É preciso notar que o uso de argumentos céticos por parte de Descartes não faz dele um céptico. Longe disso. Ele usa-os meramente como um instrumento heurístico para mostrar que nós possuímos efetivamente conhecimento. Ele é, portanto, um 'céptico metódico' e não um 'céptico problemático', entendo-se por esta última expressão alguém que pensa que os problemas colocados pelos céticos são sérios e colocam uma genuína ameaça à nossa ambição de adquirir conhecimento. Acontece que muitos filósofos desde o tempo de Descartes pensaram que ele não produziu uma resposta adequada às dúvidas cépticas que ele próprio levantou e que, por conseguinte, o cepticismo é deveras um problema. O próprio Descartes pensava enfaticamente o contrário.
As considerações cépticas que Descartes usou (…) merecem aqui referência. A primeira delas é a de recordar que os sentidos por vezes nos conduzem no caminho do erro. Equívocos perceptivos, ilusões e alucinações podem levar, e ocasionalmente levam, a crenças falsas. Isto pode fazer com que não depositemos confiança no que pensamos conhecer através da experiência dos sentidos, ou, no mínimo, a sermos cautelosos a depositar confiança nela como fonte de verdade. Não obstante, diz Descartes, haverá muita coisa em que eu acredito com base na minha experiência - tal como, por exemplo, que tenho mãos e que estou a segurar um pedaço de papel com elas, que estou sentado numa poltrona defronte de uma lareira, etc. e que duvidar disto seria uma loucura, mesmo dada a falta de fiabilidade dos sentidos.
Mas será mesmo loucura duvidar destas coisas? Não, diz Descartes - e aqui ele traz o seu segundo argumento - porque eu muitas vezes sonho quando durmo e se eu estou agora a sonhar que estou sentado em frente à lareira segurando um pedaço de papel, o pensamento de que assim estou é falso. Para estar certo de que assim estou sentado, teria de poder excluir a possibilidade de que estou meramente a sonhar que assim estou sentado. Como pode isso ser feito? Parece difícil, senão impossível, fazê-lo.
Mas se estivermos a dormir e a sonhar, continua ele, poderíamos saber que, por exemplo, um mais um é igual a dois. Na verdade, há muitas destas crenças que mesmo num sonho podemos conhecer como verdadeiras. Portanto, Descartes introduz uma consideração ainda mais extrema: suponha-se que em vez de existir um deus bom que quer que conheçamos a verdade, existe um demônio maligno cujo propósito central fosse o de nos enganar a respeito de todas as coisas, mesmo acerca de 'um mais um é igual a dois' e todas as outras verdades destas aparentemente indubitáveis. Se existisse um tal ser, teríamos uma razão geral para duvidar de todas as coisas de que se pode duvidar. E agora podemos perguntar: supondo que tal ser existe, haverá, não obstante, alguma crença de que eu não possa duvidar, mesmo que o demônio enganador faça com que cada crença que eu tenha seja falsa (se puder ser falsa)? E, como sabemos, a resposta é sim, há uma crença indubitável: é a de que eu existo.
Alguns críticos deste procedimento dizem que os argumentos céticos utilizados por Descartes não funcionam. Criticam os argumentos do sonho e do demônio maligno em vários aspectos “for respective examples”, que há na realidade critérios que permitem distinguir o sonho do estado de vigília e que a hipótese do demônio enganador é muito menos plausível do que a maior parte das crenças (tais como aquela de um mais um ser igual a dois) que supostamente coloca em questão. Mas estas tentativas de mostrar que o método da dúvida de Descartes não consegue descolar do chão são desajustadas. Os argumentos de Descartes podem ser menos plausíveis que aquilo que impugnam, mas isso não é importante. Eles são simplesmente uma ferramenta heurística, algo que nos ajuda a ver o que está em causa quando dizemos que 'Eu existo' não pode deixar de ser verdade. Se, em qualquer caso, o objetivo (…) é o de demonstrar o que pode ser conhecido com certeza, praticamente qualquer instrumento heurístico que torne possível descobrir certezas funcionará igualmente bem.
*A. C. Grayling. Descartes
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