quarta-feira, 23 de junho de 2010

A dança

Em vezes a sempre latente percepção que o único sentido verdadeiro resta do caos, fica mais que exterior. É preciso colapsar os critérios, injuriar a fé, ter a incerteza do real como companheira e a certeza do nada como coisa que alto se considere. O passado é mero argumento da percepção, assim como o futuro e o que dele deflui. Nada é um lugar como qualquer outro, ainda que inominado enquanto representação. A busca simbólica cega, a busca simbólica amarga o céu da boca com certezas que não existem senão na sofisma desesperada.

A vida, tão pequena aos olhos de quem vê, ao passo de que tão fundamental à pele de quem a vive, mas se não é a minha pouco importa, com o tempo aprende-se a ser indiferente. O avaro das horas teima acelerar o relógio em épocas como essa, não se pode olhar ao lado. Tudo é não-ser, pedaço de fruta mal mordida, planta de raízes ao vento.
Cada ser é um universo e cada universo é distanciado em si, entretanto ainda que longínquos, conectados no sórdido liame das agruras que tem a ânsia pelo que é perene. O intangível é estado de espírito, como a finitude e tudo o que é dúvida. Aquilo que resta de afã no homem, não vai além de rebelião pela condição precária. A humanidade optou pela verdade e continuamente esse "ethos" vem nos conduzindo a massacres, agressões mútuas e loucura de toda a espécie. Não seria hora, como propôs Nietzsche, de deixar a verdade e tentar a mentira?

Nada matou, pilhou e enlouqueceu as gentes mais ao longo dos tempos que as guerras e cruzadas santas. E nós seduzidos pela hipocrisia que turba o ciso, consentimos na graça ao absurdo.
Segundo o dicionário, a razão seria algo como uma faculdade que tem o ser humano de avaliar, julgar e ou ponderar idéias universalmente aceitas. Por exemplo, um médico, que quando sai da academia só é tido como tal, não pelo tempo de estudo em si, mas por portar um título que assegura ter sido a sua concepção a respeito da biologia humana forjada a partir da malha de uma tradição. Sem esse fundamento ele seria um louco ou um desesperado, todavia, não um médico. Com efeito, haverá momentos em que será preciso lançar mão da reserva de racionalidade e simplesmente intuir, recriar o que se sabe em nome da continuação do bem. Pode ser que isso não seja possível e que o paciente morra a esmo por falta de ação da parte daquele que o zela, por temer represálias de seus colegas em nome da manutenção da ética médica, que é uma construção assentada nos modos históricos de como o homem lida com a doença. Nesse sentido pode-se colocar a problemática em uma questão bastante objetiva, ainda que não possua tanta simplicidade. A sociedade reprime a vanguarda. A quebra de um paradigma é perigosa, representa agressão a lobes dominantes, conflitua muitas vezes com estamentos econômicos, e em relação a como o homem médio dialoga com metafísica da vida, pode significar uma cisão irremediável. Isso assusta, atordoa, confunde as pessoas. Quantos seres notáveis não morreram sem terem sido levados a sério, pode ser que seja mais fácil aceitar uma teoria quando seu autor não tem mais condições de se levantar contra a interpretação que se faz dela.

Nesse ponto, quero voltar à questão inicial, que é a do simbolismo herdado pela sociedade ocidental e como ele é prostituído de acordo com interesse muito mais pessoais que gerais. O grande arquétipo dessa civilização a ocidente do globo tem sido pelo menos nos últimos 1.500 ou 1.600 anos a figura do pregador nazareno, conhecido popularmente como Jesus, ou quando não, a tradição que deriva da narrativa de seus feitos. Analisando-se o que se tem mais próximo de uma fonte primária de conhecimento a respeito do que de fato se deu, entende-se que basicamente esse homem tinha como projeto filosófico a fraternidade, que deveria ser o que o sucederia mas, em seu lugar veio a igreja. Enquanto era uma voz que se levantava no deserto da palestina não foi além de um esquizofrênico bêbado de si aos olhos do mundo "civilizado", mas quando sua história passa a ser encampada pela tradição do império, então como passe de mágica o mendigo louco se torna rei e deus. A partir daí coisas estranhas são propostas, como vassalagem ter sentido de libertação e gozo pela vida ser sinônimo de degradação interior.


A mística do deus imperador floresceu intensamente e de modo difuso. Visto como ser mal-humorado, furioso e cheio de contradições contra o que não era de seu estabelecimento no mundo. E seus continuadores, os papas, cardeais e o próprio governante de Roma, estavam ali para lembrar aos homens a tormenta que aguarda todo infiel. Sendo eles, os portadores da tradição, aqueles únicos que a bel-prazer se apresentavam competentes a julgar o que haveria de bom e justo em qualquer assunto. Esse ideal foi ganhando corpo e sentido secular, influenciou legisladores, governantes,escritores e homens comuns. A mensagem original cada vez se degradou mais, a mensagem interpretada pelo interesse regente dominou a cena e aqueles que dependem dos portadores da tradição para se orientarem foram levados sem cessar à zonas nebulosas.


