quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Alguma Filosofia de Karl Popper (parte 2)


O MÉTODO CRÍTICO.

Não é tarefa da lógica do conhecimento “a reconstrução racional das fases que conduziram o cientista à descoberta” (Popper, 1985, p. 32) da teoria científica. Não há caminho estritamente lógico que leve à formulação de novas teorias. As teorias científicas são construções que envolvem na sua origem aspectos não completamente racionais, tais como a imaginação, criatividade, intuição, etc. “As teorias são nossas invenções, nossas idéias – não se impõe a nós” (Popper, 1982, p. 144). São tentativas humanas de descrever e entender a realidade.

Para Popper, a tarefa da epistemologia ou da filosofia da ciência é reconstruir racionalmente “as provas posteriores pelas quais se descobriu que a inspiração era uma descoberta ou veio a ser reconhecida como conhecimento” (Popper, 1985, p. 32). Em outras palavras, não deve a epistemologia se preocupar em reconstruir a inspiração do cientista (isto é tarefa da psicologia da ciência) e não é importante para a questão da validade do conhecimento em que condições o cientista formulou a teoria. O método da ciência se caracteriza pela discussão crítica do conhecimento científico e pode ser denominado método crítico de teste dedutivo. Dada uma teoria, é possível, com auxílio de condições específicas (ou iniciais ou de contorno) e com auxílio da lógica dedutiva, derivar conclusões. Como exemplo, consideremos a teoria sobre a queda dos corpos que afirma ser a velocidade de queda proporcional ao peso. Ou seja:

Hipótese: a velocidade de queda de um corpo é proporcional ao seu peso.
Condições específicas: este tijolo é mais pesado do que esta pedra pequena. Ambos são abandonados simultaneamente a 2 m do solo.
Conclusão: o tijolo atingirá o solo antes da pedra.
Esta predição (conclusão derivada da teoria e das condições específicas) pode então ser confrontada com os fatos. Poderá então a conclusão ser incompatível com os fatos ou ser compatível.

No primeiro caso, como a lógica dedutiva é retransmissora da falsidade, no mínimo uma das premissas é falsa, se as condições específicas forem verdadeiras, então a teoria foi falseada ou falsificada ou refutada.

