segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Anarquismo (ou; daquilo de que é feito o homem?)

A Noite e o Caos são parte de mim. Dato do silêncio das estrelas. Sou o efeito de uma causa do tempo do Universo [e que o excede, talvez]. Para me encontrar tenho de me procurar nas flores, e nas aves, nos campos e nas cidades, nos actos, nas palavras e pensamentos dos homens, na luz do sol e nos escombros esquecidos de mundos que já pereceram.

Quanto mais cresço, menos sou eu. Quanto mais me encontro, mais me perco. Quanto mais me sinto mais vejo que sou flor e ave e estrela e Universo. Quanto mais me defino, menos limites tenho. Transbordo Tudo. No fundo sou o mesmo que Deus.

Na minha presença hodierna têm parte as idades anteriores à Vida, os tempos mais antigos do que a Terra, os ocos do espaço antes que o mundo fosse.

Na noite onde nasceram as estrelas comecei a constelar-me de ser.

Não há um único átomo da mais longínqua estrela que não colaborasse no meu ser.

Porque Afonso Henriques existiu, eu sou. Porque Nun'Álvares combateu, existo. Seria outro - não serei, portanto - se Vasco da Gama não tivesse achado o Caminho da Índia nem Pombal tivesse governado (...) anos.

Shakespeare é parte de mim. Para mim trabalhou Cromwell quando arquitectou a Inglaterra. Ao ganhar com Roma, Henrique Oitavo fez-me ser hoje o que eu sou.

Para mim pensou Aristóteles e cantou Homero. Neste sentido místico e profundo deveras [...], Cristo morreu por mim. Um místico índio que eu não sei se existiu, há 2000 anos colaborou no meu ser actual. Pregou moral Confúncio à minha presença de hoje. O primeiro homem que achou o fogo, o que inventou a roda, o primeiro que ideou a seta - se hoje eu sou eu é porque eles existiram.
*Fernando Pessoa

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Amor ao próximo

Está fora de dúvida que através dela [a atividade maquinal] uma existência sofredora é aliviada num grau considerável: a este fato chama-se atualmente, de modo algo desonesto, "a bênção do trabalho". O alívio consiste em que o interesse do sofredor é inteiramente desviado do sofrimento - em que a consciência é permanentemente tomada por um afazer seguido de outro, e em conseqüência resta pouco espaço para o sofrimento: pois ela é pequena, esta câmara da consciência humana!

A atividade maquinal e o que dela é próprio - a absoluta regularidade, a obediência pontual e impensada, o modo de vida fixado uma vez por todas, o preenchimento do tempo, uma certa permissão, mesmo educação para a "impessoalidade", para o esquecimento de si, para a "incuria sui" -: de que maneira completa e sutil o sacerdote ascético soube utilizá-la na luta com a dor! Precisamente quando tinha de lidar com sofredores [...] necessitava ele de pouco mais que a pequena arte de mudar os nomes e rebatizar as coisas, para fazer com que vissem benefício e relativa felicidade em coisas até então odiadas. [...] Um meio ainda mais apreciado na luta contra a depressão é a prescrição de uma pequena alegria que seja de fácil obtenção e possa ser tornada regra.

[...] A forma mais freqüente em que a alegria é assim prescrita como meio de cura é a alegria de causar alegria (ao fazer benefício, presentear, aliviar, ajudar, convencer, consolar, louvar, distinguir); no fundo, ao prescrever "amor ao próximo", o sacerdote ascético prescreve uma estimulação, embora em dosagem prudente, do impulso mais forte e mais afirmador da vida - da vontade de poder. A felicidade da "pequena superioridade", que acompanha todo ato de beneficiar, servir, ajudar, distinguir, é o mais abundante meio de consolo de que costumam servir-se os fisiologicamente obstruídos, supondo-se que estejam bem aconselhados. [...] Todos os doentes, todos os doentios, buscam instintivamente organizar-se em rebanho, na ânsia de livrar-se do surdo desprazer e do sentimento de fraqueza: o sacerdote ascético intui esse instinto e o promove; onde há rebanho, é o instinto de fraqueza que o quis, e a sabedoria do sacerdote que a organizou.

* Friedrich Nietzsche in "Genealogia da Moral"

terça-feira, 24 de novembro de 2009

O mito da igualdade

Em última instância, desde que criemos qualquer coisa, criamos desigualdade: se escrevo um livro terei um sucesso e um renome que o meu vizinho não tem porque ainda não escreveu um livro. Impossível terminar com as desigualdades (...) a nossa perturbação resulta de um exagero contemporâneo sobre o valor da igualdade. Ora Aristóteles - que em matéria moral nunca foi ultrapassado - demonstra na Ética a Nicómaco que se uma exigência (exigence) é forçada ao seu extremo, acaba por ter um efeito perverso. Isto é verdadeiro para qualquer valor: uma liberdade desmensurada acaba na tirania dos mais fortes. E, do mesmo modo, uma igualdade sem proporção provoca uma série de desigualdades.

Podemos observá-lo na Escola: em média há hoje menos crianças de operários nas grandes escolas do que havia nos anos cinquenta. Apesar da constante exigência de igualdade, houve uma regressão! Simplesmente porque hoje é considerado contra-produtivo, e enfim hipócrita, tratar de um modo igual uma criança da burguesia - que tem acesso aos bens culturais, a aulas particulares, etc - e uma criança dos subúrbios. Ao tratar cada caso de forma diferente , reforçamos as desigualdades iniciais.

