quinta-feira, 26 de março de 2009

Os Sofistas e a Religião

PERGUNTA: Vimos como a sofística analisou criticamente a relação entre governantes e governados e elaborou novas concepções do direito, da justiça e do poder; em alguns fragmentos dos sofistas há inclusive acenos para a religião como instrumento de domínio sobre o povo. Qual a atitude da sofística a respeito da religião?

HÖSLE: Acredito que a crítica da religião, que inicia no século V AC, tenha três fases. A primeira é uma crítica anda interna à religião, e se trata do problema da teodicéia - o problema que cada pessoa religiosa tem, o de ver pessoas justas sofrerem no mundo e pessoas injustas estarem bem. Esta crítica à religião, conforme é desenvolvida em frases às vezes tremendas na tragédia grega, é crítica que ainda continua fiel a concepções religiosas e tenta apenas transcender um conceito ingênuo da divindade para alcançar um conceito mais profundo.

O segundo nível de crítica à religião é o que se pode chamar a crítica científica. De acordo com este nível, não tem sentido pensar que as divindades agem no mundo. Este é apenas um pretexto das pessoas que são incapazes de explicar os verdadeiros nexos causais. O exemplo mais belo disso é a escrito sobre a epilepsia de Hipócrates, escrito em que é dito claramente que é sinal de fraqueza dos médicos atribuírem causas divinas a esta doença, que era denominada a doença sagrada. Segundo Hipócrates, esta doença tem causas normais como todas as outras doenças e pode ser resolvida de modo racional, pode ter cura.

O terceiro aspecto de crítica da religião é uma crítica antropológica, segundo a qual a religião nasce das exigências dos seres humanos. Estes - é dito - chamam divindades as suas próprias necessidades; por exemplo, Demétrio tem a ver com o pão, Dionísio, com o vinho, etc. Por um lado, a necessidade dos seres humanos, por outro, o interesse de pessoas astutas que percebem que através da religião podem guiar as massas. Este é o famoso fragmento de Crítia que antecipa idéias nietzscheanas, segundo as quais um ser humano inteligente inventou a divindade para que os seres humanos fossem capazes ou se sintam obrigados a respeitar o bem, até mesmo quando não devem temer serem punidos imediatamente. Este é um dos grandes problemas da sofística. Esta, enquanto rejeita um fundamento da moral que esteja além do próprio ser humano, tenta fundar a moral sobre o egoísmo racional. E este, segundo minha opinião, é absolutamente impossível, e na sofística todas as formas de utilitarismo, de hedonismo que são desenvolvidas procuram dizer o seguinte: se houvesse uma pessoa que não devesse temer nada agindo de modo imoral, por que deveria agir moralmente? No Anonymus Iamblici, texto bastante fascinante da sofística, é desenvolvida a idéia de um homem feito de aço, não mortal, e se diz que, para tal pessoa feita de aço não haveria motivo algum para que respeitasse a moral. A razão de que dispomos para respeitar a moral é o fato de querermos evitar que sejamos punidos por outros. Deste modo, porém, fica claro que uma pessoa que deve morrer em qualquer caso não tem motivo algum, se não antes da própria morte, de cometer alguns crimes gravíssimos, se esta fosse a base da moral. Por isso, o problema da religião torna-se importante na medida em que, baseando-se nesta convicção, se torna necessário inventar algo que consiga manter as massas sob controle.


*Prof. Vittorio Hösle em entrevista - acervo da "Enciclopedia Multimediale delle Scienze Filosofiche"

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