terça-feira, 31 de março de 2009

A escultura de Mary Vieira



dar a qualquer matéria
a aritmética do metal
dar lâmina ao metal
e à lâmina alumínio

dar ao número ímpar
o acabamento do par
então ao número par
o assentamento do quatro

dar a qualquer linha
projeto a pino de reta
dar ao círculo sua reta
sua racional de quadrado

dar à escultura o limpo
de uma máquina de arte
por sua vez capaz da arte
de dar-se um espaço explícito



*João Cabral de Melo Neto in Museu de Tudo

DISCURSO DO CAPIBARIBE



Aquele rio
está na memória
como um cão vivo
dentro de uma sala.
Como um cão vivo
dentro de um bolso.
Como um cão vivo
debaixo dos lençóis,
debaixo da camisa,
da pele.

Um cão, porque vive,
é agudo.
O que vive
não entorpece.
O que vive fere.
O homem,
porque vive,
choca com o que vive.
Viver
é ir entre o que vive.

O que vive,
incomoda de vida
o silêncio, o sono, o corpo
que sonhou cortar-se
roupas de nuvens.
O que vive choca,
tem dentes, arestas, é espesso.
O que vive é espesso
como um cão, um homem,
como aquele rio.

Como todo o real
é espesso.
Aquele rio
é espesso e real.
Como uma maçã
é espessa.
Como um cachorro
é mais espesso do que uma maçã.
Como é mais espesso
o sangue do cachorro
do que o próprio cachorro.
Como é mais espesso
um homem
do que o sangue de um cachorro.
Como é muito mais espesso
o sangue de um homem
do que o sonho de um homem.

Espesso
como uma maçã é espessa.
Como uma maçã
é muito mais espessa
se um homem a come
do que se um homem a vê.
Como ainda é mais espessa
se a fome a come.
Como é ainda muito mais espessa
se não a pode comer
a fome que a vê.

Aquele rio
é espesso
como o real mais espesso.
Espesso
por sua paisagem espessa,
onde a fome
estende seus batalhões de secretas
e íntimas formigas.

E espesso
por sua fábula espessa;
pelo fluir
de suas geléias de terra;
ao parir
suas ilhas negras de terra.

Porque é muito mais espessa
a vida que se desdobra
em mais vida,
como uma fruta
é mais espessa
que sua flor;
como a árvore
é mais espessa
que sua semente;
como a flor
é mais espessa
que sua árvore,
etc.etc.

Espesso
porque é mais espessa
a vida que se luta
cada dia,
o dia que se adquire
cada dia
(como uma ave
que vai cada segundo
conquistando seu vôo).


*João Cabral de Melo Neto

A idéia de método ou de mathesis universalis

Os filósofos modernos enfrentam três grandes problemas no tocante ao conhecimento verdadeiro: 

1) tendo o Cosmos, sua ordem, sua hierarquia e seu centro desaparecido, o homem, como ser pensante, não encontra imediatamente nas coisas percebidas a verdade, a origem e o sentido do real, pois as coisas são percebidas em suas qualidades sensoriais e o mundo parece ser finito e ordenado por valores e perfeições que a nova ciência da Natureza revelou serem ilusórios; 

2) o conceito de causalidade faz uma exigência teórica que, se não for respeitada, impede que a verdade seja conhecida. Essa exigência é de que as relações causais só se estabelecem entre coisas de mesma substância (a extensão, ou a matéria, ou os corpos, dependendo da terminologia de cada sábio, só produz efeitos extensos, materiais, corporais; o pensamento, a alma, as idéias, também dependendo da terminologia de cada filósofo, só produzem efeitos pensantes, anímicos, ideativos; o finito só produz efeitos finitos; o infinito, única exceção, produz efeitos finitos e infinitos, mas não pode ser produzido por uma causa finita). Ora, como já o dissemos, os humanos são compostos de duas substâncias (ou de modos diferentes da mesma substância, no caso de Espinosa) que, no plano causal, não podem causar-se um ao outro. Ora, conhecer é uma atividade da substância pensante ou do modo pensante, mas o conhecido pode tanto ser um aspecto do pensante quanto os corpos, as coisas ou os modos extensos. E, neste caso, a causalidade não pode operar, pois o que se passa na extensão não pode causar efeitos no pensamento e vice-versa. A solução encontrada por todos os filósofos (com variantes, novamente, e com exceção de Espinosa) consiste em considerar o conhecimento uma Representação, isto é, que a inteligência não afeta nem é afetada pelos corpos, mas pelas idéias deles, havendo assim a homogeneidade exigida pela causalidade; 

3) mas a representação cria um novo problema: como saber se as idéias representadas correspondem verdadeiramente às coisas representadas? Como saber se a idéia é adequada ao seu ideado? Para solucionar esta dificuldade nasce o método. 

A noção de representação significa que aquele que conhece — o Sujeito do Conhecimento — está sozinho, rodeado por coisas cuja verdade ele não pode encontrar imediatamente, pois percebe coisas, mas deve conhecer Objetos do Conhecimento, isto é, as idéias verdadeiras ou os conceitos dessas coisas percebidas. Precisa de um instrumento que lhe permita três atividades: 1) representar corretamente as coisas, isto é, alcançar suas causas sem risco de erro (para os espiritualistas, os erros virão dos sentidos ou do corpo; para os materialistas, os erros virão das abstrações indevidas feitas pela inteligência); 2) controlar cada um dos passos efetuados, pois a perda de controle de uma das operações intelectuais pode provocar o erro no final do percurso, que, por isso, deve ser controlado passo por passo; 3) permitir que se possa deduzir ou inferir de algo já conhecido com certeza o conhecimento de algo ainda desconhecido, isto é, o instrumento deve permitir o progresso dos conhecimentos verdadeiros oferecendo recursos seguros para que se possa passar do conhecido ao desconhecido. A função do método é de preencher esses três requisitos. Por essa razão, nenhum dos filósofos modernos deixa de escrever um tratado sobre o método. 

No século XVII, a palavra método (do grego: caminho certo, correto, seguro) tem um sentido vago e um sentido preciso. Sentido vago, porque todos os filósofos possuem um método ou o seu método, havendo tantos métodos quantos filósofos. Sentido preciso, porque o bom método é aquele que permite conhecer verdadeiramente o maior número de coisas com o menor número e regras. Quanto maiores a generalidades e a simplicidade do método, quanto mais puder ser aplicado aos mais diferentes setores do conhecimento, melhor será ele.  

O método é sempre considerado matemático. Isto não quer dizer que se usa a aritmética, a álgebra, a geometria para o conhecimento de todas as realidades, e sim que o método procura o ideal matemático, isto é, ser uma mathesis universalis. 

Isto significa duas coisas: 1) que a matemática é tomada no sentido grego da expressão ta mathema, isto é, conhecimento completo, perfeito e inteiramente dominado pela inteligência (aritmética, geometria, álgebra são matemáticas, por isso, isto é, porque dominam completa e intelectualmente seus objetos); 2) que o método possui dois elementos fundamentais de todo conhecimento matemático: a ordem e a medida. 

Vimos que, no Renascimento, o conhecimento operava com a noção de Semelhança, era descritivo e interpretativo. A diferença entre os renascentistas e os modernos consiste no fato de que estes últimos criticam a Semelhança, considerando-a causa dos erros e incapaz de alcançar a essência das coisas. Conhecer pela causa significa que a inteligência é capaz de discernir a identidade e a diferença no nível da essência invisível das coisas. A ordem e a medida têm a função de produzir esse discernimento e por isso são o núcleo do método e da mathesis. 