De outro modo, penso que a ideologia igualitária é tanto mais perniciosa quanto põe em perigo a nossa necessidade de democracia. Porque acredito que há, não apenas um desejo mas uma necessidade de igualdade. É uma necessidade ética: um pobre é igual a um rico em dignidade, um deficiente mental tem-na tanto como um não-deficiente . É preciso que voltemos a Aristóteles: encontrar "o justo meio" (ou a justa medida) entre a igualdade extrema e a extrema desigualdade. Porque esta igualdade preguiçosa que reina hoje sem exceção, não encoraja ninguém a ultrapassar-se a si próprio. A nossa civilização ao perder o sentido do alto e do baixo, está ameaçada por aquilo que, num livro precedente, chamei de "Barbaria interior".
*Jean-François Mattéi

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Montserrat Caballé

Montserrat Caballé como Norma, performance executada no "Thèatre Antique d'Orange", 20 de julho de 1974. Casta Diva, uma de minhas árias favoritas.

Wagner

A algum tempo venho estudando o mundo de Wilhelm Richard Wagner (Leipzig, 22 de maio de 1813 — Veneza, 13 de fevereiro de 1883) e me achei na obrigação de citar algumas coisas a respeito. Mulherengo, aproveitador, cínico, vaidoso mas, sobretudo gênio. Foi ele o maior compositor clássico do povo alemão no gênero ópera, revolucionando aquele cenário musical de então com uma proposta inédita. Nessa época as óperas em sua maioria tinham temas leves, feitas somente para entreter, ou ainda possuíam argumentos que vislumbravam a decadência humana numa tradição próxima da tragédia grega, todavia, isso era realizado de um prisma mais individual. Wagner amplificou isso, com o auxílio de lendas do seu povo e alguns personagens históricos ele cria uma música que ambicionava unir o povo alemão em torno de um espírito comum. Exaltando-os como uma grande raça descendente direta dos míticos árias pais de Siegfried, Wotan e todos os outros heróis da gnose germânica. Além de músico, Wagner também era maestro, poeta, teórico musical e ensaísta. Alguns dos homens mais influentes da Alemanha vieram dar com ele mantendo relações estreitas como o filósofo Friedrich Nietzsche que chegou a considerar-se seu pupilo, além do rei Ludwig II da Bavária, o qual foi seu maior patrono e nutria por ele a admiração de um peregrino ante o sacrário. Apoiando-o ilimitadamente e sendo submisso a todos os seus caprichos. Mas talvez o que chame a atenção na obra de Wagner foi o fascínio que ela despertou sobre um homem já no século XX, seu nome era Adolf Hitler.

Ao assistir Rienzi, a ópera sobre o dilema histórico do revolucionário Cola di Rienzo, ele teve um insight e no pequeno teatro de sua modesta cidade Linz vislumbrou o que seria anos mais tarde a ideologia que deixaria enfeitiçado todo a Alemanha. Essa peça que tanto o inspirou é ambientada na Roma Medieval, Rienzi, porta-voz do povo, opõe-se à aristocracia. Ele quer retroagir um século e restabelecer a República da Antiguidade. Ele passa a ser o porta-voz do povo e os convoca a uma luta pela soberania frente ao tirano rei. Hitler comoveu-se profundamente com Rienzi, e supondo-se como uma espécie de versão alemã do herói, ele traça planos para seu futuro e para o futuro do seu povo. Mais tarde diria: ''Foi naquela hora que tudo começou”. Além disso há outras passagens onde Hitler afirma por exemplo: ''Só entende o Nazismo, quem conhece Wagner''. Ocorre que nosso compositor era também um anti-semita radical. E esse fato associado à história de Hitler faria Wagner parecer o idealizador do nazismo no século XIX, o que não é verdade. Na época de Wagneriana, os judeus eram o bode expiatório da sociedade alemã, se algo não dava certo o lugar comum era culpar judeus por isso. Nesse sentido, ter idéias anti-semitas era considerado normal. Tão normal que o nazismo hitlerista emergeria anos depois como uma continuidade dessa linha de pensamento. Mas o fato é que politicamente correto ou não, amante da causa humanista ou não, Wagner foi grande.

Sua música é difícil, como ele mesmo dizia.
Para ouvir uma ópera italiana basta estar relaxado ou despretensioso, já a experiência de Wagner é tensa, traz uma busca pelo resgate da glória, como aceitar um escultor remodelando seus sentidos às marteladas. Abaixo deixo aqui alguns vídeos, de partes da ópera favorita de Hitler. Sua fantástica abertura e a bela “oração de Rienzi” onde ele pede forças aos Deuses para recompor o passado glorioso de seu povo, essa ária vai interpretada pelo tenor alemão René Kollo em setembro de 1986 na ópera de Berlim, espero que gostem.



