quinta-feira, 18 de março de 2010

PASSAGEM DAS HORAS

Trago dentro do meu coração,
Como num cofre que se não pode fechar de cheio,

Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,

Ou de tombadilhos, sonhando,

E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.


(...)


Viajei por mais terras do que aquelas em que toquei...

Vi mais paisagens do que aquelas em que pus os olhos...

Experimentei mais sensações do que todas as sensações que senti,

Porque, por mais que sentisse, sempre me faltou que sentir

E a vida sempre me doeu, sempre foi pouco, e eu infeliz.

(...)


Não sei se a vida é pouco ou demais para mim.
Não sei se sinto de mais ou de menos, não sei

Se me falta escrúpulo espiritual, ponto-de-apoio na inteligência,

Consangüinidade com o mistério das coisas, choque

Aos contatos, sangue sob golpes, estremeção aos ruídos,

Ou se há outra significação para isto mais cômoda e feliz.

Seja o que for, era melhor não ter nascido,

Porque, de tão interessante que é a todos os momentos,

A vida chega a doer, a enjoar, a cortar, a roçar, a ranger,
A dar vontade de dar gritos, de dar pulos, de ficar no chão, de sair

Para fora de todas as casas, de todas as lógicas e de todas as sacadas,

E ir ser selvagem para a morte entre árvores e esquecimentos,

Entre tombos, e perigos e ausência de amanhãs,

E tudo isto devia ser qualquer outra coisa mais parecida com o que eu penso,

Com o que eu penso ou sinto, que eu nem sei qual é, ó vida.


(...)


Correram o bobo a chicote do palácio, sem razão,

Fizeram o mendigo levantar-se do degrau onde caíra.

Bateram na criança abandonada e tiraram-lhe o pão das mãos.

Oh mágoa imensa do mundo, o que falta é agir...

Tão decadente, tão decadente, tão decadente...

Só estou bem quando ouço música, e nem então.

Jardins do século dezoito antes de 89,

Onde estais vós, que eu quero chorar de qualquer maneira?


(...)

Torna-me humano, ó noite, torna-me fraterno e solícito.

Só humanitariamente é que se pode viver.
Só amando os homens, as ações, a banalidade dos trabalhos,

Só assim - ai de mim! -, só assim se pode viver.

Só assim, o noite, e eu nunca poderei ser assim!

Vi todas as coisas, e maravilhei-me de tudo,

Mas tudo ou sobrou ou foi pouco - não sei qual - e eu sofri.

Vivi todas as emoções, todos os pensamentos, todos os gestos,

E fiquei tão triste como se tivesse querido vivê-los e não conseguisse.

Amei e odiei como toda gente,

Mas para toda a gente isso foi normal e instintivo,

E para mim foi sempre a exceção, o choque, a válvula, o espasmo.


(...)


Sentir tudo de todas as maneiras,

Viver tudo de todos os lados,

Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,

Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos

Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo.


(...)


Beijo na boca todas as prostitutas,

Beijo sobre os olhos todos os souteneurs,

A minha passividade jaz aos pés de todos os assassinos

E a minha capa à espanhola esconde a retirada a todos os ladrões.

Tudo é a razão de ser da minha vida.

Cometi todos os crimes,

Vivi dentro de todos os crimes
(Eu próprio fui, não um nem o outro no vicio,
Mas o próprio vício-pessoa praticado entre eles,

E dessas são as horas mais arco-de-triunfo da minha vida).


Multipliquei-me, para me sentir,

Para me sentir, precisei sentir tudo,

Transbordei, não fiz senão extravasar-me,

Despi-me, entreguei-rne,
E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente.


Os braços de todos os atletas apertaram-me subitamente feminino,

E eu só de pensar nisso desmaiei entre músculos supostos.
Foram dados na minha boca os beijos de todos os encontros,

Acenaram no meu coração os lenços de todas as despedidas,

Todos os chamamentos obscenos de gesto e olhares

Batem-me em cheio em todo o corpo com sede nos centros sexuais.


Fui todos os ascetas, todos os postos-de-parte, todos os como que esquecidos,

E todos os pederastas - absolutamente todos (não faltou nenhum).
Rendez-vous a vermelho e negro no fundo-inferno da minha alma!


(...)


Poder rir, rir, rir despejadamente,
Rir como um copo entornado,

Absolutamente doido só por sentir,
Absolutamente roto por me roçar contra as coisas,

Ferido na boca por morder coisas,
Com as unhas em sangue por me agarrar a coisas,

E depois dêem-me a cela que quiserem que eu me lembrarei da vida.


(...)


Eu, este degenerado superior sem arquivos na alma,
Sem personalidade com valor declarado,

Eu, o investigador solene das coisas fúteis,

Que era capaz de ir viver na Sibéria só por embirrar com isso,

E que acho que não faz mal não ligar importâricia à pátria

Porque não tenho raiz, como uma árvore, e portanto não tenho raiz

Eu, que tantas vezes me sinto tão real como uma metáfora.


(...)


Viro todos os dias todas as esquinas de todas as ruas,

E sempre que estou pensando numa coisa, estou pensando noutra.

Não me subordino senão por atavisnio,

E há sempre razões para emigrar para quem não está de cama.


(...)


Fui educado pela Imaginação,

Viajei pela mão dela sempre,
Amei, odiei, falei, pensei sempre por isso,

E todos os dias têm essa janela por diante,
E todas as horas parecem minhas dessa maneira.

(...)


Toda a energia é a mesma e toda a natureza é o mesmo...

A seiva da seiva das árvores é a mesma energia que mexe

As rodas da locomotiva, as rodas do elétrico, os volantes dos Diesel,

E um carro puxado a mulas ou a gasolina é puxado pela mesma coisa.

Raiva panteísta de sentir em mim formidandamente,

Com todos os meus sentidos em ebulição, com todos os meus poros em fumo,

Que tudo é uma só velocidade, uma só energia, uma só divina linha

De si para si, parada a ciciar violências de velocidade louca...
Ho ----


(...)


Eu de cabeça pra baixo no centro da minha consciência de mim

Rua sem poder encontrar uma sensação só de cada vez rua

Rua pra trás e pra diante debaixo dos meus pés.

(...)

Dói-me a imaginação não sei como, mas é ela que dói,
Declina dentro de mim o sol no alto do céu.
Começa a tender a entardecer no azul e nos meus nervos.

Vamos ó cavalgada, quem mais me consegues tornar?

Eu que, veloz, voraz, comilão da energia abstrata,


Queria comer, beber, esfolar e arranhar o mundo,

Eu, que só me contentaria com calcar o universo aos pés,
Calcar, calcar, calcar até não sentir.
Eu, sinto que ficou fora do que imaginei tudo o que quis,

Que embora eu quisesse tudo, tudo me faltou.


(...)


Meu ser elástico, mola, agulha, trepidação ...

*Fernando Pessoa (por Álvaro de Campos)

2 comentários:

Monica disse...

"macacos agiam de maneira nada usual diante de uma cachoeira, demonstrando... senso místico... reverência. "Alguns permaneciam sentados numa rocha em frente à queda d’água, como se estivessem encantados. Outros ficavam sob a queda d’água por mais de 50 minutos, quando normalmente nem gostavam de se molhar."...esse comportamento é um traço de religiosidade...

Na "Passagem das Horas", tão forte
e contundente...me veio esse "isso"
primitivo, primitivo?

Pegadas disse...

mais uma "contradição ambulante" - obrigado por te lembrares do MESTRE!