terça-feira, 15 de junho de 2010

Solo Quiero Caminar

Que o campo é degradação e só, nas andanças que impõe o inominado. É impossível regressar intacto sem ter a dor do mundo feito a alegria mudada. Caminhar é um exercício de memória quando se olha às margens da rota, o dia passou. Não, não passou. É sempre dia nesse país onde o sol arde e as bestas soturnas desfilam às claras. O castelo de ossos lembra que tudo é breve, ingrata vida que nada da além de esquecimento.

(uma pausa)

Uma sombra enfim, o marasmo deve ceder às vezes. Se o valor é sentido na ausência que haja um minuto de paraíso antes de um tempo no inferno. A figura empalidecida vem se arrastando por entre abismos e chega até aqui. Vário, esquelético, distante. Contudo, há nele um signo de altivez, um traço profundo de nobreza. Talvez Deus se apresente como mendigo para testar a fé dos homens, talvez o demônio se deixe travestir disso às vezes para estar mais próximo.

(um diálogo)

- Nobre cavaleiro de terra distante. Que pesa teu alforge, que amarga tua boca?

- Caminhante que não sabe donde ir. O fel em meus lábios já é parte de mim, o peso da bagagem é salário d’um prazer sem virtude.

-Que dizes de prazer sem virtude?

-Embora meu rosto desbotado, meu corpo sem prumo. Já fui jovem e belo um dia. E cri na beleza do homem e na altivez da alma.

-Esses são pensamentos elevados, não vejo nisso onde virtude te foi escassa.

-Com efeito, o problema em mim veio do excesso e não da falta. A aspereza do mundo não permite a mansidão do espírito. Ter virtude por essas terras significa não ter virtude alguma. Carregar em si o corrupto o avaro e o dissimulado. Heis o caminho da boa fortuna nessas veredas pueris da distância. A ordem de se manter bem aqui é agredir a esmo.

-Já que conheces tão bem o que deve ser feito, por quê andas assim vacilante por esses descaminhos, por quê não tomas o machado à mão e ceifas tudo quanto houver?

-Meu triste amigo, não é difícil ignorar, injustiçar ou matar. Difícil mesmo é continuar vivo depois de tudo, é saber que suas vitórias são na verdade as maiores derrotas. Que homem é um homem que não tenta fazer o mundo melhor? Não é o exílio que me amedronta, mas sim a iniqüidade. O flagelo veloz e implacável dos homens.

-Em minha ignorância penso não entender ao certo mas, sinto essas palavras como coisa que há gravada em cada célula do farrapo que sou, como se fosse meu próprio coração a ganhar voz e dizer.

-Talvez o seja. É possível que a vida aconteça mais rica quando sentida. É possível que haja algum alento em estar a contragosto de tudo. Caminhei pela terra, senti frio e calor, angústia e contento. Contemplei a solidão do primeiro homem e quando ele se perdeu, senti também uma parte de mim esmaecer. Eu estava lá quando os irmãos começaram a se matar, quando as mulheres passaram a enganar seus homens e quando os homens conheceram no vinho a porta da insanidade. Para cada riso fulgaz, mil lágrimas verti por esses que tem no suicídio lento uma fonte de prazer sem mesmo se darem conta. Todavia choro, por estarem confundidos em seu propósito, porque a injustiça não faz o homem livre, ao contrário, o torna prisioneiro de seu corpo, e não no mundo prisão mais débil. Nada pode haver de bom ou belo ou profundo onde tudo é rasura, intransigência ou malícia.

-Começo a entender que o sacrifício vale a pena. Que as recompensas mais altas são as menos palpáveis. Mui honrado cavaleiro, fala mais de teu descaminho, desaluvia com tuas palavras meus olhos tão cansados.

-Não posso dizer nada que vós já não sabeis, errante das estradas perdidas. Tudo é em vós como é em cada multidão, seixo e folha.

-Por Deus, também sinto isso. Às vezes meu corpo ocupa toda a terra, às vezes é menor que uma fagulha. Mesmo assim peço que compartilhe o que há em vós.

-Rapaz erge-te! Sua silhueta é jovem, embora seus olhos tenham mais que mil anos. Não se perca aqui, escreve teu próprio norte. És um continuador e um transgressor porque o que vem por último deve sobrepor o que veio primeiro. É natural que o novo reinvente o velho. Essa lida já não é sua, de pavimentar a terra com a cal de horas infindas, de dormir de dia por não poder abandonar a vigília da noite. Vai, segue teu rumo! Ou inventa um novo. Amar a morte é odiar a vida e estou mais perto dela que qualquer um.

(um suspiro)

Combati o bom combate, a todos os que houveram mulher, homem ou criança busquei semear alegria, estender a mão mesmo correndo o risco de ter com isso o braço decepado. Minhas lágrimas sublimaram-se em contas do diamante mais puro, embelezaram as gentes, trouxeram a luz do encanto e o escuro da ganância. Passei por abismo, pântano e floresta. Entre o querer e o poder não existiu uma só vez em que meu ser não houvera compartido entre cacos de impossível. E tu estavas comigo todo o tempo porque o mundo inteiro é um, a divisão existe tanto quanto o delírio. Vai. Continua essa sina, do mais tudo é sonho.

(silêncio tumular)

Depois de algum tempo a nobre figura se foi perdida entre vento e poeira que subia. O caminhante ergueu-se e tornou também a caminhar. O dia continuou distante, os ideais junto. E enquanto isso em algum lugar do hemisfério fanáticos orquestravam um suicídio em massa.
*Leandro M. de Oliveira

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