*Leandro M. de Oliveira.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

A ostra e a pérola

"Lasciate ogni speranza, voi che'ntrate"
(Dante)

Não se farte comendo outras pessoas, não as mutile pela necessidade de mutilar, esse é para o ser um crime sem perdão. Tal prática degrada a individualidade, nega tudo quanto há de augusto e belo na vida. Derrota o homem livre em sua expressão maiúscula. É preciso caminhar até ferir os pés, moldar a argila até que as mãos sangrem. O homem superior tem como seu Graal a senda do não querer, ele concede trégua à futilidade da vida média, da escravidão da vontade. Quer se desvenciliar dos fetiches primários, anseia ser livre para o que vem depois. Com efeito, a humanidade do futuro vai além, requer mais coragem e menos daquilo que nos deixou a todos ultrapassados. Porque assim caminhamos, perdidos no próprio tempo. A assim dita necessidade do outro, não é mais que um labirinto de clamores onde se perde o EU. Andei sobre a terra, vivi entre homens. Deles nada me foi mostrado além fraqueza e pensamento degenerado. No mundo exterior não a há espaço para mendicância emotiva, só uma lei prevalece, aquela que é a todos os animais irrevogável, a soberania do mais forte. Esses são tempos primitivos, selvagens nada sabem de cordialidade. É preciso treinar o corpo, aprender a resistir. Deixar a alma congelar ao sabor dos ventos, vê-la uivar com o fim dos ciclos. Rosnar é necessário, alto e forte até que todos os abutres e chacais tomem distância. Com o tempo as intempéries da natureza soarão como uma carícia ao longo da pele. E você será imune, outra vez gigante, outra vez Titã.

Compreender a beleza não é simples como dormir à noite ou copular em horas impróprias, se assim fosse os asnos seriam dramaturgos de renome e as gralhas, divas da ópera. Tem-se que se dar por inteiro, exaurir-se, afastar-se, submergir ao fundo do mar no ponto extremo onde só existe aquela ostra embrutecida e com ela obcecar-se. Perder as carnes dos dedos, dilacerar com os dentes, romper às cabeçadas, deve-se provocar a abertura custe o que custar. E quando estiver gasto, entregue e derrotado, do interior desse receptáculo hostil vai ver surgir a perfeição na redondilha sem verso de uma pérola virgem. Você é a ostra, agarre a pérola, ela esteve aí dentro o tempo todo. Mas antes de abrir a porta é preciso se livrar dos cadáveres, daqueles já frios vindos de um passado que pra sempre jaz imutável e dos outros, produtos da crença no impossível futuro, as crianças sem ovário, os bebês de alma anincéfala. Escravos dão a luz a outros escravos, liberte-se antes de acontecer. Você conseguiria por um minuto deixar de ser um animal de carga? Nada te impede de tentar. A esquizofrenia deve ser suplantada em nome de algo mais são, Chronos não se apieda de quem hesita, sua marcha é veloz.

O homem novo, o gigante gerado pelo anão, que se rebela e encontra na rebeldia um algo maior. Ele nada possui, vai serpenteando à casa celeste e lá chegando ultrapassa-a, mais alto que o céu, mais baixo que o inferno. E assim sendo é o todo e ao mesmo tempo o nada, eternamente vazio, pra se preencher do que vier, onipresente. O que for de urgência, as circunstâncias proverão, a vida cuidará pra que se realize. Por hora basta estar atento ao fluxo interior, não ao passo cambaleante das ovelhas ou de qualquer outra das miseráveis manadas. Vocês mataram Deus e agora querem que eu pague para que o mantenham vivo. Vocês transformaram o que havia de nobre, converteram em favores de pecúnia, vocês e suas malditas tabelas de preço. Sempre a pisotear o campo quando esta prestes a florir, sempre a urinar nas fontes quando a água ainda é límpida. Solte fogos no velório, chore nos bacanais da “moralidade”. Constatar que essa vida é uma causa perdida pode não ser o melhor juízo pra começar o dia mas, com alguma boa vontade pode ser a raiz pedagógica de aprender um algo inédito. A transformação não permite escudeiros, é uma busca singular. Dessa vez tente com as próprias pernas. Sem cadáveres nas costas, sem rédeas na boca, só o caminho importa. Se te parece belo, torpe, colorido, cinza ou vil. Tudo o que acrescer de ti é incidental, frívolo e dispensável. O caminho tem desígnios próprios, ele é a opção dos que já não buscam mais mentir a si mesmos.

*Leandro M. de Oliveira

Justificativa da ação

Saber a razão primária por que alguém agiu como agiu é saber a intenção com que a ação foi feita. Se viro à esquerda numa bifurcação porque quero chegar a Katmandu, a minha intenção, ao virar à esquerda, é chegar a Katmandu. Mas saber a intenção não consiste, necessariamente, em conhecer a razão primária com todo o pormenor. Se James vai à igreja com a intenção de agradar à sua mãe, deverá ter alguma pró-atitude face a agradar à sua mãe, mas é necessária mais informação para que se possa dizer se a sua razão é a de gostar de agradar à sua mãe, se é pensar que isso é o correto, se é um dever ou se é uma obrigação.

[...]

Quando perguntamos a alguém por que agiu como agiu, queremos obter uma interpretação. Talvez o seu comportamento pareça estranho, alienígena, ultrajante, injustificado, mal interpretado, desconexo. Ou talvez nem consigamos mesmo reconhecer uma ação nesse comportamento. Quando compreendermos a sua razão teremos uma interpretação, uma nova descrição do que fez e que encaixará num quadro habitual. Esse quadro inclui algumas das crenças e atitudes do agente. Talvez também inclua metas, fins, princípios, traços gerais de caráter, virtudes ou vícios. Para além disto, a redescrição de uma ação proporcionada por uma razão pode situá-la num contexto de avaliação — social, econômico, linguístico — mais alargado. Compreender, mediante a compreensão da razão, que o agente concebeu a sua ação como uma mentira, o pagamento de uma dívida, um insulto, o cumprimento de uma obrigação avuncular ou um jogo de xadrez, significa apreender o desígnio da ação enquanto aplicação de regras, práticas, convenções e expectativas.