No segundo caso, como a lógica dedutiva não é retransmissora da verdade, não é necessariamente verdadeira a teoria. Na terminologia de Popper, a teoria foi corroborada, passou pelo teste empírico. Sempre haverá a possibilidade de no futuro derivar da teoria uma conseqüência que seja incompatível com os fatos e, portanto, as teorias científicas são sempre conjecturas. Não há forma de se provar a verdade de uma teoria científica; por mais corroborada que uma teoria seja, não está livre de crítica e no futuro poderá se mostrar problemática e poderá ser substituída por outra. Os indutivistas sempre enfatizaram a necessidade de se verificar as teorias através das suas conseqüências; na filosofia indutivista o importante é a verificação, pois, através dela, poder-se-ia justificar a verdade ou pelo menos a probabilidade das teorias. Para Popper, as verificações relevantes são aquelas que colocaram em risco a teoria, aquelas que aconteceram como decorrência de tentativas de teste (de refutação).
Casos verificadores são facilmente encontráveis para quase todas as teorias. Exemplificando mais uma vez com a hipótese de que a velocidade de queda de um corpo é proporcional ao seu peso: é possível se encontrar uma imensidade de casos verificadores constituídos por pares de corpos do tipo pedra e pena. Outro bom exemplo de alto grau de verificação pode ser encontrado na teoria astrológica; qualquer astrólogo é capaz de apresentar um número grande de previsões concretizadas. As severas tentativas de refutar uma teoria e que resultam em corroborações são as que realmente importam.
A história da ciência mostra teorias que durante um certo período de tempo foram corroboradas e, apesar disso, acabaram se tornando problemáticas. O exemplo mais impressionante é o da mecânica newtoniana: durante mais de duzentos anos foi corroborada espetacularmente. Aliás, algumas corroborações da mecânica newtoniana mostram que a lógica indutiva é insustentável. Ela corrigiu os fatos dos quais os indutivistas (e o próprio Newton) acreditavam ter sido logicamente derivada a lei da gravitação universal; supostamente a lei da gravitação universal teria sido logicamente induzida das leis de Kepler (Newton afirmara que não inventava hipóteses e pretendia que a sua teoria houvesse sido obtida dos fatos). A lei da gravitação universal não pode ser logicamente derivada das leis de Kepler simplesmente porque ela contradiz, corrige as mesmas; a primeira lei de Kepler afirmava que as órbitas planetárias eram elipses e a teoria de Newton permitiu demonstrar que as mesmas não são rigorosamente elipses (são aproximadamente elipses); adicionalmente Kepler afirmara que os cometas descreviam trajetórias retilíneas e a teoria de Newton predisse trajetórias aproximadamente elípticas, parabólicas ou hiperbólicas para eles. Predições da mecânica newtoniana foram surpreendentemente corroboradas (algumas após a morte de Newton, como a do retorno do cometa previsto por Halley - o cometa Halley). Ora, se existisse a lógica indutiva, o mínimo que deveria ocorrer nas induções das leis a partir dos fatos é que as leis não contraditassem estes mesmos fatos. Outras corroborações importantes da mecânica newtoniana são as descobertas dos dois últimos planetas do sistema solar (Netuno e Plutão). A previsão da órbita de qualquer planeta do sistema solar a partir das leis de Newton (as três leis do movimento e a lei da gravitação universal) é possível de ser realizada se adicionalmente se dispuser de um modelo sobre o sistema solar; este modelo deve especificar quantos são os planetas, as suas massas, as distâncias ao sol, etc. A órbita de um planeta particular depende principalmente da força gravitacional que ele sofre por parte do Sol, mas também depende das ações dos outros planetas. No século XIX foi observado que a órbita prevista para Urano era incompatível com as observações astronômicas; Adams e Leverrier, admitindo que o problema não se devia à mecânica newtoniana, mas ao modelo existente sobre o sistema solar, trabalharam sobre hipótese de existência de um planeta ainda não conhecido além da órbita de Urano – o planeta Netuno. Conseguiram, inclusive, calcular a posição do novo planeta e orientaram os astrônomos a realizarem novas observações; estes acabaram por confirmar a existência de Netuno. Esta história se repetiu novamente, já no século XX, em relação a Plutão. A descoberta dos dois últimos planetas do sistema solar exemplifica um outro aspecto relativo ao método crítico: a possibilidade de se evitar o falseamento de uma teoria a partir de uma hipótese suplementar; se a conseqüência de uma teoria é contraditada pelos fatos, é logicamente possível retransmitir a falsidade às condições específicas (no exemplo anterior, a falsidade foi retransmitida ao modelo sobre o sistema solar). Esta hipótese suplementar, que salvou a mecânica newtoniana, era testável independentemente; hipótesessuplementares ad-hoc (hipóteses a favor das quais os únicos fatos são aqueles que elas pretendem explicar) devem ser evitadas.
Popper destaca que “todo o nosso conhecimento é impregnado de teoria, inclusive nossas observações” (Popper, 1975, p. 75). Não existem dados puros, fatos neutros (livres de teoria). Exemplifiquemos mais uma vez com a mecânica newtoniana: a fim de testar a previsão de uma determinada órbita planetária, é necessário confrontar posições previstas para o planeta com posições observadas a partir da Terra. Os fatos aqui seriam resultantes de um processo de observação astronômica; ora, estes fatos são interpretações a partir de diversas teorias, tais como a da ótica do telescópio, propagação da luz no espaço interplanetário, refração da luz na atmosfera, teoria de erros de medida, etc. Mesmo os fatos que são baseados apenas em nossa percepção também estão impregnados de teorias; os órgãos dos sentidos e o sistema nervoso incorporam teorias físicoquímicas, neurofisiológicas que interpretam os estímulos, nos dando as sensações. “Não há órgãos de sentido em que não se achem incorporadas geneticamente teorias antecipadoras” (Popper, 1975, p. 76).
A inexistência de fatos livres de teoria implica a insustentabilidade de uma versão de falseacionismo ou refutacionismo ingênuo que erradamente é atribuída a Popper. Para o refutacionismo ingênuo, uma teoria estaria indubitavelmente refutada quando os resultados observacionais (e/ou experimentais) fossem incompatíveis com alguma conseqüência ou conclusão da teoria. Entretanto tal não é necessariamente verdade, pois o problema pode estar nas condições específicas (é o caso da descoberta de Netuno e Plutão), ou, pode se encontrar nas próprias observações. Ou seja, se houver alguma discrepância entre posições observadas para um dado planeta, pode ser que a teoria observacional esteja com problema. Aliás, isto efetivamente ocorreu quando Newton propôs ao astrônomo real uma correção da luz na atmosfera, de modo a adequar os dados astronômicos às previsões por ele feitas. Todo o nosso conhecimento é conjectural, inclusive as falsificações das teorias; as falsificações não se encontram livres de críticas e nenhuma teoria pode ser dada como “definitivamente ou terminantemente ou demonstravelmente falsificada” (Popper, 1987a, p. 22). Assim sendo, “qualquer falsificação pode, por sua vez, ser testada de novo” (Popper, 1987a, p. 23).
O progresso da ciência depende da objetividade científica. Esta “encontra-se única e exclusivamente na tradição crítica” (Popper, 1989a, p. 78), na tradição que permite questionar qualquer teoria. Entretanto a objetividade da ciência não é uma questão individual dos cientistas; individualmente o cientista é, via de regra, parcial, conquistado por suas próprias idéias. “Alguns dos mais destacados físicos contemporâneos fundaram inclusivamente escolas que opõem uma forte resistência a qualquer idéia nova” (Popper, 1989a, p. 77). A objetividade da ciência é uma questão social dos cientistas, envolvendo a crítica recíproca, a “divisão hostil- amistosa de trabalho entre cientistas, ou sua cooperação e também sua competição” (Popper, 1978, p. 23). O fato do cientista individualmente ser parcial ou dogmático é até desejável. “Se nos sujeitarmos à crítica com demasiada facilidade, nunca descobriremos onde está a verdadeira força de nossas teorias” (Popper, 1979, p. 68).

