sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Carta à minha alma (se de fato existires)

Sabes quanto é inexplicável. Muitos tentaram insistentemente me convencer disso, nunca acreditei de todo. E vós sois minha mais grave testemunha. Todavia, avesso àquelas implacáveis convicções produzidas em outrora, devo ceder. Há deveras alguns processos na mente humana que embora conduzidos por essa, não possuem um vínculo lógico com a racionalidade. Está acontecendo comigo agora. Alheio a tudo quanto foi de alto e elevado a meu pretenso entender, mergulho agora no túnel das lembranças mais frugais. Nenhum momento capital se me afigurou. Nem a lembrança de quando tive sexo pela primeira vez, nem a de quando chorei perdido ou a de quando fiz que chorassem por mim, nem mesmo o dia em que ganhei a primeira soma de dinheiro que me permitia mais que um punhado de balas e fui ludibriado por aquela velha que me vendeu coisas que eu nem queria. Nada. O frisson que nesse instante me domina é concebido de momentos banais, e ainda mais agudamente da displicência com esses. Vem me visitar agora por exemplo, a lembrança que nem sabia se tinha, daquele dia de chuva. Um dia qualquer sem grandes eventos. Mas lembro-me bem, a visão de meus pés pisando a terra molhada, a densidade do ar, o cheiro de vida acontecendo no ambiente... Tudo soa tão imaterial e mesmo assim tão presente. As formas assimétricas de minhas pegadas impressas no chão cor de chocolate, a fúria reconquistada das corredeiras do rio que com a chuva se despediam da vazante. O som da água contra as rochas na ribeira, o som dos cânticos pra sempre perdidos no tempo. Sempre. Haverão de existir em toda parte coisas perdidas, portos vazio, louça em cacos. Mas agora, depois de tempo passado é que posso enfim concluir. Na simplicidade daquele momento úmido eu estava em paz. Num assalto de inesperada transição fui dar em visita a outro quarto dessa casa estranha. Agora me vejo ainda mais remoçado. Minha pele lisa. Ainda virgem de pêlos e espinhas, marcas de expressão ou testemunho dos anos. Olho à frente, como em mágica ou engenho do sobrenatural, assisto a mulher de olhos agudos passar por mim. Não foi sequer um flerte, ela nem olhou diretamente. Mas como me lembro e de forma tão lúcida, do desenho assombrosamente perfeito de sua íris, naquela fração de segundo em que o sol raiva por sobre a fronte corada, pude testemunhar o reflexo que cega, a metamorfose de cores que daquela aquarela viva emanavam. Primeiro o negro, depois aclareando até um tom de mel e depois até um verde opaco. Misterioso, coisa em si ao mesmo tempo esparsa e concisa. Hipnótico como uma esmeralda tirada do útero da terra. Encantamento em estado bruto, perfeição não lapidada. Ela passou por mim. Foi quando nesse momento me dei ao exame mais apurado de sua silhueta. A textura de um algo esculpido por mãos superiores, o espírito das tentações míticas. Acho que foi ali, naquele acaso rápido, naquele momento insuspeitado, foi ali onde deveras aprendi a admirar uma anca. Não era mais possível retroceder. Não haviam mais chances de tornar a ser criança. A invasão da masculinidade se fez em mim como tributo pago pelo fito ao desconhecido e eu subtraído da identidade cotidiana, nem me dei conta do que em verdade se formava à minha frente. De qualquer forma ela passou por mim, se foi pra nunca mais. Quantos anos fazem? Dez, quinze? Não sei. Mas o perfume ainda habita minhas narinas como um hálito fresco. Mais um porta cerrou, dei em outro quarto. Não reconheço o lugar, estou como que de olhos fechados. As sensações são familiares. Parte dos cabelos longos de uma moça deitados sobre meu ombro enquanto durmo, o cheiro que invadia a casa quando minha bisavó derretia rapadura pra fazer pé-de-moleque, o transe durante um beijo de quase hora em quem se gosta, ficar deitado ouvindo o som das tempestades de março. É tudo tão diverso e ao mesmo tempo tão uno. Filhos diferentes de um mesmo pai, dedos inaparentes da mesma mão. É como se durante a vida inteira eu tivesse feito a mesma coisa de várias maneiras. Uma forma diferente a cada dia, um dia em cada minuto. E sendo desagregado fui intenso, e perdendo o que mais amava encontrei a mim mesmo. É impossível recobrar a ausência adormecida por sob as areias do tempo. É impossível fazer planos quando a morte passeia por entre o bosque. Talvez tenha descoberto o enigma. Talvez entenda porque tanto me é agora revelado. Estou pra morrer! Há um pelotão de fuzilamento à minha frente. Nazistas, fascistas, judeus, cristãos, mulheres, crianças, chineses, neo-zelandeses... Gente