Assim, de maneira muito geral, o processo se construiu e continua se reinventando, uma mudança de sentido só é possível quando ha um interesse de mudar proposto pelas próprias instituições que historicamente se estabeleceram. Esse interesse de uma morfologia não é o de uma cisão mas, de um novo terreno de seguridade para que o instituído permaneça por mais tempo, ainda que com outra roupagem. Sem mais delongas, é preciso dizer que as expectativas mais transcendentes do homem como a visão de um paraíso em algum lugar diferente desse é na verdade algo que nada tem haver com uma comunicação do sagrado como nós o concebemos mas, sobretudo como um plano que se desenhou na imanência da sociedade e do tempo. Deus é a imagem e semelhança do homem, porque esse o construiu e o reinventa de acordo com suas necessidades e buscas temporais e geográficas, não o contrário como se nos é apresentado.

Das últimas abordagens algumas conclusões. As pessoas se vinculam a ritos e guiam suas vidam não por um desejo interno mais profundo, em verdade, por um imperativo exterior e anterior a ele que opera no sentido de adequá-la às regras estabelecidas. É preciso habitar a terra não só poeticamente mas também prosaicamente. A vivência poética é essa presa a uma abstração, à promessa de justiça e recompensa aqui ou em qualquer outro mundo quando se aceita fazer e viver o que foi imposto sem um consentir efetivo. Vivenciar o mundo de uma maneira prosaica é colar-se à terra, é descer ao fundo, junto ao chão e em gral zero. A experiência pura faz-se a si mesma, no seu momento de ocorrência. Projetar além do aqui e do agora é desrespeitar a naturalidade da vida. Todo homem é diabólico e simbólico, é Adão e é Cristo. O fim último deve ser o da busca do todo, da participação sem pertencimento. Ninguém nasceu pra ser grande em uma coisa mas, pra ser suficiente no que se lhe apresentar. É preciso repensar o ser humano enquanto um ser de abertura, que vai do ordinário ao extraordinário com a mesma urgência, um piano tem teclas negras e brancas, sem as duas é impossível conceber uma melodia agradável aos ouvidos. Pode ser que realmente precisemos do pai, que a referência como zona de segurança deva haver sempre para que não haja colapso. Todavia, esse pai e essa referência devem ser meio e não fim. O belo, o feio, o bom, o mau são noções baseadas em acordos erga omnes no âmbito social mas, lei nem sempre rima com justiça, intenção nem sempre é promessa de ação.


As coisas velhas são criadas para perecer ao seu tempo e querer continuá-las a todo o preço é carregar consigo um cadáver já decomposto. Tendo o homem como um ser de abertura, com seus pés afundados na terra mas, com a cabeça voltada ao todo, não há que se falar em um devir finalístico. O fim histórico da humanidade não existe, porque o projeto é infinito. A vida é como um espelho da natureza, sempre se renovando, sempre criando possibilidades novas. Nesse sentido, urge apreender a existência como um quadro que nós mesmos pintamos, um reflexo de perspectivas da ação de cada um. Culpar deus ou o estado ou o vizinho é muito pouco para responder às indagações, para retribuir aquilo que é ofertado gratuitamente. Partindo disso termino, dizendo que o homem de ontem deve morrer em favor do de hoje e o de hoje pelo de amanhã, a evolução se revela em cada pequeno gesto, em cada segundo fugidio. A tradição te oferece a segurança de terrenos já explorados, entretanto, isso não significa que esse terreno não possa ser um pântano movediço que trague o homem e tudo quanto pode haver nele de divino ou elevado. Silenciar a voz interior em nome de uma certeza pré-fabricada é o único pecado e o crime mais hediondo. Mas nós somos levados a isso e criados para isso, liberais, democratas, socialistas, anarquistas, cristão, gnósticos, ateus... Não é possível apreender a vida pré-concebendo um modelo aceito de vida, não é possível conhecer a fé partidarizando a fé. O que resulta disso é degenerescência, vício e erro. Angústia e desencanto são conceitos temporais, se o tempo é a tardança daquilo que se espera, urge não esperar e não projetar. Sair do labirinto agudo das esperanças e estar como que um barco guiado pela corrente é uma meta mais honesta que a imortalidade ou a notoriedade, viver em plenitude só é possível desesperadamente.

*Leandro M. Oliveira

Um comentário:

Dona-f disse...

Lê, estava com saudade de te ler. Muito boa a tua discussão sobre os sentimentos que nos tornam tão complexos, como angústia, medo e fé.