Conhecer é relacionar. Relacionar é estabelecer um nexo causal. Estabelecer um nexo causal é determinar quais as identidades e quais as diferenças entre os seres (coisas, idéias, corpos, afetos, etc.). A medida oferece o critério para essa identidade e essa diferença. Assim, por exemplo, a medida permitirá que não se estabeleça uma relação causal entre realidades heterogêneas quanto à substância. Ela analisa, isto é, decompõe um todo em partes e estabelece qual o elemento que serve de unificador para essas partes (a "grandeza" comum a todas elas). A ordem é o conhecimento do encadeamento interno e necessário entre os termos que foram medidos, isto é, estabelece qual o termo que se relaciona com outro e em qual seqüência necessária, de sorte que ela estabelece uma série ordenada, sintetiza o que foi analisado pela medida e permite passar do conhecido ao desconhecido. 

A ordem é essencial ao método por três motivos: 1) porque os modernos consideram que a primeira verdade de uma série é conhecida por uma intuição evidente, a partir da qual será colocada a medida e esta depende da seriação dos termos feita pela ordem; 2) porque os conhecimentos de totalidades complexas são conhecimentos de séries diferentes, cujas relações só podem ser estabelecidas se cada série estiver corretamente ordenada; 3) porque a ordem permite a relação entre um primeiro termo e um último cuja medida pode não ser a mesma (são heterogêneos ou incomensuráveis), mas a relação pode ser feita porque a ordenação foi fazendo aparecer entre um termo e outro uma medida nova que encadeia o segundo ao terceiro, este ao quarto e assim por diante. 

Um exemplo deste último e mais importante procedimento. Na filosofia de Descartes, não haveria como estabelecer relação causal entre a alma finita humana, Deus infinito e o mundo extenso, já que são três substâncias diferentes. Aplicando a medida e a ordem, Descartes estabelece o que chama de cadeia de razões (nexos causais e lógicos) do seguinte tipo: a alma pensa e ao pensar tem uma idéia de que ela própria não pode ser a causa, a idéia de Deus; isto é, a alma finita não pode ser causa de uma idéia infinita. Sendo, porém, Deus uma idéia, pode perfeitamente estar em nossa alma e pode causá-la em nós, porque o intelecto divino age sobre o nosso por meio das idéias verdadeiras. Ora, a idéia de Deus é a idéia de um Ser Perfeito, que seria imperfeito se não existisse, portanto, a idéia presente em nossa inteligência, causada pela inteligência de Deus, é a idéia de um ser que só será Deus se existir. Nós não podemos fazer Deus existir, mas a idéia de Deus nos revela que ele existe. Passamos, assim, da idéia ao ser. Ora, esse ser é perfeito, e se nos faz ter idéias das coisas exteriores através de nossos sentidos, é porque nos deu um corpo e criou outros corpos que constituem o mundo extenso. Passamos, assim, do ser de Deus à idéia de nosso corpo e às idéias dos corpos exteriores, o que não poderia ser feito sem a ordem, pois sem ela não poderíamos passar de nossa alma a Deus e dele ao nosso corpo nem aos corpos exteriores. A medida é a idéia e a ordem da seqüência causal dessas idéias até chegar a corpos. 

O método, ciência universal da ordem e da medida, pode ser analítico ou sintético. Na análise, vai-se das partes ao todo ou do particular ao universal (é o método preferido por Descartes e Locke); na síntese, vai-se do todo às partes ou do universal ao particular (é o método preferido por Espinosa); ou uma combinação de ambos, conforme as necessidades próprias do objeto de estudo (como faz Leibniz). Em qualquer dos casos, realiza-se pela ordem e pela medida, mas é considerado dedutivo pelos racionalistas intelectualistas (que partem das idéias para as sensações) e indutivo pelos racionalistas empiristas (que partem das sensações para as idéias). Essa diferença repercute no conceito de intuição, que é considerado por todos como o ponto de partida da cadeia dedutiva ou da cadeia indutiva: no primeiro caso, a intuição é uma visão puramente intelectual de uma idéia verdadeira; no segundo caso, a intuição é sensível, isto é, visão ou sensação evidente de alguma coisa que levará à sua idéia.

*Marilena Chaui in Filosofia moderna, USP 


Vênus

Ouviu-lhe estas palavras piedosas
A fermosa Dione, e, comovida
Dentre as ninfas se vai, que saudosas
Ficaram desta súbita partida.
Já penetra as Estrelas luminosas,
Já na terceira Esfera recebida
Avante passa, e lá no Sexto céu,
Para onde estava o Padre, se moveu.

E como ia afrontada do caminho,
Tão fermosa no gesto se mostrava,
Que as Estrelas e o Céu e o Ar vizinho
E tudo quanto a via, namorava;
Dos olhos, onde faz seu filho o ninho,
Uns espíritos vivos inspirava,
Com que os Pólos gelados acendia,
E tornava do fogo a esfera fria.

E, por mais namorar o soberano
Padre, de quem foi sempre amada e cara,
Se lhe apresenta assim como ao Troiano
Na selva idéia já se apresentara.
Se a vira o caçador, que o vulto humano
Perdeu, vendo Diana na água clara,
Nunca os famintos galgos o mataram,
Que primeiro desejos o acabaram.

Os crespos fios de ouro se esparziam
Pelo colo, que a neve escurecia;
Andando, as lácteas tetas lhe tremiam,
Com quem Amor brincava e não se via,
Da alva petrina flamas lhe saíam,
Onde o Menino as almas acendia;
Pelas lisas colunas lhe trepavam
Desejos, que como hera se enrolavam.

C'um delgado cendal as partes cobre
De quem vergonha é natural reparo,
Porém nem tudo esconde nem descobre
O véu, dos roxos lírios pouco avaro;
Mas, para que o desejo acenda e dobre,
Lhe põe diante aquele objeto raro.
Já se sentem no Céu, por toda a parte,
Ciúmes em Vulcano, amor em Marte.


*Luís Vaz de Camões - 1572 Os Lusíadas, 2. 33-37

segunda-feira, 30 de março de 2009

Mensagem (de Neruda) a "la Belle Joana"

"Muere lentamente...
quien evita una pasión,
quien prefiere el negro sobre blanco y los puntos sobre las íes
a un remolino de emociones,
justamente las que rescatan el brillo de los ojos,
sonrisas de los bostezos, corazones a los tropiezos y sentimientos.
Muere lentamente...
quien no voltea la mesa cuando está infeliz en el trabajo,
quien no arriesga lo cierto por lo incierto para ir detrás de un sueño,
quien no se permite por lo menos una vez en la vida,
huir de los consejos sensatos(...)"

"Sucede que me canso de mis pies y mis uñas
y mi pelo y mi sombra.
Sucede que me canso de ser hombre(...)

Hay pájaros de color de azufre y horribles intestinos
colgando de las puertas de las casas que odio,
hay dentaduras olvidadas en una cafetera,
hay espejos
que debieran haber llorado de vergüenza y espanto,
hay paraguas en todas partes, y venenos, y ombligos.
Yo paseo con calma, con ojos, con zapatos,
con furia, con olvido,
paso, cruzo oficinas y tiendas de ortopedia,
y patios donde hay ropas colgadas de un alambre:
calzoncillos, toallas y camisas que lloran
lentas lágrimas sucias."

"Yo no lo quiero, Amada(...)

Amo el amor de los marineros
que besan y se van.

Dejan una promesa.
No vuelven nunca más.

En cada puerto una mujer espera:
los marineros besan y se van.

(Una noche se acuestan con la muerte
en el lecho del mar.)

Amo el amor que se reparte
en besos, lecho y pan.

Amor que puede ser eterno
y puede ser fugaz.

Amor que quiere libertarse
para volver a amar."