de bem. Todos com armas apontadas. Todos estão com sede de sangue. Foi breve demais, minha alma. Será que de fato existes? Ou aquilo a que chamo alma é um departamento de arquivos que em momentos de angústia nos permite revisitar tudo o que não foi completamente sorvido pela percepção? Claro, um pouco de cada vez. Do contrário, o repertório se tornaria monótono. Parece injusto o fato ter consciência de como se existe só quando esse estado de percepção vai prestes a fenecer. Nunca fui saudosista, aceito o novo, a mudança da biologia que é por si dinâmica. Entretanto, mesmo sabendo que não há perdão àquele que hesita, creio ter direitos de pelo menos nisso poder vacilar um pouco. Quase me entristece partir quando ainda existem tantos diamantes semeados pela estrada. Tão longa, tão sinuosa. Não tenho garantias e nem preciso tê-las. Durante alguns anos idealizei Valhala, onde os grandes ascendem à sede da imortalidade. Depois... Pó e sombra! Acidente da matéria, disso me senti composto. Quando a luz cessa sobre o corpo ele se funde com o esquecimento, deixa de existir. Foi bom sentir assim, foi bom ser tão livre quanto possível. Nenhum devir, nenhuma obrigação com a perenidade. O dilema de existir tem me vitimado nesses tempos. A consciência é minha porção divina? A consciência é o sintoma mais agudo da minha síndrome de fuga da própria condição? Pode ser que ocorra, talvez seja que tudo não passe de covardia. Seja como for, estou pronto. Posso morrer se assim o querem. Posso partir em vez derradeira. Mas como morrer ou partir? E se há algo depois? E se Valhala existe com outro nome, ou sem ele? Se esse escrito mesmo sobreviver, acaso não é uma forma de estar perene no inconsciente alheio e assim resistir à evasão última? O legado de cada um parece implacável, sempre reféns de nossos próprios fantasmas. Queria que alguém desligasse o plugue de meu corpo. Talvez uma oração sincera à santa da boa morte fosse útil. É pena, já não sou mais tão inocente. O pelotão faz mira em meu peito, engatilha as armas. Sei que a maioria das pessoas em meu lugar estaria no mínimo aterrorizada ou puta da vida, claro, no caso de que o medo permitisse essa última. Concretamente se pode dizer, pensar na brevidade da hora, ter ciência que caminha à extinção sem ter feito mais quando se podia. Andar a passos humanos por sobre a terra não é uma sucessão de horas coordenadas mas, antes uma corrente infinda de questionamentos. Nunca ter perguntado o nome daquela moça, não ter rolado naquela lama que parecia chocolate, nunca ter se entregue à correnteza do rio que em minha frente seguia... Aos de osso e carne lá estava, alheio e insondável como qualquer milagre deve ser. Sei que a indignação é legítima. Pelo julgamento dos que me conhecem e possivelmente daqueles que talvez me conhecerão (se houverem para conhecer). Tenho tudo, ao mesmo tempo nada possuo. Não há segurança do que se leva, tão somente do que se deixa. Se acaso penetramos na totalidade daquilo que à nossa volta subsiste em silêncio. E são tantas coisas... É preciso mais que a eternidade pra chegar à comunhão plena e esse nó na garganta me fornece a suspeita vil de que talvez nem isso haja à disposição daquele vai. Meu deus, meu deus por quê me abandonastes?! Quando dei por mim já não estavas. Existes em aqui ou no sonho? Nas igrejas ou nos bordéis? Existes? Há muito não sei que são trombetas nem vejo anjos aqui ou lá. Queria ter a retidão dos monges, como não posso, galopo por sobre os sapatos me meto a cabeça em fazer anarquias. Descendência de Caim. Tenho a praga dos hereges, se assim não fosse meu contento seria mais prático. Curiosamente, mesmo com toda a gravidade ainda quero sorrir. Poderia praguejar ou revoltar ou desesperar. Mas pra mim não parece justo. Como desperdiçar mais tempo se há entre nós tanta beleza?

Att,
P.A
Porto Firme; Ano Domini? MMIX
*Leandro M. de Oliveira

2 comentários:

Monica disse...

Para à alma de Leandro(que de fato
existe...)
Agradeço a possibilidade poética de
mergulhar no túnel das Lembranças..
sou seguidora...

Não gostaria que desligassem
o plugue do seu corpo,será egoismo?
vislumbro carta II,III,IV....

"as coisas findas,muito mais
que lindas,essas ficarão"

Isabela Carrari disse...

Oi, tudo bem? Há um tempo atrás você entrou no meu blog (imaginariodoolhar.blogspot.com) e comentou que quase usou uma imagem minha. Quando quiser pode usar, é só dar o crédito fotográfico (Isabela Carrari).
Aliás, bem interessante o seu blog. Vou ler com calma e depois comento tb! Ab!