A ciência está à procura da verdade apesar de não haver critérios através dos quais se possa demonstrar que uma dada teoria seja verdadeira. A atitude crítica pressupõe a “verdade absoluta ou objetiva como idéia reguladora; quer isto dizer, como padrão de que podemos ficar abaixo” (Popper, 1987a, p. 59).
Quando uma teoria é criticada, está sendo questionada a pretensão da mesma ser verdadeira, da mesma ser capaz de resolver os problemas que lhe competem. Mesmo não havendo a possibilidade de demonstrar a verdade de uma dada teoria T2, algumas vezes se pode defender racionalmente que ela se aproxima mais da verdade que outra teoria T1; tal ocorre quanto T2 explica todos os fatos corroboradores (conteúdo de verdade) e os problemáticos para T1 (conteúdo de falsidade), adicionalmente explicando fatos sobre os quais T1 não se pronunciava (a teoria T2 tem então um excesso de conteúdo em relação à T1). Isto se dá com a teoria geral da relatividade em relação à teoria de Newton; a segunda é uma excelente aproximação da primeira para baixas velocidades e campos gravitacionais fracos. Todos os problemas que a antiga teoria resolveu com sucesso, a nova também resolve e alguns, como o caso do periélio anômalo de Mercúrio que era incompatível com a mecânica newtoniana, também são explicados pela teoria geral da relatividade. Adicionalmente a teoria de Einstein fez predições sobre aspectos da realidade sobre os quais a de Newton não se pronunciava (é o caso do desvio da luz por campos gravitacionais, corroborado no eclipse de 1919). “Contudo, Einstein jamais chegou a acreditar que sua teoria fosse verdadeira. Chocou Cornelius Lanczos, em 1922, ao dizer que sua teoria não era mais que um estágio passageiro: chamou-lhe ‘efêmera’” (Popper, 1976, p. 112). Também “buscou uma melhor aproximação da verdade durante quase quarenta anos, até a sua morte” (Popper, 1987a, p. 58). A concepção de que as teorias científicas perseguem a verdade objetiva coloca a filosofia popperiana como realista. Os realistas afirmam a existência das coisas em si, de objetos cuja existência independe de nossa mente (Bunge, 1973, 1983 e 1985; Silveira, 1991) e que estes podem ser conhecidos, embora parcialmente e por aproximações sucessivas (Rodrigues, 1986).
"Assim, as teorias são invenções nossas, idéias nossas, o que foi claramente percebido pelos idealistas epistemológicos. No entanto, algumas dessas teorias são tão ousadas que podem entrar em conflito com a realidade: são essas as teorias testáveis da ciência. E quando podem entrar em conflito, aí sabemos que há uma realidade (...). É por esta razão que o realista tem razão” (Popper, 1989b, p. 25).

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