*Como definir a essência de alguém? Creio que seja impossível, até mesmo para um texto de Neruda, esse tateador da alma, então depois de um mergulho em ti, passei a supor que seria melhor editar alguns trechos de poemas diversos que penso combinam mais com você que é também uma pessoa múltipla. Em caso de estar errado, espero que possa absorver algo da mensagem assim mesmo... Os fragmento foram extraídos de "Farewell", "¿Quién muere?" e "Walking Around". Sem me alongar mais, aqui me vou. A você os meus melhores pensamentos, minha doce amiga.



Heráclito de Éfeso (O obscuro)

frag. 1 Os homens dão sempre mostras de não compreenderem que o Logos é como eu o descrevo, tanto antes de o terem ouvido como depois. É que embora todas as coisas aconteçam segundo este Logos, os homens parecem-se com as pessoas sem experiência, mesmo quando experimentam palavras e ações tal como eu as exponho, ao distinguir cada coisa segundo a sua constituição e ao explicar como ela é; mas os demais homens são incapazes de se aperceberem do que fazem quando estão acordados, precisamente como esquecem o que fazem quando a dormir.

frag. 2 Por isso, é necessário seguir o comum; mas se bem que o Logos seja o comum, a maioria vive como se tivesse uma inteligência particular.

frag. 12 Para os que entram nos mesmos rios, outras e outras são as águas que correm por eles...Dispersam-se e reúnem-se...vêm junto e junto fluem...aproximam-se e afastam-se.


Fragmentos atribuídos a Heraclito de Éfeso. Timon de Fliunte apelidou-o "aquele que se exprime por enigmas." Teria aproximadamente 40 anos ao tempo da 69ª Olimpíada (504-501 ac) .


*in G.S.Kirk and J.E Raven, Os filósofos Pré-Socráticos (Fundação Calouste Gulbenkian,Lx,1979)

A idéia moderna da Razão

Em seu livro História da Filosofia, Hegel declara que a filosofia moderna é o nascimento da Filosofia propriamente dita porque nela, pela primeira vez, os filósofos afirmam: 

1) que a filosofia é independente e não se submete a nenhuma autoridade que não seja a própria razão como faculdade plena de conhecimento. Isto é, os modernos são os primeiros a demonstrar que o conhecimento verdadeiro só pode nascer do trabalho interior realizado pela razão, graças a seu próprio esforço, sem aceitar dogmas religiosos, preconceitos sociais, censuras políticas e os dados imediatos fornecidos pelos sentidos. Só a razão conhece e somente ela pode julgar-se a si mesma; 

2) que a filosofia moderna realiza a primeira descoberta da Subjetividade propriamente dita porque nela o primeiro ato de conhecimento, do qual dependerão todos os outros, é a Reflexão ou a Consciência de Si Reflexiva. Isto é, os modernos partem da consciência da consciência, da consciência do ato de ser consciente, da volta da consciência sobre si mesma para reconhecer-se como sujeito e objeto do conhecimento e como condição da verdade. A consciência é para si mesma o primeiro objeto do conhecimento, ou o conhecimento de que é capacidade de e para conhecer; 

3) que a filosofia moderna é a primeira a reconhecer que, sendo todos os seres humanos seres conscientes e racionais, todos têm igualmente o direito ao pensamento e à verdade. Segundo Hegel, essa afirmação do direito ao pensamento, unida à idéia de liberdade da razão para julgar-se a si mesma, portanto, o igualitarismo intelectual e a recusa de toda censura sobre o pensamento e a palavra, seria a realização filosófica de um principio nascido com o protestantismo e que este, enquanto mera religião, não poderia cumprir precisando da filosofia para realizar-se: o princípio da individualidade como subjetividade livre que se relaciona livremente com o infinito e com a verdade. 

A razão, o pensamento, a capacidade da consciência para conhecer por si mesma a realidade natural e espiritual, o visível e o invisível, os seres humanos, a ação moral e política, chama-se Luz Natural. Embora os modernos se diferenciem quanto à Luz Natural (para alguns, por exemplo, a razão traz inatamente não só a possibilidade para o conhecimento verdadeiro, mas até mesmo as idéias, que seriam inatas; para outros, nossa consciência é como uma folha em branco na qual tudo será impresso pelas sensações e pela experiência, nada possuindo de inato), o essencial é que a Luz Natural significa a capacidade de autoiluminação do pensamento, uma faculdade inteiramente natural de conhecimento que alcança a verdade sem necessidade da Revelação ou da Luz Sobrenatural (ainda que alguns filósofos, como Pascal, Leibniz ou Malebranche, considerem que certas verdades só podem ser alcançadas pela Luz Natural se esta for auxiliada pela luz da Graça Divina). 

A primeira intuição evidente, verdade indubitável de onde partirá toda a filosofia moderna, concentra-se na célebre formulação de Descartes: "Penso, logo existo" (Cogito, ergo sum). O pensamento consciente de si como "Força Nativa" (a expressão é de Espinosa), capaz de oferecer a si mesmo um método e de intervir na realidade natural e política para modificá-la, eis o ponto fixo encontrado pelos modernos.


*Marilena Chauí in Filosofia moderna, USP

domingo, 29 de março de 2009

O Erótico Bandeira

BODA ESPIRITUAL 

 
Tu não estás comigo em momentos escassos: 
No pensamento meu, amor, tu vives nua 
- Toda nua, pudica e bela, nos meus braços. 

 
O teu ombro no meu, ávido, se insinua. 
Pende a tua cabeça. Eu amacio-a ... Afago-a ... 
Ah, como a minha mão treme ... Como ela é tua ... 

 
Põe no teu rosto o gozo uma expressão de mágoa. 
O teu corpo crispado alucina. De escorço 
O vejo estremecer como uma sombra n'água. 

 
Gemes quase a chorar. Suplicas com esforço. 
E para amortecer teu ardente desejo 
Estendo longamente a mão pelo teu dorso ... 

 
Tua boca sem voz implora em um arquejo.
Eu te estreito cada vez mais, e espio absorto 
A maravilha astral dessa nudez sem pejo ... 

 
E te amo como se ama um passarinho morto. 


 *Manuel Bandeira in A Cinza das Horas,1917  

Inspiração divina... (O Papa é Punk)

Joseph Ratzinger é deveras uma pessoa da qual podemos chamar no mínimo de excêntrica (isso pra não dizer esquizofrênica), em visita recente ao continente africano, um lugar que concentra 75% dos mortos pelo HIV no mundo, disse abertamente que essa doença, a aids é "uma tragédia que não pode ser combatida apenas com dinheiro ou a distribuição de preservativos, os quais podem, inclusive, aumentar o problema." Um continente onde, em vários países, o descontrole é total sobre a epidemia, as políticas públicas são pífias assim como a educação teria de fato senso crítico para julgar esse atentado à razão? A Igreja poderia muito bem com suas posses, seus homens cultos e seu poder político, liderar uma verdadeira cruzada contra a doença na região mas, essa é uma parte pobre do mundo, então é sempre mais fácil culpar a foda alheia... Graças aos céus (força de expressão) a França interviu: "Enquanto não cabe a nós julgar a doutrina da Igreja, consideramos que tais comentários são uma ameaça às políticas de saúde pública e a obrigação de proteger a vida humana", disse o porta-voz do ministro das Relações Exteriores francês, Eric Chevallier.


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Pois Bem, esse cara (o papa) ta tentando sacanear o bom senso do mundo de uma maneira obscena, e eu me pego pensando:


"Maldição! Minha Avózinha pensa que Deus cochicha no ouvido dele..."


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Ps: Eu gostava desse outro cara.

