A história da Guerra de Tróia alcançou a imortalidade devido a um poeta. Os gregos antigos, ao contrário de muitos especialistas que surgiram depois (como o italiano G.Vico e o filósofo alemão C. Wolf), acreditavam que a soberba narrativa da conquista de Ílion e o que se seguiu, resultou dos versos de um rapsodo cego chamado Homero. Vivendo provavelmente no século VIII a.C., ele costumava peregrinar pelas cortes e pelas ágoras, os mercados públicos das polis daquela época, a repetir em estrofes candentes, entusiastas, cosendo os cantos uns nos outros, os memoráveis feitos dos aqueus (também designados como argivos e danaos), antepassados dos gregos.
Segundo o costume, apresentava-se em pé, apoiado num bastão, narrando de memória em voz alta para que todos ouvissem, preservando assim a memória dos combates dos másculos heróis do passado. Teria sido ele o principal responsável por dar uma unidade cultural a todos o povo do continente da Ática, da península do Peloponeso e das ilhas do Mar Egeu de fala grega. Para Hesíodo, foi Homero quem constituiu a “teologia nacional da Grécia”. É consenso hoje que “nenhum poeta, nenhuma personalidade literária ocupou na vida do seu povo um lugar semelhante” (M.I.Finley, 1972).
Epopéia essa que ele narrou em duas obras distintas: a Ilíada (dedicada ao último ano da guerra) e a Odisséia (a narrativa das peripécias de Ulisses, ocorridas depois da guerra). Neles se encontram não só a relação estreita dos homens com os inúmeros deuses, como também a exposição da cosmogonia grega, o que solidificou a posição dos dois poemas como expressão dos ideais de formação dos nobres gregos (Paidéia). Coube, ao que se sabe, ao tirano ateniense Pisístrato, a partir de 561 a.C., mandar compor por um tal de Zenôdoto, tanto a Ilíada como a Odisséia, na forma tal como hoje se as conhece. No total, os dois grandes poemas subdivididos em 24 cantos cada um, perfazem 27.803 versos, sendo até hoje a mais extensa narrativa épica versificada que a literatura ocidental conheceu. Por tudo isso vale a pena conferir a obra desse autor tão injustiçado em nosso tempo, se soubessemos até hoje o quanto do homem grego sobrevive em nós, certamente prestaríamos mais atenção. Abaixo segue uma pequena contribuição desse modesto blog, são fragmentos retirados das duas grandes obras que se complementam em uma só. Boa leitura a todos.
A Ilíada - Fragmentos
Μῆνιν ἄειδε θεὰ Πηληϊάδεω Ἀχιλῆος
οὐλομένην, ἣ μυρί᾽ Ἀχαιοῖς ἄλγε᾽ ἔθηκε,
πολλὰς δ᾽ ἰφθίμους ψυχὰς Ἄϊδι προΐαψεν
ἡρώων, αὐτοὺς δὲ ἑλώρια τεῦχε κύνεσσιν
οἰωνοῖσί τε πᾶσι, Διὸς δ᾽ ἐτελείετο βουλή,
ἐξ οὗ δὴ τὰ πρῶτα διαστήτην ἐρίσαντε
Ἀτρεΐδης τε ἄναξ ἀνδρῶν καὶ δῖος Ἀχιλλεύς.
Deusa, canta cólera de Aquiles Pelíade,
ruinosa, ( que trouxe aos aqueus miríade de mágoas,
e cedo arrojou no Hades muitas valentes almas de heróis
a eles próprios fez espólios para cães,
e aves rapaces todas – Cumpriu-se o desígnio de Zeus),
desde que primeiro apartaram-se em rixa
Atrida soberano de homens e divino Aquiles.
Tirésias
ἦλθε δ᾽ ἐπὶ ψυχὴ Θηβαίου Τειρεσίαο
χρύσεον σκῆπτρον ἔχων, ἐμὲ δ᾽ ἔγνω καὶ προσέειπεν·
διογενὲς Λαερτιάδη, πολυμήχαν᾽ Ὀδυσσεῦ,
τίπτ᾽ αὖτ᾽, ὦ δύστηνε, λιπὼν φάος ἠελίοιο
ἤλυθες, ὄφρα ἴδηι νέκυας καὶ ἀτερπέα χῶρον;
ἀλλ᾽ ἀποχάζεο βόθρου, ἄπισχε δὲ φάσγανον ὀξύ,
αἵματος ὄφρα πίω καί τοι νημερτέα εἴπω.
