Nessa seção traremos conceitos e breves considerações a respeito de ideologias e outras formas externas que fazem do homo sapiens um animal político. Boa leitura a todos.
Ideologia, o que é?
Ideologia é um termo inventado pelo sensualismo de Destutt de Tracy, em 1796, em Project d’Élements d’Idéologie, querendo significar ciência das ideias, o estudo sistemático, crítico e erapêutico dos fundamentos das ideias. Sofre logo uma rápida evolução semântica: de ciência das ideias passa a aspiração reformista envolvendo um programa político.
Conforme a definição de Marcel Prélot, são teses ligadas entre si e referidas a um princípio, dando origem a um plano intelectual de organização política, o qual constitui igualmente um todo ligado e coordenado. Para Jean Touchard, uma ideia política que tem peso social, como se fosse uma pirâmide com vários andares: no vértice, a doutrina, aquilo a que os marxistas chamam praxis; em seguida, as vulgarizações; depois, os símbolos e as representações colectivas.
Por outras palavras, a ideologia depressa passou a uma criatura que ultrapassou os limites conceituais que lhe foram estabelecidos pelo criador. É um sistema de pensamentos, um conjunto de pensamentos estratificados, um conjunto autónomo sujeito a leis próprias de desenvolvimento. Por outro lado, passou a significar uma espécie de programa político reformista, ligado aos amanhãs que cantam. Em terceiro lugar, a ideologia é um sistema de ideias conexas com a acção (Carl J. Friedrich), exigindo uma estratégia para a actuação.
A ideologia, como sistema de ideias que já não são pensadas por ninguém" (Weidle), tem, além do elemento racional motivador, o vasto campo da vulgata, que se traduz tanto em elementos emotivos como em elementos míticos. É, conforme Anthony Downs, uma verbal image of the good society, and the chief means of constructing such a society.
Gera, assim, ideologismos, pensamentos desligados ou independentes da acção. Essas imaginações do pensamento, que, conforme refere Emmanuel Mounier, correm o risco permanente de fazer passar por cima, isto é, ao lado da história, as forças espirituais com que nós queremos animar a história. Umas vezes tomam a forma de um racionalismo mais ou menos rígido. Constroem então com ideias ou, mais recentemente, com considerações técnicas de teóricos, um sistema coerente que pensam impor à história unicamente pela força da ideia. Quando a história viva ou a realidade do homem lhes resiste, crêem ser tanto mais fiéis à verdade quanto mais aperram ao sistema, tanto mais puros quanto mantém a sua utopia em imobilidade geométrica.
Não é por acaso que as várias ideologias são marcadas pela expressão ismo, esse sufixo de origem bizantina, divulgado no ocidente europeu pelos cultores da teologia.
Começou por ser utilizado em Portugal pela linguagem eclesiástica em palavras como baptismo, cristianismo, aforismo, exorcismo ou paganismo. Na época do renascimento, surgem várias palavras com o sufixo, por via erudita (v. g. humanismo).
Nova invasão, pela língua erudita, surge nos séculos XVIII e XIX, por via francesa, até que, nos começos do século XX passou a ser utilizado massivamente, passando da linguagem erudita à linguagem popular, coincidindo com o aparecimento da sociedade industrial.
Significa, em princípio, a generalização de alguma coisa. Na politologia serve sobretudo para qualificar uma doutrina, uma corrente de pensamento ou uma ideologia, bem como uma atitude, uma maneira de agir que se pretende de acordo com uma doutrina.
Segundo Karl Mannheim, as ideologias são as ideias que transcendem a situação e que nunca conseguiram realizar efectivamente o seu conteúdo virtual. Se a doutrina se limita a lançar directivas e opções de base que servem de fontes de inspiração na tradução concreta de um compromisso, já a ideologia dá forma fixa a um sistema rígido, assumindo o determinismo e o dogmatismo dos que pensam que uma determinada acção política se pode deduzir directamente de um sistema de ideias.