O Diabo é um alter ego?

Mefistófeles: “Perdoa se não uso alta e fina linguagem.Às vaias da assistência há muito tenho horror.Minha tara a teus risos dará sempre margem também caso não hajas perdido o teu humor, do sol e das estrelas eu não compreendo, atormentar os homens é só o que entendo”(...)

“De sol e de mundos nada sei dizer, vejo apenas como os homens se atormentam. O pequeno Deus do mundo [o homem] continua na mesma e está tão admirável assim como no primeiro dia. Um pouco melhor ele viveria, não lhe tivesses dado o brilho da luz celeste; ele chama isto razão e lança mão dela somente para ser mais animalesco do que cada animal.”

Fausto: “Sou velho demais para somente me divertir; moço demais, para ser sem desejos. Que pode o mundo bem proporcionar-me? A existência é um fardo.”

*Fotos de John Hancock (Fausto) e Stephen West (Mefistófeles) em "Faustus, the Last Night", texto (fragmentos) do poema "Fausto" de Goethe

sábado, 28 de março de 2009

Nietzsche acreditava no sistema?

O homem ativo, agressivo, violento, está sempre cem passos mais próximo da justiça do que o homem reacionário. Porque, precisamente, não tem necessidade de depreciar com falsidade e preconceito o seu objeto, como faz - como é obrigado a fazer - o homem reacionário. E é por isso que, de fato, em todas as épocas, o homem agressivo - o mais forte, o mais corajoso, o de maior nobreza - teve sempre pelo seu lado um olhar mais livre e uma melhor consciência; e, por oposição, é fácil adivinhar quem tem na consciência o peso da invenção da "má consciência"... o homem do ressentimento! Interrogue-se, enfim, a história: qual o terreno em que até hoje a posse do direito e a própria necessidade do direito mostrou estar deveras na sua pátria? Terá sido no terreno do homem reacionário? Nem por sombras...Pelo contrário, foi sempre na esfera do homem ativo, vigoroso, espontâneo, agressivo. Para desagrado do agitador acima citado (que um dia fez sobre si próprio a seguinte confissão: "A doutrina da vingança é o fio condutor da justiça que atravessa todos os meus trabalhos e todos os meus esforços.", diga-se que, historicamente o direito representa sempre a luta contra os sentimentos reacionários, a guerra que as forças ativas e agressivas lhes moveram usando uma parte do seu vigor para conter a torrente do pathos reativo dentro de limites comportáveis e para lhe impor um compromisso.Seja onde for que exista o exercício do direito, em qualquer parte do mundo onde reine a justiça, o que se observa é que um poder mais forte, na sua relação com um poder mais fraco (seja o de grupos, seja o de indivíduos), trata de procurar os meios necessários para pôr termo à fúria sem sentido do ressentimento, em parte arrancando o objeto do ressentimento às garras da vingança, em parte subsituindo ele mesmo a vingança pela guerra aberta contra os inimigos da paz e da ordem, em parte, inventando, propondo ou, se necessário impondo compromissos, em parte ainda estabelecendo normas relativas às compensações de danos, de modo a conseguir, de uma vez por todas, remeter para elas o ressentimento.

*Friedrich Nietzsche in Genealogia da Moral

Problemas entre a teoria compatibilista e o determinismo (Entre a coação e a liberdade de escolha)

Muitos filósofos da tradição empirista admitiram que o determinismo é um problema real e acreditam que o determinismo é verdadeiro, mas sustentam que este é compatível com a responsabilidade. Sustentam que se um agente é responsável, tem de ser livre, não da necessidade causal, mas de compulsão ou coação. O exemplo paradigmático de falta de liberdade é estar na prisão. Um prisioneiro não pode ser objeto de reprovação por não visitar a sua tia doente, pois é constrangido a permanecer no cárcere. Só se eu for compelido a fazer algo, ou a não fazê-lo, é que fico isento de ter de dizer porque o fiz ou não. Visto que – seja o que for que dizem os psicólogos - é manifestamente verdade que não somos compelidos a fazer a maioria das coisas que fazemos, segue-se que somos responsáveis. Na verdade, independentemente da exegese específica que se possa oferecer, temos de ser responsáveis de modo geral pelas nossas ações, uma vez que usamos a palavra “responsável” e o seu uso determina o seu significado. Quaisquer que sejam os critérios que apliquemos para decidir se alguém é responsável ou não, esses critérios determinam o significado da palavra, e, portanto, fazem com que a palavra seja bem aplicada pelo menos em certos casos.

O argumento, tal como é apresentado, não é convincente. Não obstante ser certamente verdade que um homem não é livre se for constrangido ou compelido, não se segue de modo nenhum que ele não é livre apenas se for constrangido ou compelido. Para tornar isso plausível, teríamos de entender as palavras ‘constrangido’ e ‘compelido’ num sentido muito alargado. No sentido habitual das palavras, o cleptomaníaco não é constrangido ou compelido a roubar: ninguém move o seu corpo contra a sua vontade, ninguém lhe está a cravar uma faca ou o cano de uma pistola nas costas, ameaçando-o de morte se não fizer o que lhe é dito. Se dizemos, no entanto, que ele é constrangido a roubar por causa das suas neuroses ou traumas de infância, estamos a alargar o conceito e, neste sentido alargado, temos de admitir que, à luz de novas descobertas, todos os casos de tomadas de decisão humanas possam vir a ser casos de constrangimento ou coação. Se o compatibilista se remete ao sentido estrito de ‘constrangido’ e ‘compelido’, há contra-exemplos à elucidação que propõe sobre o real significado da liberdade; se ele procura abarcar esses contra-exemplos, dizendo que nestes casos os agentes estão, vistas bem as coisas, a agir sob alguma compulsão ou coação, então deixa de ter fundamentos para negar que possa vir a acontecer que todas as nossas ações sejam casos de compulsão ou coação. Nem pode fundamentar um argumento geral sobre a circunstância de termos a palavra ‘responsável’ e de a sabermos usar. Não há argumentos válidos da linguagem para a realidade. Temos o conceito de ‘disco voador’, mas daí não se segue que existam discos voadores.


*J. R. Lucas, Responsibility (Oxford, 1995, pp. 14, 15). Tradução de Carlos Marques. (Adaptado da edição portuguesa).

sexta-feira, 27 de março de 2009

CANCIÓN DE LA VIDA PROFUNDA

Hay días en que somos tan móviles, tan móviles,
como las leves briznas al viento y al azar…
Tal vez bajo otro cielo la Gloria nos sonría…
La vida es clara, undívaga, y abierta como un mar…
Y hay días en que somos tan fértiles, tan fértiles,
como en Abril el campo, que tiembla de pasión;
bajo el influjo próvido de espirituales lluvias,
el alma está brotando florestas de ilusión.
Y hay días en que somos tan sórdidos, tan sórdidos,
como la entraña obscura de obscuro pedernal;
la noche nos sorprende, con sus profusas lámparas,
en rútilas monedas tasando el Bien y el Mal.
Y hay días en que somos tan plácidos, tan plácidos…
¡niñez en el crepúsculo! ¡lagunas de zafir!-
que un verso, un trino, un monte, un pájaro que cruza,
¡y hasta las propias penas! nos hacen sonreír…
Y hay días en que somos tan lúbricos, tan lúbricos,
que nos depara en vano su carne la mujer;
tras de ceñir un talle y acariciar un seno,
la redondez de un fruto nos vuelve a estremecer.
Y hay días en que somos tan lúgubres, tan lúgubres,
como en las noches lúgubres el llanto del pinar:
el alma gime entonces bajo el dolor del mundo,
y acaso ni Dios mismo nos pueda consolar.
Mas hay también ¡oh Tierra! un día… un día…
un día en que levamos anclas para jamás volver;
un día en que discurren vientos ineluctables…
¡Un día en que ya nadie nos puede retener!



