aquele que não somos — sem esta angústia. Não é ela uma invenção arbitrária e o nada a ela atribuído um exagero? Entretanto, o que quer dizer: esta angústia originária somente acontece em raros momentos? Não outra coisa que: o nada nos é primeiramente e o mais das vezes dissimulado em sua originariedade.

E por quê? Pelo fato de nos perdemos, de determinada maneira, absolutamente junto ao ente. Quanto mais nos voltamos para o ente em nossas ocupações, tanto menos nós o deixamos enquanto tal, e tanto mais nos afastamos do nada. E tanto mais seguramente nos jogamos na pública superfície do ser-aí. E, contudo, é este constante, ainda que ambíguo desvio do nada, em certos limites, seu mais próprio sentido. Ele, o nada em seu nadificar, nos remete justamente ao ente. O nada modificada ininterruptamente sem que nós propriamente saibamos algo desta nadificação pelo conhecimento no qual nos movemos cotidianamente.

O que testemunha, de modo mais convincente, a constante e difundida, ainda que dissimulada, revelação do nada em nosso ser-aí, que a negação? Mas, de nenhum modo, esta aproxima o ‘não”, como meio de distinção e oposição do que é dado, para, por assim dizer, colocá-lo entre ambos. Como poderia a negação também produzir por si o ‘não” se ela somente pode negar se lhe foi previamente dado algo que pode ser negado? Como pode, entretanto, ser descoberto algo que pode ser negado e que deve sê-lo enquanto afetado pelo “não” se não fosse realidade que todo o pensamento enquanto tal, já de antemão, tem visado ao ‘não”? Mas o “não” somente pode revelar-se quando sua origem, o nadifícar do nada em geral e com isto o próprio nada foram arrancados de seu velamento. O “não” não surge pela negação, mas a negação se funda no “não” que, por sua vez, se origina do nadificar do nada. Mas a negação é também apenas um modo de uma revelação nadificadora, isto quer dizer, previa mente fundado no nadificar do nada. Com isto está demonstrada, em seus elementos básicos, a tese acima: o nada é a origem da negação e não vice-versa, a negação a origem do nada. Se assim se rompe o poder do entendimento no campo da interrogação pelo nada e pelo ser, então se decide também, com isto, o destino do domínio da “lógica” no seio da filosofia. A idéia da “lógica” mesma se dissolve no redemoinho de uma interrogação mais originária.

Por muito e diversamente que a negação — expressamente ou não — atravesse todo o pensamento, ela, de nenhum modo, por si só, é o testemunho válido para a revelação do nada pertencente essencialmente ao ser-aí. Pois a negação não pode ser proclamada nem o único, nem mesmo o comportamento nadificador condutor, pelo qual o ser-aí é sacudido pelo nadificar do nada. Mais abissal que a pura conveniência da negação pensante é a dureza da contraatividade e a agudeza da execração. Mais esponsável é a dor da frustração e a inclemência do proibir. Mais importuna é a aspereza da privação.

Estas possibilidades do comportamento nadificador — forças em que o ser-aí sustenta seu estar-jogado, ainda que não o domine - não são modos de pura negação. Mas isto não as impede de se expressar no “não e na negação. Através delas é que se trai, sem dúvida, de modo mais radical, o vazio e a amplidão da negação. Este estar o ser-aí totalmente perpassado pelo comportamento nadificador testemunha a constante e, sem dúvida, obscurecida revelação do nada, que somente a angústia originariamente desvela. Nisto, porém, está: esta originária angústia é o mais das vezes sufocada no ser-aí. A angústia está aí. Ela apenas dorme. Seu hálito palpita sem cessar através do seraí: mas raramente seu tremor perpassa a medrosa e imperceptível atitude do seraí agitado envolvido pelo “sim, sim” e pelo “não, não”; bem mais cedo perpassa o ser-aí senhor de si mesmo; com maior certeza surpreende, com seu estremecimento, o ser-aí radicalmente audaz. Mas, no último caso, somente acontece originado por aquilo por que o ser-aí se prodigaliza, para assim conservar-lhe a derradeira grandeza.

A angústia do audaz não tolera nenhuma contraposição à alegria ou mesmo à agradável diversão do tranqüilo abandonar-se à deriva. Ela situa-se — aquém de tais posições — na secreta aliança da serenidade e doçura do anelo criador. A angústia originária pode despertar a qualquer momento no ser-aí. Para isto ela não necessita ser despertada por um acontecimento inusitado. À profundidade de seu imperar corresponde paradoxalmente a insignificância do elemento que pode provocá-la. Ela está continuamente à espreita e, contudo, apenas raramente salta sobre nós para arrastar-nos à situação em que nos sentimos suspensos.
*Martin Heidegger

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