Comentários como estes, inspirados no segundo Wittgenstein, têm sido elaborados com sutileza e profundidade por um considerável número de filósofos. E não há maneira de negar que são verdadeiros: quando explicamos uma ação através da respectiva razão, redescrevêmo-la. Redescrever a ação dá à ação um lugar num certo padrão e, por este caminho, explica-se a ação.

*Donald Davidson

domingo, 15 de novembro de 2009

Ao mestre com carinho

"É assim que me identifico, viajante,
arqueólogo do espaço,
procurando em vão reconstituir
o exotismo
com o auxílio de fragmentos
e de destroços"

Claude Lévi-Strauss Bruxelas, 28 de novembro de 1908 — Paris, 30 de outubro de 2009


Morreu no último dia 30 Claude Lévi-Strauss, andei me sentindo culpado por não ter citado nada a respeito desse homem que tanto fez pela formação intelectual do mundo nos últimos 50 anos. Foi antes de antropólogo, etnólogo ou pensador das gentes um devoto à causa de entender o fenômeno humano. Esse homem devolveu aos povos indígenas as suas almas, reconhecendo os mais distintos legados e legitimando-os perante nossa cultura (branca) através de teses estruturalistas (por ele inventadas) que investigaram questões capitais para a formação da psique das sociedades como a herança toteísta, à qual dedicou uma quadrilogia. Mas a obra desse pensador em verdade, talvez diga mais a nós brasileiros. Como não desfolhar “Tristes Trópicos” e ao sentir o impacto daquele olhar estrangeiro dizendo que a baía de Guanabara é feia, que a pureza do selvagem foi corrompida não parar um pouco e se perguntar? Lembro de um título lançado originalmente em 1994, “Saudades do Brasil”, onde através da observação da produção artística marajoara em cerâmica Claude propõe que esses artefatos produzidos no interior da Amazônia Brasileira são indícios de uma grandiosa civilização de tempos remotos a qual deu origem à toda cultura andina tal qual se conhece, fazendo assim um contraponto com tudo o que aprendemos até então. Essa suposição da grandeza ancestral leva-nos à redescoberta de nossa própria terra e à busca do significado profundo de nosso papel histórico nas Américas. Realmente de estremecer...
Sem mais o que acrescentar além de meus respeitos e minha reverência, deixo o fragmento de uma entrevista em vídeo onde relembra entre outras coisas sua passagem pela terra brasilis.


*Leandro M. de Oliveira

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Esmo

A história vai, a história leva consigo o que quer, deforma, fingi, fica. E eu homem comum, estou para ela como está uma folha, inadvertidamente a boiar na corrente de um rio, que está a boiar numa placa de terra, que bóia no magnetismo dum pólo, que bóia feito esfera na amplidão dum infinito. Quantos auges e decadências, quantas partidas e chegadas, quanta existência tenho ainda de suportar? Já vivi muitas vidas, habitei muitos corpos. A cada dia passado distancio mais dos sentidos de outrora. Permaneço solto pela campa onde muitas vezes não queria estar. O ser aqui vai fluindo em estado de sobrevida, acima dos modos locais e ao mesmo tempo, emaranhado em seus meandros como raízes de um jardim suspenso. Pode ser que eternamente permaneça aqui atado, nesse estreito horizonte tendo das assas tão somente o delírio. Irremediavelmente na condição de uma pérola que cresceu por reação alérgica ou na de um objeto estranho que numa cúpula se entranha sem que ninguém o pressinta. Pra quebrar a rotina procurei trabalhar na encenação do próximo espetáculo, preparei um discurso de redentor mas, a mim só coube o papel do gentio. Não, não fui educado na casa grande. Não tive tempo apto a decorar o catecismo romano, pensei ser uma abstenção salutar o exercício de não aprender dos homens as formas tradicionais de auto-repulsa. Quis dar aos que se diziam meus um mundo novo, a mensagem não era exatamente didática, na impossibilidade do passo além recebi na fronte o selo agudo da anátema. Cresci como cedro por entre eucaliptos, ou seria o contrário? Caminhei descalço só pra ver como é sentir os pés em carne viva. Contestação como profissão de fé. Sempre o estreito ao invés do largo, porque há mais luz fora que dentro da caverna. Fartei-me das sombras dos seres, quero agora conhecer o ser, contato imediato. Não tenho etiqueta, obediência, dieta saudável. O que trago no alforje é espólio das resultantes de um carisma selvagem. Minha fúria, minha tragédia, meu cabelo mau cortado. Tenho a irrelevância do anônimo e a turba da multidão. E isso se me afigura grave e isso me confunde o julgo. No ermo das noites não dormidas, na amplidão das estradas desabitadas, ao passo que me encontro me perco. E sendo eu, não sou ninguém. E não sendo nada, sinto as humanidades mais improváveis. Meu coração é essa fenda delgada donde o sol não visita. Meu coração é o lar donde habitam os homens que não querem mais mentir a si mesmos. Eles estão aqui, eles vem de toda parte, depositando por sobre o altar imaginário suas flores e suas cicatrizes.