Por seu lado, as utopias representam uma fuga ao real e, portanto, uma renúncia, uma negação do mundo e dos seus conflitos (Jean Servier). Porque estão fora do espaço e do tempo, são estáticas face ao processo histórico:as utopias escrevem-se em sociedades cujos membros perderam a esperança de progresso e aspiram a um invencível equilíbrio estável como forma de travagem do declínio, como dizia Arnold Toynbee.
Com efeito, as ideologias e as utopias conduzem a uma atitude de desespero porque se traduzem num mero exercício mental ( pensa-se , não se vive) que pretende fornecer um modelo planificado do que deveria ser, segundo Garcia Pelayo.
E, na verdade, impossível encaixar o pluralismo da realidade no monismo de uma qualquer ideologia, de um qualquer sistema de ideias que procure parar o tempo, reduzindo-o a um modelo apriorístico. Como diz Antoine Saint-Exupery, aqui e ali erguiam-se falsos profetas , que conseguiam juntar alguns adeptos. E os fiéis, embora raros, encontravam-se animados e prontos a morrer pelas suas crenças. mas as crenças deles não valiam nada para os outros. E as crenças opunham-se todas umas às outras. Como só construíam igrejinhas, odiavam-se umas às outras, por terem o costume de tudo dividirem em erro e verdade. O que não é verdade é erro e o que não é erro é verdade.
É que os ideologismos, como salientava Mounier, correm o permanente risco de fazer passar por cima, isto é, ao lado da história, as forças espirituais com que nós queremos, precisamente, animar a história. Umas vezes tomam a froma de um racionalismo, o mais ou menos rígido. Constroem então com ideias ou, mais recentemente, com considerações técnicas de teóricos, um sistema corente que pensam impor à história unicamente pela força da ideia. Quando a história viva ou a realidade do homem lhes resiste, creem ser tanto mais fiéis à verdade quanto mais se aperram ao sistema, tanto mais puros quanto mantêm a sua utopia em imobilidade geométrica.
Cidadania, o que é?
Em sentido etimológico e segundo a definição de Aristóteles, cidadãos (politai) são aqueles que participam nas decisões da polis, exercendo um cargo político ou tendo direito de voto nas assembleias públicas ou nos júris. Por outras palavras, são os que não querem continuar escravos ou súbditos.
Nesta base o cidadão é aquele que ora governa ora é governado. Assim, difere do escravo (esse que é instrumento do senhor e tem um dono) e do súbdito (aquele dependente de um soberano ou de um patriarca, à imagem e semelhança da relação pai/filho, onde o poder, é um poder-dever, porque é para bem do súbdito que não é considerado instrumento).
Aristóteles refere que o cidadão é aquele que tem a possibilidade de aceder à assembleia dos cidadãos e de desempenhar funções judiciárias. Não é apenas aquele que habita num determinado território. Sem a participação dos cidadãos na governação não há política, até porque a polis não passa de uma colectividade de cidadãos.
Cidadania (citizenship em inglês e Staatsburgerschaft, em alemão), quer, assim, dizer pertença de um indivíduo a um determinado Estado, do ponto de vista jurídico interno, distinguindo-se da nacionalidade (nationality em inglês e Staatsangehorigkeit em alemão), a pertença de um indivíduo a um Estado do ponto de vista jurídico-internacional, abrangendo tanto os cidadãos propriamente ditos como os meros súbditos que não gozam da plenitude dos seus direitos.
A cidadania, enquanto participação nos assuntos públicos, impõe necessariamente um espaço público, um espaço onde a liberdade aparece e se torna visível a todos, não havendo instauração da liberdade sem que um corpo político garanta o espaço onde a liberdade pode surgir, onde a liberdade pode existir em público, transformando-se numa realidade mundana, tangível, qualquer coisa criada pelos homens para ser gozada pelos homens. Neste sentido, em política o que parece é também o que aparece e, logo, o que é.