*Porfirio Barba Jacob

Diálogo Filosófico


- As coisas não são o que são, mas também não são o que não são - disse o professor suíço ao estudante brasileiro.
- Então, que são as coisas? - inquiriu o estudante.
- As coisas simplesmente não.
- Sem verbo?
- Claro que sem verbo. O verbo não é coisa.
- E que quer dizer coisas não?
- Quer dizer o não das coisas, se você for suficientemente atilado para percebê-lo.
- Então as coisas não têm um sim?
- O sim das coisas é o não. E o não é sem coisa. Portanto, coisa e não são a mesma coisa, ou o mesmo não.
O professor tirou do bolso uma não-barra de chocolate e comeu um pedacinho, sem oferecer outro ao aluno, porque o chocolate era não.

*Carlos Drummond de Andrade - Contos Plausíveis, in Andrade, C. D. (1992): Poesia e Prosa, Rio de Janeiro: Aguilar, pg. 1261

quinta-feira, 26 de março de 2009

O Mistério das Cousas

Há Metafísica bastante em não pensar em nada. 
O que penso eu do mundo? 
Sei lá o que penso do mundo! 
Se eu adoecesse pensaria nisso. 
Que idéia tenho eu das cousas? 
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos? 
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma 
E sobre a criação do Mundo? 
Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos 
E não pensar. É correr as cortinas 
Da minha janela (mas ela não tem cortinas). 
O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério! 
O único mistério é haver quem pense no mistério. 
Quem está ao sol e fecha os olhos, 
Começa a não saber o que é o sol 
E a pensar muitas cousas cheias de calor. 
Mas abre os olhos e vê o sol, 
E já não pode pensar em nada, 
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos 
De todos os filósofos e de todos os poetas. 
A luz do sol não sabe o que faz 
E por isso não erra e é comum e boa. 
Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores? 
A de serem verdes e copadas e de terem ramos 
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar, 
A nós, que não sabemos dar por elas. 
Mas que melhor metafísica que a delas, 
Que é a de não saber para que vivem 
Nem saber o que não sabem? 
"Constituição íntima das cousas"... 
"Sentido íntimo do Universo" ... 
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada. 
É incrível que se possa pensar em cousas dessas, 
É como pensar em razões e fins 
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores 
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão. 
Pensar no sentido íntimo das cousas 
É acrescentado, como pensar na saúde 
Ou levar um copo à água das fontes. 
O único sentido íntimo das cousas 
É elas não terem sentido íntimo nenhum. 
Não acredito em Deus porque nunca o vi. 
Se ele quisesse que eu acreditasse nele, 
Sem dúvida que viria falar comigo 
E entraria pela minha porta dentro 
Dizendo-me, Aqui estou! 
(Isto é talvez ridículo aos ouvidos 
De que, por não saber o que é olhar para as cousas, 
Não compreende quem fala delas 
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.) 
Mas se Deus é as flores e as árvores 
E os montes e sol e o luar, 
Então acredito nele, 
Então acredito nele a toda a hora, 
E a minha vida é toda uma oração e uma missa, 
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos. 
Mas se Deus é as árvores e as flores 
E os montes e o luar e o sol, 
Para que lhe chamo eu Deus? 
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar; 
Porque, se ele se fez, para eu o ver, 
Sol e luar e flores e árvores e montes, 
Se ele me aparece como sendo árvores e montes 
E luar e sol e flores, 
É que ele quer que eu o conheça 
Como árvores e montes e flores e luar e sol. 
E por isso eu obedeço-lhe, 
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?), 
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente, 
Como quem abre os olhos e vê, 
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes, 
E amo-o sem pensar nele, 
E penso-o vendo e ouvindo, 
E ando com ele a toda a hora.


*Alberto Caeiro (Fernando Pessoa)

À une passante


La rue assourdissante autour de moi hurlait.
Longue, mince, en grand deuil, douleur majestueuse ,
Une femme passa, d' une main fastueuse
Soulevant, balançant le feston et l'ourlet;


Agile et noble, avec sa jambe de stautue.
Moi, je buvais, crispé comme un extravagant,
Dans son oeil, ciel livide où germe l'ouragan,
La douceur qui fascine et le plaisir qui tue.

Un éclair...puis la nuit! - Fugitive beauté
Dont le regard m'a fait soudainement renaître,
Ne te verrai-je plus que dans l'eternité?

Ailleurs, bien loin d'ici! trop tard! "jamais" peut-être!
Car j'ignore où tu fuis, tu ne sais où je vais,
Ô toi que j'eusse aimée, ô toi qui le savais!

A Uma Passante
A rua ensurdecedora ao redor de mim agoniza. 
Longa, delgada, em grande luto, dor majestosa,
Uma mulher passa, de uma mão faustosa,
Soerguendo-se, balançando o festão e a bainha;

Ágil e nobre, com sua perna de estátua.
Eu, embevecido, inquieto como um extravagante,
Em seus olhos, o céu lívido onde se oculta o furacão,
A doçura que fascina e o prazer que destrói.

Um clarão... depois a noite! - Beleza fugidia
Cujo olhar me faz subitamente renascer,
Não te verei senão na eternidade? 

Alhures; bem longe daqui! Muito tarde! Jamais talvez!
Pois ignoro onde tu foste, tu não sabes onde vou,
Ah se eu a amasse, ah se eu a conhecesse!
*Charles Baudelaire - Tradução Marco Antonio Frangiotti

Noite

Há tantas coisas germinando na noite, que nem sei como enumerá-las. À noite nascem as revoluções tanto as que vão triunfar como as que só se realizam em pensamento, e são quase todas. Os revolucionários viram-se, inquietos, na cama. E também os que se converterão, pela manhã, a religiões novas. E os amorosos. Análises emocionais levadas ao extremo da tortura arrastam-se pela horas lentas da noite. Como a noite é rica! A noite é o tempo de não dormir; é o de velar e procurar; de criar mundos.

Demétrio quis prolongar a noite obturando todas as frestas do quarto, para que não entrasse a luz. Luz não entrou. Demétrio gozou da noite plena, continuada, e todos os pensamentos lhe floresciam. Construiu sistemas filosóficos. A escuridão era propícia a teorias políticas. Nenhum crítico foi mais perspicaz do que Demétrio, na literatura e nas artes. Aquela noite era fantástica. Demétrio quis experimentar as sensações de horror, êxtase, humilhação, glória, poder e morte. Morreu, mesmo no escuro. Tendo sentido a morte em seu interior físico, não pôde mais tirá-la de si. É o único morto, conscientemente morto, de que já ouvi falar nesta vida. A noite é fantástica.


*Carlos Drummond de Andrade -  Contos Plausíveis, in Andrade, C. D. (1992): Poesia e Prosa, Rio de Janeiro: Aguilar, pg. 1240.

Os Sofistas e a Religião

PERGUNTA: Vimos como a sofística analisou criticamente a relação entre governantes e governados e elaborou novas concepções do direito, da justiça e do poder; em alguns fragmentos dos sofistas há inclusive acenos para a religião como instrumento de domínio sobre o povo. Qual a atitude da sofística a respeito da religião?

HÖSLE: Acredito que a crítica da religião, que inicia no século V AC, tenha três fases. A primeira é uma crítica anda interna à religião, e se trata do problema da teodicéia - o problema que cada pessoa religiosa tem, o de ver pessoas justas sofrerem no mundo e pessoas injustas estarem bem. Esta crítica à religião, conforme é desenvolvida em frases às vezes tremendas na tragédia grega, é crítica que ainda continua fiel a concepções religiosas e tenta apenas transcender um conceito ingênuo da divindade para alcançar um conceito mais profundo.