Acordei com grandes planos, como a vida é pequena, esqueci tudo e me dei a seduções gratuitas.
*Leandro M. de Oliveira

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Ah, perdona al primo affetto

Já que beleza nunca é demais, um pouco de Mozart para nós.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Carta à minha alma (se de fato existires)

Sabes quanto é inexplicável. Muitos tentaram insistentemente me convencer disso, nunca acreditei de todo. E vós sois minha mais grave testemunha. Todavia, avesso àquelas implacáveis convicções produzidas em outrora, devo ceder. Há deveras alguns processos na mente humana que embora conduzidos por essa, não possuem um vínculo lógico com a racionalidade. Está acontecendo comigo agora. Alheio a tudo quanto foi de alto e elevado a meu pretenso entender, mergulho agora no túnel das lembranças mais frugais. Nenhum momento capital se me afigurou. Nem a lembrança de quando tive sexo pela primeira vez, nem a de quando chorei perdido ou a de quando fiz que chorassem por mim, nem mesmo o dia em que ganhei a primeira soma de dinheiro que me permitia mais que um punhado de balas e fui ludibriado por aquela velha que me vendeu coisas que eu nem queria. Nada. O frisson que nesse instante me domina é concebido de momentos banais, e ainda mais agudamente da displicência com esses. Vem me visitar agora por exemplo, a lembrança que nem sabia se tinha, daquele dia de chuva. Um dia qualquer sem grandes eventos. Mas lembro-me bem, a visão de meus pés pisando a terra molhada, a densidade do ar, o cheiro de vida acontecendo no ambiente... Tudo soa tão imaterial e mesmo assim tão presente. As formas assimétricas de minhas pegadas impressas no chão cor de chocolate, a fúria reconquistada das corredeiras do rio que com a chuva se despediam da vazante. O som da água contra as rochas na ribeira, o som dos cânticos pra sempre perdidos no tempo. Sempre. Haverão de existir em toda parte coisas perdidas, portos vazio, louça em cacos. Mas agora, depois de tempo passado é que posso enfim concluir. Na simplicidade daquele momento úmido eu estava em paz. Num assalto de inesperada transição fui dar em visita a outro quarto dessa casa estranha. Agora me vejo ainda mais remoçado. Minha pele lisa. Ainda virgem de pêlos e espinhas, marcas de expressão ou testemunho dos anos. Olho à frente, como em mágica ou engenho do sobrenatural, assisto a mulher de olhos agudos passar por mim. Não foi sequer um flerte, ela nem olhou diretamente. Mas como me lembro e de forma tão lúcida, do desenho assombrosamente perfeito de sua íris, naquela fração de segundo em que o sol raiva por sobre a fronte corada, pude testemunhar o reflexo que cega, a metamorfose de cores que daquela aquarela viva emanavam. Primeiro o negro, depois aclareando até um tom de mel e depois até um verde opaco. Misterioso, coisa em si ao mesmo tempo esparsa e concisa. Hipnótico como uma esmeralda tirada do útero da terra. Encantamento em estado bruto, perfeição não lapidada. Ela passou por mim. Foi quando nesse momento me dei ao exame mais apurado de sua silhueta. A textura de um algo esculpido por mãos superiores, o espírito das tentações míticas. Acho que foi ali, naquele acaso rápido, naquele momento insuspeitado, foi ali onde deveras aprendi a admirar uma anca. Não era mais possível retroceder. Não haviam mais chances de tornar a ser criança. A invasão da masculinidade se fez em mim como tributo pago pelo fito ao desconhecido e eu subtraído da identidade cotidiana, nem me dei conta do que em verdade se formava à minha frente. De qualquer forma ela passou por mim, se foi pra nunca mais. Quantos anos fazem? Dez, quinze? Não sei. Mas o perfume ainda habita minhas narinas como um hálito fresco. Mais um porta cerrou, dei em outro quarto. Não reconheço o lugar, estou como que de olhos fechados. As sensações são familiares. Parte dos cabelos longos de uma moça deitados sobre meu ombro enquanto durmo, o cheiro que invadia a casa quando minha bisavó derretia rapadura pra fazer pé-de-moleque, o transe durante um beijo de quase hora em quem se gosta, ficar deitado ouvindo o som das tempestades de março. É tudo tão diverso e ao mesmo tempo tão uno. Filhos diferentes de um mesmo pai, dedos inaparentes da mesma mão. É como se durante a vida inteira eu tivesse feito a mesma coisa de várias maneiras. Uma forma diferente a cada dia, um dia em cada minuto. E sendo desagregado fui intenso, e perdendo o que mais amava encontrei a mim mesmo. É impossível recobrar a ausência adormecida por sob as areias do tempo. É impossível fazer planos quando a morte passeia por entre o bosque. Talvez tenha descoberto o enigma. Talvez entenda porque tanto me é agora revelado. Estou pra morrer! Há um pelotão de fuzilamento à minha frente. Nazistas, fascistas, judeus, cristãos, mulheres, crianças, chineses, neo-zelandeses... Gente de bem. Todos com armas apontadas. Todos estão com sede de sangue. Foi breve demais, minha alma. Será que de fato existes? Ou aquilo a que chamo alma é um departamento de arquivos que em momentos de angústia nos permite revisitar tudo o que não foi completamente sorvido pela percepção? Claro, um pouco de cada vez. Do contrário, o repertório se tornaria monótono. Parece injusto o fato ter consciência de como se existe só quando esse estado de percepção vai prestes a fenecer. Nunca fui saudosista, aceito o novo, a mudança da biologia que é por si dinâmica. Entretanto, mesmo sabendo que não há perdão àquele que hesita, creio ter direitos de pelo menos nisso poder vacilar um pouco. Quase me entristece partir quando ainda existem tantos diamantes semeados pela estrada. Tão longa, tão sinuosa. Não tenho garantias e nem preciso tê-las. Durante alguns anos idealizei Valhala, onde os grandes ascendem à sede da imortalidade. Depois... Pó e sombra! Acidente da matéria, disso me senti composto. Quando a luz cessa sobre o corpo ele se funde com o esquecimento, deixa de existir. Foi bom sentir assim, foi bom ser tão livre quanto possível. Nenhum devir, nenhuma obrigação com a perenidade. O dilema de existir tem me vitimado nesses tempos. A consciência é minha porção divina? A consciência é o sintoma mais agudo da minha síndrome de fuga da própria condição? Pode ser que ocorra, talvez seja que tudo não passe de covardia. Seja como for, estou pronto. Posso morrer se assim o querem. Posso partir em vez derradeira. Mas como morrer ou partir? E se há algo depois? E se Valhala existe com outro nome, ou sem ele? Se esse escrito mesmo sobreviver, acaso não é uma forma de estar perene no inconsciente alheio e assim resistir à evasão última? O legado de cada um parece implacável, sempre reféns de nossos próprios fantasmas. Queria que alguém desligasse o plugue de meu corpo. Talvez uma oração sincera à santa da boa morte fosse útil. É pena, já não sou mais tão inocente. O pelotão faz mira em meu peito, engatilha as armas. Sei que a maioria das pessoas em meu lugar estaria no mínimo aterrorizada ou puta da vida, claro, no caso de que o medo permitisse essa última. Concretamente se pode dizer, pensar na brevidade da hora, ter ciência que caminha à extinção sem ter feito mais quando se podia. Andar a passos humanos por sobre a terra não é uma sucessão de horas coordenadas mas, antes uma corrente infinda de questionamentos. Nunca ter perguntado o nome daquela moça, não ter rolado naquela lama que parecia chocolate, nunca ter se entregue à correnteza do rio que em minha frente seguia... Aos de osso e carne lá estava, alheio e insondável como qualquer milagre deve ser. Sei que a indignação é legítima. Pelo julgamento dos que me conhecem e possivelmente daqueles que talvez me conhecerão (se houverem para conhecer). Tenho tudo, ao mesmo tempo nada possuo. Não há segurança do que se leva, tão somente do que se deixa. Se acaso penetramos na totalidade daquilo que à nossa volta subsiste em silêncio. E são tantas coisas... É preciso mais que a eternidade pra chegar à comunhão plena e esse nó na garganta me fornece a suspeita vil de que talvez nem isso haja à disposição daquele vai. Meu deus, meu deus por quê me abandonastes?! Quando dei por mim já não estavas. Existes em aqui ou no sonho? Nas igrejas ou nos bordéis? Existes? Há muito não sei que são trombetas nem vejo anjos aqui ou lá. Queria ter a retidão dos monges, como não posso, galopo por sobre os sapatos me meto a cabeça em fazer anarquias. Descendência de Caim. Tenho a praga dos hereges, se assim não fosse meu contento seria mais prático. Curiosamente, mesmo com toda a gravidade ainda quero sorrir. Poderia praguejar ou revoltar ou desesperar. Mas pra mim não parece justo. Como desperdiçar mais tempo se há entre nós tanta beleza?