Porque sem esta cidadania do agir em público, na praça pública, o domínio público transforma-se numa obscuridade, em algo de invisível, no segredo de Estado. Da mesma forma, a cidadania impõe uma felicidade pública e não apenas o bem-estar privado, que a própria tirania pode permitir. Como salienta a mesma Arendt há o perigo de confundir felicidade pública e bem-estar privado, dado que aquela consiste no direito de acesso do cidadão ao domínio público, da sua participação no poder público e os homens sabem que não podem ser totalmente felizes se a sua felicidade estiver situada e for apenas usufruída na vida privada. Além disso, a cidadania não se confunde apenas com a protecção dos indivíduos contra os abusos do poder. A liberdade política implica a felicidade política
Para Kant é o mesmo que autonomia. Uma terceira via que permite conciliar a ordem com a liberdade e só possível através do direito. É a submissão à autoridade que cada um dá a si mesmo. Assim, é possível rejeitar a liberdade sem ordem, a anarquia, bem como a ordem sem liberdade, o despotismo.
A ideia de cidadania rejeita, assim, o holismo, a doutrina que privilegia os todos sociais (do grego holos, o todo), o todo na sua inteireza. Está contra todas as perspectivas que consideram que o todo é superior à soma das respectivas parcelas.
A expressão foi consagrada por Louis Dumont, nos seus estudos sobre a Índia, ao considerar que o modelo holístico, onde o valor de uma pessoa deriva da sua inserção na comunidade concebida como um todo, se opõe ao modelo individualista da sociedade moderna, ocidental, onde o indivíduo constitui o valor supremo. A distinção entre o holismo e o individualismo corresponde à distinção de Tonnies entre comunidade, nascida de uma vontade essencial e orgânica, e sociedade, nascida de uma vontade reflectida, ou àquilo que Wilhelm Sauer considera a oposição entre o nós e os eus.
Qualquer um destes pólos constitui mero tipo-ideal, dado que, na prática, qualquer sociedade vive da dialéctica entre estes dois tipos, havendo apenas preponderância de um deles sobre o outro. Popper utiliza a categoria para abranger todas as filosofias da história anti-individualistas. Em sentido estrito, o termo serviu para auto-qualificar as teses do sul-africano Jan Smuts (1870-1950).
A polis não pode ser entendida como uma unidade substancial, onde há fusão dos respectivos membros num ser único, num todo contínuo, pelo que aderimos à perspectiva tomista que entende a cidade como mero todo de ordem, como unidade de ordem, como unidade de relação, como unidade na diversidade.
Se o holismo tende para o organicismo e para o totalitarismo, costuma salientar-se que a perspectiva tomista assuma uma perspectiva orgânica e totalista. Ambas as perspectivas divergem do atomicismo, quando assumem que o todo é mais do que a mera soma das partes. Neste sentido, São Tomás considera que o bem individual tem de submeter-se ao bem comum.
Anarquia, o que é?
Anarquia vem do fr. anarchie e este do grego anarchia. A palavra foi introduzida através das traduções latinas de Aristóteles. Em sentido etimológico era o mesmo que ausência de chefe. Do grego an (privação de), mais arche (poder, ordem).
Se a primeira teoria anarquista terá sido elaborada pela contestação hiper-individualista de Godwin ao Ancien Régime, em 1793, defendendo-se uma sociedade sem Estado, foi Proudhon, em 1840, quem primeiro se qualificou como anarquista, gerando-se, a partir de então um movimento social e político revolucionário que, durante a vigência da I Internacional, entre 1864 e 1872, rivalizou com o marxismo. Contudo, para Proudhon, tratava-se de uma anarquia positiva, assente no renascimento da vida local, destruída pelo jacobinismo.