O segundo nível de crítica à religião é o que se pode chamar a crítica científica. De acordo com este nível, não tem sentido pensar que as divindades agem no mundo. Este é apenas um pretexto das pessoas que são incapazes de explicar os verdadeiros nexos causais. O exemplo mais belo disso é a escrito sobre a epilepsia de Hipócrates, escrito em que é dito claramente que é sinal de fraqueza dos médicos atribuírem causas divinas a esta doença, que era denominada a doença sagrada. Segundo Hipócrates, esta doença tem causas normais como todas as outras doenças e pode ser resolvida de modo racional, pode ter cura.

O terceiro aspecto de crítica da religião é uma crítica antropológica, segundo a qual a religião nasce das exigências dos seres humanos. Estes - é dito - chamam divindades as suas próprias necessidades; por exemplo, Demétrio tem a ver com o pão, Dionísio, com o vinho, etc. Por um lado, a necessidade dos seres humanos, por outro, o interesse de pessoas astutas que percebem que através da religião podem guiar as massas. Este é o famoso fragmento de Crítia que antecipa idéias nietzscheanas, segundo as quais um ser humano inteligente inventou a divindade para que os seres humanos fossem capazes ou se sintam obrigados a respeitar o bem, até mesmo quando não devem temer serem punidos imediatamente. Este é um dos grandes problemas da sofística. Esta, enquanto rejeita um fundamento da moral que esteja além do próprio ser humano, tenta fundar a moral sobre o egoísmo racional. E este, segundo minha opinião, é absolutamente impossível, e na sofística todas as formas de utilitarismo, de hedonismo que são desenvolvidas procuram dizer o seguinte: se houvesse uma pessoa que não devesse temer nada agindo de modo imoral, por que deveria agir moralmente? No Anonymus Iamblici, texto bastante fascinante da sofística, é desenvolvida a idéia de um homem feito de aço, não mortal, e se diz que, para tal pessoa feita de aço não haveria motivo algum para que respeitasse a moral. A razão de que dispomos para respeitar a moral é o fato de querermos evitar que sejamos punidos por outros. Deste modo, porém, fica claro que uma pessoa que deve morrer em qualquer caso não tem motivo algum, se não antes da própria morte, de cometer alguns crimes gravíssimos, se esta fosse a base da moral. Por isso, o problema da religião torna-se importante na medida em que, baseando-se nesta convicção, se torna necessário inventar algo que consiga manter as massas sob controle.


*Prof. Vittorio Hösle em entrevista - acervo da "Enciclopedia Multimediale delle Scienze Filosofiche"

Ciência e seu nascimento

A ciência tem de envolver mais do que a mera catalogação de fatos e do que a descoberta, através da tentativa e erro, de maneiras de proceder que funcionam. O que é crucial na verdadeira ciência é o fato de envolver a descoberta de princípios que subjazem e conectam os fenômenos naturais. 

Apesar de que concordar completamente que devemos respeitar a visão do mundo de povos indígenas não europeus, não penso que coisas como a astronomia maia, a acupuntura chinesa, etc., obedeçam à minha definição. O sistema ptolomaico de epiciclos alcançou uma precisão razoável ao descrever o movimento dos corpos celestes, mas não havia qualquer teoria propriamente dita subjacente ao sistema. A mecânica newtoniana, pelo contrário, não apenas descrevia os movimentos dos planetas de modo mais simples, conectava o movimento da Lua com a queda da maçã. Isto é verdadeira ciência, pois revela coisas que não podemos saber de nenhuma outra maneira. 

Terá a astronomia maia ou a acupunctura chinesa alguma vez conduzido a uma previsão que não tenha falhado nem seja trivial e que tenha conduzido a novos conhecimentos sobre o mundo? Muitas pessoas tropeçaram no fato de que certas coisas funcionam, mas a verdadeira ciência consiste em saber por que razão as coisas funcionam. Tenho uma atitude de abertura em relação à acupuntura, mas se tal coisa funcionar, apostaria muito mais numa explicação baseada em impulsos nervosos do que em misteriosas correntes de energia cuja realidade física nunca foi demonstrada. 

Por que razão nasceu a ciência na Europa? Na época de Galileu e Newton a China era muito mais avançada tecnologicamente. Contudo, a tecnologia chinesa (como a dos aborígenes australianos) foi alcançada por tentativa e erro, refinados ao longo de muitas gerações. O boomerang não foi inventado partindo da compreensão dos princípios da hidrodinâmica para depois conceber um instrumento. A bússola (descoberta pelos chineses) não envolveu a formulação dos princípios do magnetismo. Estes princípios emergiram da (verdadeira, segundo a minha definição) cultura científica da Europa. Claro que, historicamente, surgiu também alguma ciência de descobertas acidentais que só mais tarde foram compreendidas. Mas os exemplos mais óbvios da verdadeira ciência — tais como as ondas de rádio, a energia nuclear, o computador, a engenharia genética — emergiram, todos eles, da aplicação de uma compreensão teórica profunda que já existia — muitas vezes há muito tempo — antes da tecnologia que se procurava. 

As razões que determinaram que tenha sido a Europa a dar à luz a ciência são complexas, mas têm certamente muito a ver com a filosofia grega e a sua noção de que os seres humanos podiam alcançar uma compreensão do modo como o mundo funciona por intermédio do pensamento racional, e com as três religiões monoteístas — o judaísmo, o cristianismo e o islamismo — e a sua noção de uma ordem na natureza, ordem essa que era real, legiforme, criada e imposta por um Grande Arquiteto. 

Apesar de a ciência ter começado na Europa, é universal e está agora à disposição de todas as culturas. Podemos continuar a dar valor aos sistemas de crenças das outras culturas, ao mesmo tempo que reconhecemos que o conhecimento científico é algo de especial que transcende a cultura. 

 

*Paul Davies - Tradução de Desidério Murcho (Adaptado)

ENTRE A ESCRAVIDÃO E A INSIGNIFICÂNCIA? (Deus e o prpósito da vida)



As questões sobre o sentido e o propósito [da vida] nem sempre perturbaram as pessoas como acontece hoje. Numa era religiosa estas questões eram deixadas ao cuidado de um sábio Criador. Este Criador, acreditava-se, fez o mundo, e tudo o que nele existe, com um propósito. O Homem, e cada homem individual, era parte de um grande desígnio. Além disso, o homem ocupava um lugar de especial importância nesse desígnio, tendo sido feito ‘à imagem de Deus’ por um acto especial de criação. Foi-lhe dado o poder da razão que o colocou acima dos animais. Além disso, foi dotado, ao contrário destes últimos, de uma alma imortal. Isto significava que a morte não era o fim da vida de uma pessoa, mas apenas uma passagem para outra forma de existência superior, de acordo com o propósito de Deus. A terra e todas as suas criaturas foram dadas ao homem. Neste grande plano, a existência delas está ao serviço dos humanos. O lugar onde os humanos habitam, a terra, ocupava um lugar central no cosmos, tendo o sol e os outros corpos celestes sido criados para seu benefício.

