domingo, 1 de novembro de 2009

Exercício de Transcender (O Caminho da Serpente II)

Todo homem, que tenha que talhar para si um caminho para o Alto, encontrará obstáculos incomprehensiveis e constantes. Se não fossem mais que os obstáculos que se atravessam e estimulam, pelo perigo ou pela resistência directa, bem iria, e os próprios obstáculos seriam o clarim para o avanço. Mas encontrará outros — os obstáculos reles que vexam e vergam, os obstáculos suaves que adormecem e viciam, os obstáculos ternos que o farão, como Orpheu, volver o erro do olhar para o vedado Averno. Cercal-o-hão, não só resistências duras, como as que os penhascos erguem como tropeço, mas resistências brandas, como as memórias dos valles, e a dos lares nas faldas. E o triumpho consiste na força para, sabendo sentir essas attracções intensamente (pois não sabel-as sentir é não ter alma para a subida), as submeter á emoção superior; sabendo organizar as vontades do amor e da terra, saber submettel-as á vontade do espirito do mundo. Este processo de victoria, figuram-o os emblemadores no symbolo da Crucifixão da Rosa — ou seja no sacrifício da emoção do mundo (a Rosa, que é o circulo em flor) nas linhas cruzadas da vontade fundamental e da emoção fundamental, que formam o substrato do Mundo, não como Realidade (que isso é o Circulo) mas como producto do Espirito (que isso é a Cruz).

(...)

Christo, que, na dispensação material é um deus christão, e na dispensação mágica um deus, é, na dispensação divina, Deus. Na primeira ordem podem ser-lhe dirigidas orações, que terão ou não effeito segundo as regras mágicas d'essas operações da fé. Na segunda ordem podem ser-lhe feitas invocações, como a Osiris, que é o mesmo deus, e o effeito derivar-se-ha da perfeição do incantamento e do rito. Na terceira ordem não poderão ser-lhe dirigidas orações nem invocações; o processo de união com Elle não pode ser indicado em palavras nem comprehendido com a intelligencia. Aquelle que, tendo chegado até onde esse processo existe como formula de relação, pôde assistir á revelação intima, só esse o saberá, se é que, no mesmo sabel-o, o souber.

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Considerar todas as coisas como accidentes de uma illusão irracional, embora cada uma se apresente racional para si mesma — nisto reside o principio da sabedoria. Mas este principio da sabedoria não é mais que metade do entendimento das mesmas coisas. A outra parte do entendimento consiste no conhecimento d'essas coisas, na participação intima d'ellas. Temos que viver intimamente aquillo que repudiamos. Nada custa a quem não é capaz de sentir o Christianismo o repudiar o Christianismo; o que custa é repudial-o, como a tudo, depois de verdadeiramente o sentir, o viver, o ser. O que custa é repudial-o, ou saber repudial-o, não como fôrma da mentira, senão como fôrma da verdade. Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os acceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo — quando o homem se ergue a este pincaro, está livre, como em todos os pincaros, está só, como em todos os pincaros, está unido ao céu, a que nunca está unido, como em todos os pincaros.

A luz falsa da realidade, a luz falsa da ficção, a luz falsa da iniciação e do secreto — dia, crepúsculo, noite, que são ellas a quem contempla a Razão limpa, a Serpente colleante atravez de mais que os mundos?

A Serpente está acima das ordens e dos systemas, e, ainda que ascenda como o sentido d'elles, dispensa as linhas e os caminhos. O seu movimento, para a direita na ordem inferior das coisas e dos seres, é-o apenas para que possa ser para a esquerda na ordem superior d'elles. O que os homens não podem conseguir senão dominando-se, ou conjugando-se, ou impondo-se, consegue a Serpente sòsinha na sua liberdade. Para ella mandar é subordinar-se á idéia de mandar; livre e cauta, ella segue rasteira atravez do mundo, e do espirito, até que sahe do mundo e do espirito.

Ella liga os contrários verdadeiros, porque, ao passo que os caminhos do mundo são, ou da direita, ou da esquerda, ou do meio, ella segue um caminho que passa por todos e não é nenhum. Ella parte, como o caminho direito e o esquerdo, do Instincto para Deus, mas não sofre a quebra onde os triângulos se unem; não fôrma angulo comsigo mesma.

(Não a traçam os symbolos senão em O ou em S, limitando ou evitando o mundo.) Nem ascende sem quebra, como o caminho médio, do Instincto a Deus. Conhecendo que ha outros caminhos, que não o médio, ella reconhece-os, pois se desvia do médio, e repudia-os, pois não segue a nenhum d'elles. Ao sahir do vértice instinctivo, ao sahir para o vértice divino, ella roça a curva produzida da vesica involvente, e assim mostra que sabe d'ella; mas roça-a e passa-a, e não segue a sua curva nem a sua maneira. Ella assim se distingue de todos os modos e condições de Deus e dos Seres. Onde parece que é egual é differente, e os dois (por assim dizer) que a formam são oppostos em seu feitio e natureza. No baixo mundo ella é a lua crescente, no mundo superior a minguante...

Ella não conhece os mysterios mas os envolve, desvia-se dos caminhos e das iniciações; deixa a sciencia por onde passa; nega a magia, que atravessa; e quando chega a Deus não para.

(...)

O caminho da Serpente está fora das ordens e das iniciações, está, até, fora das leis (rectilineas) dos mundos e de Deus. O caracter maldito, o aspecto repugnante, da Cobra, traz marcado a sua Opposição ao Universo—profundo e obscuro Mysterio Magno. Ella é o Spirito que Nega, mas nega mais, e mais profundamente, do que em geral se entende ou se pôde entender. Nega o bem no seu baixo nivel, em que é só Serpente e tenta Eva; nega a verdade no seu segundo nivel, em que é nega o bem e o mal no seu terceiro nivel, em que é Satan; nega

a verdade e o erro no seu quarto nivel, em que é Lucifer; (ou Venus); nega-se a si mesma e a tudo no seu quinto nivel, e fuga, em que é SS, a Revelação Suprema. e a si mesma se tenta e se mata.

Todos os caminhos no mundo e na lei são rectilineos; o caminho da Serpente é a evasão dos caminhos, porque é, substancial e potencialmente, a Evasão Abstracta, o reconhecimento da verdade essencial, que pôde exprimir-se, poeticamente, na phrase de que Deus é o cadáver de si-mesmo; a descoberta do Triângulo Mystico em que os trez vértices são o mesmo ponto, o segredo da Trindade e do Deus Vivo, que, em certo modo, é o Homem Morto em e atravez de Deus Morto.
*Fernando Pessoa

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