O movimento foi particularmente assumido por autores russos. A ala de Bukunine defendia a utilização da violência para a destruição do capitalismo e do Estado. A de Kropotkine assumia uma via não violenta, assente na cooperação voluntária. Mas a primária e permanecente forma anarquista é a do anarquismo filosófico, depois assumida pelo anarquismo cristão do escritor russo Lev Tolstoi, invocando o pacifismo da lei do amor do Sermão da Montanha, contra o estadualismo, entendido como a violência organizada, semente donde brota o anarco-pacifismo de Gandhi, visando o estabelecimento de uma revolução não-violenta.
Tecnocracia, o que é?
Foi nos anos trinta do século XX que surgiu nos Estados Unidos da América a ideia de tecnocracia como uma nova forma de organização da sociedade, quando se admitiu que a economia poderia passar a ser dirigida por técnicos e organizadores, independentes dos proprietários.
Baseia-se na noção de eficiência, apelando para o domínio dos organizadores. Trata-se de uma velha tendência de todas as civilizações, também patente no mandarim do modelo chinês, o qual, para atingir esse estado era obrigado a um rigoroso exame, equivalente à s provas a que é sujeito o nosso licenciado ou à obra prima que era obrigado a fazer o companheiro das corporações medievais quando queria atingir o estatuto do mestre.
O fenómeno que também afectou o estalinismo transformou-se, pelo menos no campo ocidental, numa ideologia que, segundo Jean Meynaud, radica no facto de reservar o lugar central aos fenómenos económicos: a sua construção e articulação realiza-se em função da vida económica; auto-justifica-se em termos de eficácia económica para descobrir soluções óptimas no campo do bem-estar social, caracterizando-se pelo emprego dos métodos das ciências físicas para solucionar problemas sociais, assim como por uma grande confiança na técnica da planificação para regulamentar e desenvolver a economia.
Constitui uma espécie de transposição para a Europa Ocidental do pragmatismo norte-americano, mas desligado dos valores morais que sustentam a american way of life, transformando-se numa espécie de ideologia desenvolvimentista marcada pela ingenuidade planificadora. De certa maneira, não uma forma de tradução em calão do mito da era dos organizadores, conduzindo para o materialismo das sociedades de consumo e para os vazios éticos das falsas ideias de progresso.
Como salientava Paulo VI, há um neopositivismo tecnocrático que considera a técnica universal como forma dominante de actividade, como modo invasor de existir, mesmo como linguagem, sem que a questão do seu sentido seja realmente levantada.
Segundo Habermas, a relação entre o saber, a ciência e o político pode ser encarada de forma decisionista, de forma tecnocrática ou de forma pragmática. No modelo decisionista, os políticos conservam fora dos âmbitos da praxis coactivamente racionalizados uma reserva em que as questões práticas devem continuar a decidir-se por meio de actos de vontade. Já o modelo pragmatista considera que há uma comunicação recíproca onde os peritos aconselham os políticos que, por sua vez, os encarregam segundo as necessidades da prática. No modelo tecnocrático, os peritos são os verdadeiros soberanos e os políticos apenas tomam decisões fictícias.
Chega-se, assim, ao Estado dos tecnocratas, da tecno-estrutura (Galbraith) da managerial revolution (Burnham), típico da sociedade industrial. Um Estado que se transformou num Welfare State nas suas várias versões: desde o intervencionismo do New Deal e do keynesianismo dos modelos de raiz liberal, aos Estados Novos dos autoritarismos corporativos, depois transformado no Estado Social das ciclópicas tarefas, conforme a terminologia de Marcello Caetano. Legaz y Lacambra, a este respeito, refere a transformação do Estado Abstencionista num Estado Intervencionista. François Perroux, por seu lado, procurando traduzir a mesma realidade, fala na passagem de um Estado Abstencionista para um Estado Económico, de economia mista ou de economia de duplo sector. Há assim uma identificação entre Estado da Sociedade industrial e o Estado Administrativo ou Estado com executivo forte, todos produto de uma certa fase ideológica do mundo, dita da tecnocracia.
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