O que resta destas crenças hoje? Hoje acreditamos que a terra é um planeta menor circulando em torno do sol, ele próprio uma estrela indistinta, uma entre um vasto número de estrelas pertencentes a uma galáxia que, por sua vez, faz parte de um conjunto inumerável ou mesmo infinito de galáxias. Este planeta menor apareceu devido a uma explosão casual de materiais cósmicos, sofreu vários processos químicos e continuará a existir e a ser uma casa onde se pode viver até que as condições voltem a mudar, quem sabe se devido a uma pequena mudança da temperatura do sol. É-nos dito que a vida surgiu provavelmente de uma combinação química acidental e que há razões para pensar que as mesmas condições possam surgir, ou tenham surgido, noutra parte do universo. A teoria da selecção natural diz-nos que a espécie humana não existe por um acto especial de Deus. Em vez disso, é o resultado de um processo de selecção cego decorrente da luta pela sobrevivência, tendo evoluído por pequenos passos imperceptíveis a partir de criaturas semelhantes a macacos, sendo o chimpanzé moderno um primo próximo. Os psicólogos dizem-nos que o pensamento e acção humanas são em larga medida determinados por processos obscuros inconscientes e não pela luz da razão. Além disso, apesar de ser válido que o homem detém poderes de discurso e de raciocínio especiais, está longe de ser claro que devamos considerar estes poderes mais especiais que estes ou aqueles poderes notáveis característicos de outros animais. Não há razão para pensar que o homem é melhor ou ‘superior’ e, olhando para as suas actividades destruidoras, até seria razoável fazer o juízo oposto.

E que dizer da crença no plano de Deus e da vida após a morte? Há ainda muita gente que defende estas ideias. Trata-se, no entanto, de uma minoria, pelo menos no mundo ocidental. Mesmo os crentes religiosos, cercados por uma cultura secular, não se sentem confortáveis com as perspectivas religiosas sobre o sentido e propósito como antigamente.

As concepções modernas do homem e do mundo não resultam meramente da substituição de uma explicação ou teoria por uma outra. Houve uma mudança no próprio conceito de explicação e quanto ao que uma explicação deve ser. Antes pensava-se que o único tipo de explicação real ou realmente satisfatória teria de referir-se a um propósito. Explicar-se-ia um fenómeno dizendo para que servia, qual o propósito que lhe dava um homem, animal ou Deus. Havia também a explicação causal que se referia ao que precedeu o fenómeno, mas este tipo de explicação era entendido como incompleto e inferior. Era apenas com o outro tipo que podíamos obter uma compreensão real. Nos tempos modernos, porém, e especialmente desde a época de Hume, a explicação causal suplantou largamente o outro tipo, o tipo teleológico. As teorias científicas modernas não são expressas em termos teleológicos e as modernas leis da natureza não são acerca de fins e de propósitos, mas acerca de regularidades observadas no mundo. Explicamos porque acontece algo, não olhando para a frente em direcção a um fim ou objectivo, mas olhando para trás para uma causa antecedente.

Num certo sentido, estas explicações são menos satisfatórias do que as explicações teleológicas. A explicação que faz referência às leis da natureza diz, com efeito, que um acontecimento ou sequência de acontecimentos ocorre porque as coisas sempre assim ocorrem. Porém, isto é apenas ligar um facto bruto (um facto particular) a outro (uma regularidade geral). Nesse sentido, diz-se muitas vezes que a ciência moderna é, no fim de contas, meramente descritiva. Diz-nos como acontecem as coisas e não porquê. Uma explicação teleológica, ao invés, dá sentido e significado ao acontecimento. Isto é particularmente claro no caso de uma acção humana consciente, na qual a percepção do significado da acção pode ser dado pelo agente em termos do propósito deste ou desta. Se este tipo de explicação pudesse ser aplicado aos fenómenos naturais em geral, também eles teriam este género de significado. Mas, como já disse, este modo de explicar foi largamente abandonado em favor do outro tipo de explicação, ‘sem sentido’, que se mostrou mais frutuoso em outros aspectos.

Qual o impacte destas mudanças na nossa concepção de nós mesmos? ‘Poderia argumentar-se, escreve Kurt Baier, que quanto mais claramente compreendemos as explicações dadas pela ciência, mais somos levados para a conclusão de que a vida humana não tem um propósito e, portanto, um sentido’. Baier rejeita esta conclusão. Nota que no sentido habitual de ‘propósito’, as vidas humanas não estão menos ligadas a um propósito do que estavam antes. Continuamos a viver grande parte das nossas vidas perseguindo objectivos de um tipo ou de outro. A questão ‘Porque estás a fazer isso?’, ou seja, ‘Qual o teu propósito?’, continua a ser posta tanto quanto o era antes e uma resposta satisfatória pode ser dada em muitos casos. É verdade que algumas pessoas vivem as suas vidas com menos rumo do que outras, mas também neste caso sempre assim foi e nada tem a ver com os desenvolvimentos científicos e com a moderna concepção do lugar do homem no mundo. De facto, segundo Baier, ‘A ciência não só não nos roubou nenhum propósito que tínhamos antes, mas apetrechou-nos com um poder muito maior para atingir estes propósitos’.

Baier distingue ainda um uso secundário de ‘propósito’, aplicado a coisas e não a pessoas, como quando perguntamos ‘Qual o propósito daquele aparelho que instalaste na oficina?’ Neste caso, não estamos a dizer que o objecto é motivado por um propósito. A ideia é antes a de que ele serve um propósito, o propósito da pessoa que o fez ou instalou. É este sentido de propósito diminuído pela perspectiva científica? Não. Continuamos a fazer todo o género de coisas destinadas a servir um propósito dizendo, neste sentido, que ‘têm um propósito’.

Mas o que dizer do homem? Pode dizer-se que o homem, na perspectiva religiosa, serve um propósito, em vez de perseguir propósitos por si. E esta atribuição de propósito, esta resposta à questão sobre o propósito da vida, fica fora do nosso alcance uma vez abandonada a perspectiva religiosa. Para Baier, porém, esta resposta sempre foi desprovida de valor. ‘Atribuir a um ser humano um propósito neste sentido... é ofensivo. É degradante para um homem ser visto como algo que serve um propósito’. Ao tratar um homem dessa forma, diz Baier, ‘reduzi-lo-íamos ao nível do utensílio, do animal doméstico ou talvez do escravo, tratá-lo-íamos, como na frase de Kant, meramente como um meio para os nossos fins, não como um fim em si mesmo’.

Estas observações são verdadeiras e importantes. São elas relevantes? Se tratamos os seres humanos dessa maneira, como ‘servindo um propósito’, não teríamos por eles o devido respeito e o nosso tratamento seria moralmente ofensivo. Mas daqui não se segue que os seres humanos seriam degradados por servir o plano de Deus, que Ele os degrada ao tratá-los dessa forma ou ao criá-los para o Seu propósito. Uma observação similar pode ser feita acerca da relação entre homens e animais. A maior parte das pessoas diria que não é degradante para um animal o ser usado para um propósito. Por exemplo, se alguém compra um cão para desencorajar os ladrões, isto não seria moralmente degradante ou ofensivo. 

Os crentes religiosos não são, e não precisam de se sentir, ofendidos pela ideia de que existem para servir um propósito de um ser superior. Podem também afirmar que isto dá às suas vidas o tipo de propósito e sentido que a perspectiva científica só por si lhes não poderia dar.

As observações de Baier acerca do papel permanente e, na verdade, inevitável da existência de um propósito nas nossas vidas não nos ajudam também quanto ao sentimento de insignificância que resulta da revolução científica. Ficamos chocados quando tomamos conhecimento destes factos sobre a situação humana no espaço e no tempo e ficámos chocados quando estas ideias foram introduzidas pela primeira vez. Segue-se delas que as nossas vidas são realmente sem sentido? É claro que não há um silogismo que procede de premissas acerca de cosmologia ou da selecção natural para a conclusão de que a nossa vida é desprovida de sentido. E deve notar-se, como faz Baier, que há critérios independentes de questões de cosmologia ou de história natural que podem ser usados para descrever uma vida humana quer como plena de sentido quer como desprovida dele.