Att,
P.A
Porto Firme; Ano Domini? MMIX
*Leandro M. de Oliveira

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Se te queres matar

Se te queres matar, por que não te queres matar?
Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida,
Se ousasse matar-me, também me mataria…
Ah, se ousares, ousa!
De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas
A que chamamos o mundo?
A cinematografia das horas representadas
Por atores de convenções e poses determinadas,
O circo policromo do nosso dinamismo sem fím?
De que te serve o teu mundo interior que desconheces?
Talvez, matando-te, o conheças finalmente…
Talvez, acabando, comeces…
E, de qualquer forma, se te cansa seres,
Ah, cansa-te nobremente,
E não cantes, como eu, a vida por bebedeira,
Não saúdes como eu a morte em literatura!

Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém…
Sem ti correrá tudo sem ti.
Talvez seja pior para outros existires que matares-te…
Talvez peses mais durando, que deixando de durar…

A mágoa dos outros?… Tens remorso adiantado
De que te chorem?
Descansa: pouco te chorarão…
O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco,
Quando não são de coisas nossas,
Quando são do que acontece aos outros, sobretudo a morte,
Porque é coisa depois da qual nada acontece aos outros…

Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda
Do mistério e da falta da tua vida falada…
Depois o horror do caixão visível e material,
E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali.
Depois a família a velar, inconsolável e contando anedotas,
Lamentando a pena de teres morrido,
E tu mera causa ocasional daquela carpidação,
Tu verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas…
Muito mais morto aqui que calculas,
Mesmo que estejas muito mais vivo além…
Depois a trágica retirada para o jazigo ou a cova,
E depois o princípio da morte da tua memória.
Há primeiro em todos um alívio
Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido…
Depois a conversa aligeira-se quotidianamente,
E a vida de todos os dias retoma o seu dia…

Depois, lentamente esqueceste.
Só és lembrado em duas datas, aniversariamente:
Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste.
Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.
Duas vezes no ano pensam em ti.
Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram,
E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.

Encara-te a frio, e encara a frio o que somos…
Se queres matar-te, mata-te…
Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência! …
Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?

Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera
As seivas, e a circulação do sangue, e o amor?

Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida?
Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem.
Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?

És importante para ti, porque é a ti que te sentes.
És tudo para ti, porque para ti és o universo,
E o próprio universo e os outros
Satélites da tua subjetividade objetiva.
És importante para ti porque só tu és importante para ti.
E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?

Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido?
Mas o que é conhecido? O que é que tu conheces,
Para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?

Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida?
Se assim a amas materialmente, ama-a ainda mais materialmente,
Torna-te parte carnal da terra e das coisas!
Dispersa-te, sistema físico-químico
De células noturnamente conscientes
Pela noturna consciência da inconsciência dos corpos,
Pelo grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências,
Pela relva e a erva da proliferação dos seres,
Pela névoa atômica das coisas,
Pelas paredes turbihonantes
Do vácuo dinâmico do mundo…

*Fernando Pessoa

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Chamado

Te encontro as seis pra mudar o mundo. Se não der pode ser as sete ou as oito, avise com antecedência. Seus pais, assim como seus fantasmas não dormem à noite, temo que fique muito tarde. De que adianta um triunfo se todos estão em suas camas. Esperaremos outro dia. Essas medidas artificiais de tempo. Os dias, são como cartas de baralho, com naipes diferentes em mãos diversas mas, sempre servindo ao mesmo jogo sujo. O tempo em si é um artifício sujo, o cadáver pré-fabricado de si mesmo. Como quero transgredir! Como quero entender como se pode ter nostalgia por lembranças que às vezes nem são suas... O maio de 68, a primavera dos povos, minha habilidade em ser melhor nunca posta em prática. Sombras ruidosas, ecos do fundo. Gostaria de uma bebida ou uma noite de sono, ambas serviriam bem ao propósito de me entorpecer um pouco. E andamos mil léguas usando o sonho como um par de coturnos, aqui estamos, de volta à miséria que consome a cada um. Ela diz acreditar na ordem, do mesmo modo que todos os tiranos conhecidos, talvez só não tenha atinado para essa parte. As pessoas são boas ou indulgentes até que alcançam seus objetivos. Busco o natural que vem de dentro, antipatizo com as regras que vem de fora. Pra que tanta euforia em dizer que o facismo vale a pena? Se homens são como gado ou formigas, quero me matar com uma faca cega, não tolero isso. Entendo que a sua carência por um novo Hitler seja um sentimento urgente mas compreenda, seu sangue não é o dos escolhidos. Só porque Deus está morto, não queira exibir sua cabeça por mera vaidade. As balas e fuzis não tem consideração com quem os deseja. É mais fácil teorizar sobre o inferno quando nunca se esteve nele. É mais fácil matar que deixar viver. Droga! O óbvio sempre me embrulha a vida e o estômago. Quero o não trilhado. Odiar e amar, é como abrir os olhos ou ir ao banheiro. E se fosse tão simples a ponto de ser mentira? E se fosse tão acessível a ponto de ser engodo? Não há mais porque temer a luz ou a sombra. Aos que caminham pela senda tortuosa da descoberta do “EU” não deve haver espaço para outra companhia senão o da presença santa do nada sem termo. Esqueça as algemas e os cadáveres que te deram de presente, a libertação é uma experiência solitária. O templo só abre as portas aos que estão completamente nus diante dele. Mas você prefere fechar os olhos e vestir sua vergonha, levanta cedo pra ser adestrado como um cão. Ainda me lembro do canto dos ressentidos... Nas escolas ensinam algo como que o nosso modo de vida foi construído a partir de termos éticos e morais, que a religião e a política são o escudo e lança do homem de bem. Não obstante a isso, a história do mundo ocidental (cristão) é construída por guerras, suplícios e martírios sem nenhum sentido. A política vai conduzida por tiranos e aspirantes aos mesmos, invariavelmente como abutres sobre o corpo decomposto do povo. Como falar em bem ou ética ou moral? A beleza dos sistemas é a tragédia dos que a ele são submetidos. Talvez a vida seja mesmo uma causa perdida. Talvez haja pó demais assentado por sobre os móveis. Pode não ser o melhor pensamento, mas é uma hipótese pedagógica. E a consciência da finitude do tempo e espaço de cada um faz o Sísifo que há no homem reclamar seu inútil papel de eternidade. A vontade de poder nos guia a cooptar a vida alheia pra que a nossa se nos pareça um pouco mais perene. Esse deve mesmo ser o segredo dos ratos que fazem barulho à noite no sótão. Acordai homens! Acordai do sono de ontem, do medo de sempre...
*Leandro M. de Oliveira

domingo, 1 de novembro de 2009

Exercício de Transcender (O Caminho da Serpente II)

Todo homem, que tenha que talhar para si um caminho para o Alto, encontrará obstáculos incomprehensiveis e constantes. Se não fossem mais que os obstáculos que se atravessam e estimulam, pelo perigo ou pela resistência directa, bem iria, e os próprios obstáculos seriam o clarim para o avanço. Mas encontrará outros — os obstáculos reles que vexam e vergam, os obstáculos suaves que adormecem e viciam, os obstáculos ternos que o farão, como Orpheu, volver o erro do olhar para o vedado Averno. Cercal-o-hão, não só resistências duras, como as que os penhascos erguem como tropeço, mas resistências brandas, como as memórias dos valles, e a dos lares nas faldas. E o triumpho consiste na força para, sabendo sentir essas attracções intensamente (pois não sabel-as sentir é não ter alma para a subida), as submeter á emoção superior; sabendo organizar as vontades do amor e da terra, saber submettel-as á vontade do espirito do mundo. Este processo de victoria, figuram-o os emblemadores no symbolo da Crucifixão da Rosa — ou seja no sacrifício da emoção do mundo (a Rosa, que é o circulo em flor) nas linhas cruzadas da vontade fundamental e da emoção fundamental, que formam o substrato do Mundo, não como Realidade (que isso é o Circulo) mas como producto do Espirito (que isso é a Cruz).