(...)Aproximou-se a alma do tebano Tirésias
portando cetro áureo, reconheceu-me e proferiu:
“Laertíade divino, multi-ardiloso Odisseu,
Por que enfim tu mesmo, ó miserável, tendo deixado a luz do sol,
Vieste para ver cadáveres e a região infeliz?
Mas aparta-te da fossa, afasta afiado gládio,
Para que eu beba do sangue e diga-te palavras infalíveis”
Odisséia - Canto VIII
Os Amores de Afrodite e Ares
Demódoco depois dedilha e canta
como furtiva a coroada Vênus
uniu-se a Marte, que o Vulcânio toro
maculou com mil dons peitando a esposa.
Pelo Sol advertido, o grão ferreiro
parte, vingança a meditar profundo;
no cepo encava a incude, laços forja
que desdar-se não podem nem romper-se.
Mal os conclui, à câmara caminha
do seu leito amoroso; uns aos pés liga,
outros ao sobrecéu, com tanta insídia,
que de aranha sutil quais teias eram,
mas a qualquer celícola invísiveis.
Armada a fraude, simulou viagem
de Lemos à caríssima cidade.
Marte, cujos frisões têm freios de ouro,
não obcecado, o fabro viu partindo;
veio-lhe presto à casa, cobiçoso
de gozar Vênus bela: esta pousava
de visitar o genitor Satúrnio;
pega-lhe o amante na mimosa destra:
"Vazia a cama está; Vulcano é fora,
aos Síntios foi-se de linguagem bronca".
Ei-los ao leito jubilando ascendem,
e nas malhas do artista se emaranham;
nem desatar-se nem mover-se podem,
sem ter efúgio algum. Torna Vulcano,
antes que a Lemos chegue; o Sol o avisa.
Ao seu pórtico pára angustiado,
urro esforça raivoso, que no Olimpo
retumba horrendo: "Ó Padre, ó vós deidades,
vinde rir e indignar-vos desta infâmia.
Por coxo a Dial Vênus me desonra,
amando ao sevo Marte, que é perfeito:
Se esta lesão me afeia, é toda a culpa
de meus pais, que gerar-me não deviam.
Vede-os,oh!,triste aspecto, como dormem
em meu leito enleados; mas duvido
que em seu ardor jazer assim desejem.
Meu laço os reterá, té que haja o dote
e os dons feitos ao pai, que deu-me a filha
de formosura exemplo e de inconstância".
No éreo paço Vulcânio já Netuno,
mas o frecheiro Febo e o deus do ganho,
as deusas de pudor não comparecem;
Do pórtico os demais, às gargalhadas,
o dolo observam do prudente mestre,
olham-se e clamam: "Da virtude o vício,
do ínfero o lesto e forte é suplantado;
o manco ao mais veloz prendeu com arte,
pague o adúltero a multa". Apolo ao núncio
de bens dador voltou-se: "Quererias,
filho de Jove, assim dormir nos braços
da áurea Ciprina?" Respondeu Mercúrio:
"Oxalá, Febo Apolo, ao pé de Vênus
vós me vísseis dormir, e às próprias deusas,
no tresdobro dos fios envolvido".
Renovou-se a risada; mas Netuno
sério ao mestre pediu que solte a Marte:
"Solta-o; prometo que a teu grado e à risca
hajas a multa aos imortais devida".
"Rei, contesta o aleijado, não mo ordenes;
A caução para o fraco é fraca sempre:
como te obrigaria, se ele escapo
se recusasse?" Então Netuno: "Marte
se renuir, pagar-te-ei, Vulcano".
Rende-se o ínclito coxo: "Não me é dado
negar-to". E os laços desliou de um toque.
Os réus fugiram: para a Trácia, Marte;
para Pafos, Ciprina, a mãe dos risos,
que ali tem bosque e recendentes aras.
Banhada e em óleo divinal ungida,
as graças do mais fino a paramentam.
[Tradução de Odorico Mendes]
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