No entanto, a imagem científica priva-nos de sentido numa acepção diferente. Há uma conexão entre sentido e importância e se a imagem científica é correcta, não temos a importância que pensávamos ter. Esta conexão entre sentido e importância está reflectida no uso da palavra ‘insignificante’. Algo que não tem importância pode ser descrito como insignificante ou (nessa acepção) sem sentido. Podemos entender desta maneira o veredicto de Macbeth ‘a vida não é mais do que uma sombra em movimento ... que nada significa’.

*Oswald Hanfling, The Quest For Meaning (Oxford, 1987), pp. 42-46. Tradução de Carlos Marques.


O Problema Metafísico


É costume dizer-se que cada um tem sua Filosofia e até que todos os homens têm opiniões metafísicas. Nada poderia ser mais tolo. É verdade que todos os homens têm opiniões, e que algumas delas - tais como as opiniões sobre religião, moral e o significado da vida - confinam com a Filosofia e a Metafísica, mas raros são os homens que possuem qualquer concepção de Filosofia e ainda menos os que têm qualquer noção de Metafísica.

William James definiu algures a Metafísica como "apenas um esforço extraordinariamente obstinado para pensar com clareza". Não são muitas as pessoas que assim pensam, exceto quando seus interesses práticos estão envolvidos. Não têm necessidade de assim pensar e, daí, não sentem qualquer propensão para o fazer. Excetuando algumas raras almas meditativas, os homens percorrem a vida aceitando como axiomas, simplesmente, aquelas questões da existência, propósito e significado que aos metafísicos parecem sumamente intrigantes. O que sobretudo exige a atenção de todas as criaturas, e de todos os homens, é a necessidade de sobreviver e, uma vez que isso fique razoavelmente assegurado, a necessidade de existir com toda a segurança possível. Todo pensamento começa aí, e a sua maior parte cessa aí. Sentimo-nos mais à vontade para pensar como fazer isto ou aquilo. Por isso a engenharia, a política e a indústria são muito naturais aos homens. Mas a Metafísica não se interessa, de modo algum, pelos "comos" da vida e sim apenas pelos "porquês", pelas questões que é perfeitamente fácil jamais formular durante uma vida inteira.

Pensar metafisicamente é pensar, sem arbitrariedade nem dogmatismo, nos mais básicos problemas da existência. Os problemas são básicos no sentido de que são fundamentais, de que muita coisa depende deles. A religião, por exemplo, não é Metafísica; e, entretanto, se a teoria metafísica do materialismo fosse verdadeira, e assim fosse um fato que os homens não têm alma, então grande parte da religião soçobraria diante desse fato. Também a Filosofia Moral não é Metafísica e, entretanto, se a teoria metafísica do determinismo, ou se a teoria do fatalismo fossem verdadeiras, então muitos dos nossos pressupostos tradicionais seriam refutados por essas verdades. Similarmente, a Lógica não é Metafísica e, entretanto, se se apurasse que, em virtude da natureza do tempo, algumas asserções não são verdadeiras nem falsas, isso acarretaria sérias implicações para a Lógica tradicional.

Isto sugere, contrariamente ao que em geral se supõe, que a Metafísica vê um alicerce da Filosofia e não o seu coroamento. Se for longamente exercido. o pensamento filosófico tende a resolver-se em problemas metafísicos básicos. Por isso o pensamento metafísico é difícil. Com efeito, seria provavelmente válido afirmar que o fruto do pensamento metafísico não é o conhecimento, mas o entendimento. As interrogações metafísicas têm respostas e, entre as várias respostas concorrentes, nem todas poderão ser verdadeiras, por certo. Se um homem enuncia uma teoria de materialismo e um outro a nega, então um desses homens está errado; e o mesmo acontece a todas as outras teorias metafísicas. Contudo, só muito raramente é possível provar e conhecer qual das teorias é a verdadeira. 0 entendimento, porém - e, por vezes, uma profundidade muito considerável do mesmo resulta de vermos as persistentes dificuldades em opiniões que freqüentemente parecem, em outras bases, ser muito obviamente verdadeiras. É por essa razão que um homem pode ser um sábio metafísico sem que, não obstante, sustente suas opiniões e juízos em conceitos metafísicos. Tal homem pode ver tudo o que um dogmático metafísico vê, e pode entender todas as razões para afirmar o que outro homem afirma com tamanha confiança. Mas, ao invés do outro, também vê algumas razões para duvidar e, assim, ele é, como Sócrates, o mais sábio, mesmo em sua profissão de ignorância. Advirta-se o leitor, neste particular, de que quando ouvir um filósofo proclamar qualquer opinião metafísica com grande confiança, ou o ouvir afirmar que determinada coisa, em Metafísica, é óbvia, ou que algum problema metafísico gravita apenas em torno de confusões de conceitos ou de significados de palavras, então poderá estar inteiramente certo de que esse homem está infinitamente distante do entendimento filosófico. Suas opiniões parecem isentas de dificuldades apenas porque ele se recusa obstinadamente a ver dificuldades.

Um problema metafísico é indispensável dos seus dados, pois são estes que, em primeiro lugar, dão origem ao problema. Ora o datum, ou dado, significa literalmente algo que nos é oferecido, posto à nossa disposição. Assim, tomamos como dado de um problema certas convicções elementares do senso comum que todos ou a maioria dos homens estão aptos a sustentar com alguma persuasão íntima, antes da reflexão filosófica, e teriam relutância em abandonar. Não são teorias filosóficas. pois estas são o produto da reflexão filosófica e, usualmente, resultam da tentativa de conciliar certos dados entre si. São, pelo contrário, pontos de partida para teorias, as coisas por onde se começa, visto que, para que se consiga alguma coisa, devemos começar por alguma coisa, e não se pode gastar o tempo todo apenas começando. Observou Aristóteles: "Procurar a prova de assuntos que já possuem evidência mais clara do que qualquer prova pode fornecer é confundir o melhor com o pior, o plausível com o implausível e o básico com o derivativo," (Física, Livro VIII, Cap. 3 ) . Exemplos de dados metafísicos são as crenças que todos os homens possuem, independentemente da Filosofia, de que existem, de que tem um corpo, de que lhes cabe algumas vezes uma opção entre cursos alternativos de ação, de que por vezes deliberam sobre tais cursos, de que envelhecem e morrerão algum dia etc. Um problema metafísico surge quando se verifica que tais dados não parecem concordar entre si, que têm. aparentemente, implicações que não se revestem de coerência entre si. A tarefa, então, é encontrar alguma teoria adequada à remoção desses conflitos.

Talvez convenha observar que os dados, como os considero, não são coisas necessariamente verdadeiras nem evidentes em si mesmas. De fato, se o conflito entre certas convicções do senso comum não for tão-só aparente, mas real, então algumas dessas convicções estão fadadas a ser falsas, embora possam, não obstante, ser tidas na conta de dados até que sua falsidade se descubra. É isso o que torna excitante, por vezes, a Metafísica; nomeadamente o fato de sermos coagidos, algumas vezes, a abandonar certas opiniões que sempre havíamos considerado óbvias. Contudo, a Metafísica tem de começar por alguma coisa e, como não pode começar, obviamente, pelas coisas que já estão provadas, deve começar pelas coisas em que as pessoas acreditam; e a confiança com que uma pessoa sustenta suas teorias metafísicas não pode ser maior do que a confiança que deposita nos dados em que aquelas repousam(...)


*Richard Taylor - In Taylor, R. (1969): Metafísica, Rio de Janeiro: Zahar, pgs. 13-17.