(...)

Christo, que, na dispensação material é um deus christão, e na dispensação mágica um deus, é, na dispensação divina, Deus. Na primeira ordem podem ser-lhe dirigidas orações, que terão ou não effeito segundo as regras mágicas d'essas operações da fé. Na segunda ordem podem ser-lhe feitas invocações, como a Osiris, que é o mesmo deus, e o effeito derivar-se-ha da perfeição do incantamento e do rito. Na terceira ordem não poderão ser-lhe dirigidas orações nem invocações; o processo de união com Elle não pode ser indicado em palavras nem comprehendido com a intelligencia. Aquelle que, tendo chegado até onde esse processo existe como formula de relação, pôde assistir á revelação intima, só esse o saberá, se é que, no mesmo sabel-o, o souber.

(...)

Considerar todas as coisas como accidentes de uma illusão irracional, embora cada uma se apresente racional para si mesma — nisto reside o principio da sabedoria. Mas este principio da sabedoria não é mais que metade do entendimento das mesmas coisas. A outra parte do entendimento consiste no conhecimento d'essas coisas, na participação intima d'ellas. Temos que viver intimamente aquillo que repudiamos. Nada custa a quem não é capaz de sentir o Christianismo o repudiar o Christianismo; o que custa é repudial-o, como a tudo, depois de verdadeiramente o sentir, o viver, o ser. O que custa é repudial-o, ou saber repudial-o, não como fôrma da mentira, senão como fôrma da verdade. Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os acceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo — quando o homem se ergue a este pincaro, está livre, como em todos os pincaros, está só, como em todos os pincaros, está unido ao céu, a que nunca está unido, como em todos os pincaros.

A luz falsa da realidade, a luz falsa da ficção, a luz falsa da iniciação e do secreto — dia, crepúsculo, noite, que são ellas a quem contempla a Razão limpa, a Serpente colleante atravez de mais que os mundos?

A Serpente está acima das ordens e dos systemas, e, ainda que ascenda como o sentido d'elles, dispensa as linhas e os caminhos. O seu movimento, para a direita na ordem inferior das coisas e dos seres, é-o apenas para que possa ser para a esquerda na ordem superior d'elles. O que os homens não podem conseguir senão dominando-se, ou conjugando-se, ou impondo-se, consegue a Serpente sòsinha na sua liberdade. Para ella mandar é subordinar-se á idéia de mandar; livre e cauta, ella segue rasteira atravez do mundo, e do espirito, até que sahe do mundo e do espirito.

Ella liga os contrários verdadeiros, porque, ao passo que os caminhos do mundo são, ou da direita, ou da esquerda, ou do meio, ella segue um caminho que passa por todos e não é nenhum. Ella parte, como o caminho direito e o esquerdo, do Instincto para Deus, mas não sofre a quebra onde os triângulos se unem; não fôrma angulo comsigo mesma.

(Não a traçam os symbolos senão em O ou em S, limitando ou evitando o mundo.) Nem ascende sem quebra, como o caminho médio, do Instincto a Deus. Conhecendo que ha outros caminhos, que não o médio, ella reconhece-os, pois se desvia do médio, e repudia-os, pois não segue a nenhum d'elles. Ao sahir do vértice instinctivo, ao sahir para o vértice divino, ella roça a curva produzida da vesica involvente, e assim mostra que sabe d'ella; mas roça-a e passa-a, e não segue a sua curva nem a sua maneira. Ella assim se distingue de todos os modos e condições de Deus e dos Seres. Onde parece que é egual é differente, e os dois (por assim dizer) que a formam são oppostos em seu feitio e natureza. No baixo mundo ella é a lua crescente, no mundo superior a minguante...

Ella não conhece os mysterios mas os envolve, desvia-se dos caminhos e das iniciações; deixa a sciencia por onde passa; nega a magia, que atravessa; e quando chega a Deus não para.

(...)

O caminho da Serpente está fora das ordens e das iniciações, está, até, fora das leis (rectilineas) dos mundos e de Deus. O caracter maldito, o aspecto repugnante, da Cobra, traz marcado a sua Opposição ao Universo—profundo e obscuro Mysterio Magno. Ella é o Spirito que Nega, mas nega mais, e mais profundamente, do que em geral se entende ou se pôde entender. Nega o bem no seu baixo nivel, em que é só Serpente e tenta Eva; nega a verdade no seu segundo nivel, em que é nega o bem e o mal no seu terceiro nivel, em que é Satan; nega

a verdade e o erro no seu quarto nivel, em que é Lucifer; (ou Venus); nega-se a si mesma e a tudo no seu quinto nivel, e fuga, em que é SS, a Revelação Suprema. e a si mesma se tenta e se mata.

Todos os caminhos no mundo e na lei são rectilineos; o caminho da Serpente é a evasão dos caminhos, porque é, substancial e potencialmente, a Evasão Abstracta, o reconhecimento da verdade essencial, que pôde exprimir-se, poeticamente, na phrase de que Deus é o cadáver de si-mesmo; a descoberta do Triângulo Mystico em que os trez vértices são o mesmo ponto, o segredo da Trindade e do Deus Vivo, que, em certo modo, é o Homem Morto em e atravez de Deus Morto.
*Fernando Pessoa