domingo, 28 de junho de 2009

Artistas estetas e filósofos estetas

Dado que qualquer resposta à pergunta "O que é a arte?" tem de ser dividida em duas fases, há duas maneiras de correr mal. Pode resolver o problema do uso satisfatoriamente, mas errar no problema da definição; ou pode lidar competentemente com o problema da definição mas falhar no problema do uso. Estes dois tipos de deficiência podem ser respectivamente descritos do seguinte modo: saber do que estamos a falar, mas dizer coisas destituídas de sentido; e dizer coisas com sentido, mas não saber do que estamos a falar. O primeiro tipo dá-nos um tratamento bem informado e relevante, mas desordenado e confuso; o segundo, um tratamento arrumado e metódico, mas irrelevante.
As pessoas que têm interesse em filosofia da arte subsumem-se aproximadamente em duas classes: artistas com uma inclinação para a filosofia e filósofos com um gosto pela arte. O artista esteta sabe do que está a falar. Consegue discriminar coisas que são arte de coisas que são pseudo-arte, e consegue dizer o que são estas outras coisas: o que as impede de serem arte e o que engana as pessoas fazendo-as pensar que são arte. Isto é a crítica de arte, que não é a mesma coisa que filosofia da arte, mas apenas com a primeira das duas fases que a constituem. É uma atividade perfeitamente válida e valiosa em si; mas as pessoas que são boas nessa atividade não conseguem necessariamente de modo algum chegar à segunda fase e oferecer uma definição de arte. Tudo o que conseguem fazer é reconhecê-la. Isto acontece porque se contentam com uma idéia demasiado vaga das relações que a arte mantém com as coisas que não são arte: não tenho em mente os vários tipos de pseudo-arte, mas coisas como ciência, filosofia, e assim por diante. Contentam-se em conceber estas relações como meras diferenças. Para formular uma definição de arte é necessário pensar em que consistem essas diferenças exatamente.
Os filósofos estetas têm formação para fazer bem exatamente o que os artistas estetas fazem mal. Estão admiravelmente protegidos contra a conversa destituída de sentido: mas não há garantia de que saibam do que estão a falar. Daí que a sua teorização, por mais competente que seja em si, facilmente sofra de fraquezas na sua fundamentação factual. A tentação que sentem é iludir esta dificuldade dizendo: "Não pretendo ser um crítico; não estou à altura de ajuizar os méritos do Sr. Joyce, do Sr. Eliot, da Menina Sitwell, ou da Menina Stein; de modo que me limito a Shakespeare e Miguel Ângelo e Beethoven. Há muito a dizer sobre a arte com base apenas nos clássicos reconhecidos." Isto seria aceitável para um crítico; mas para um filósofo não. O uso é particular, mas a teoria é universal, e a verdade que se tem em vista é index sui et falsi. O esteta que declara saber o que faz de Shakespeare um poeta está tacitamente a declarar que sabe se a Menina Stein é ou não uma poetisa, e, se não o é, por que não. O filósofo esteta que se restringe a artistas clássicos garante certamente que localizará a essência da arte não no que faz deles artistas, mas no que os faz deles clássicos, isto é, aceitável aos olhos do espírito acadêmico.
A estética dos filósofos, não dispondo de um critério material a favor da verdade das teorias na sua relação com os fatos, não pode senão aplicar um critério formal. Pode detectar defeitos lógicos numa teoria e conseqüentemente rejeitá-la por ser falsa; mas nunca pode aclamar ou proclamar qualquer teoria como verdadeira. É completamente inconstrutiva; tamquam virgo Deo consecrata, nihil parit. Contudo, a virtude fugitiva e enclausurada da estética acadêmica não é totalmente destituída de aplicação, ainda que meramente negativa. A sua dialética é uma escola na qual o artista esteta ou o crítico podem aprender as lições que lhe mostrarão como passar da crítica de arte à teoria estética.

*R. G. Collingwood
**Tradução de Desidério Murcho

sábado, 27 de junho de 2009

Vide cor meum

E pensando di lei
Mi sopragiunse uno soave sonno

Ego dominus tuus
Vide cor tuum
E d'esto core ardendo
Cor tuum

Lei paventosa umilmente pascea
Appresso gir lo ne vedea piangendo

La letizia si convertia
In amarissimo pianto

Io sono in pace
Cor meum
Io sono in pace
Vide cor meum.
* Aria de Patrick Cassidy sobre texto de Dante Alighieri.

O Sono

Le Sommeil, 1866
Gustave Courbet

Óleo sobre tela; (135 x 200).

Petit Palais, Musée des Beaux-Arts de la Ville de Paris - França.

"Sem comentários a essa obra que pra mim é um dos pontos máximos da escola realista Francesa, apenas sublime..."

Link Externo:

http://www.paris.fr/portail/Culture/Portal.lut?page_id=6229&document_type_id=4&document_id=13956&portlet_id=14052&multileveldocument_sheet_id=1353

sexta-feira, 26 de junho de 2009

As duas condições de uma teoria estética

(...) "O que é a arte?"

Uma pergunta deste tipo tem de ser respondida em duas fases. Em primeiro lugar, temos de garantir que a palavra crucial (neste caso "arte") é tal que sabemos aplicá-la onde deve ser aplicada e recusá-la onde deve ser recusada. Não serviria de muito começar por discutir a definição correta de um termo geral cujos casos não pudéssemos reconhecer quando os víssemos. A nossa primeira tarefa é, então, colocarmo-nos numa posição em que possamos dizer confiantemente "isto e isto e isto são arte; aquilo e aquilo e aquilo não são arte."
Dificilmente valeria a pena insistir nisto não fossem dois fatos: que a palavra "arte" é de uso comum, e que é usada equivocadamente. Se não fosse uma palavra de uso comum, poderíamos decidir por nós quando aplicá-la e quando recusá-la. Mas o problema de que nos ocupamos não é tal que se possa abordar desse modo. É um daqueles problemas em que o que queremos fazer é clarificar e sistematizar idéias que já temos; consequentemente, não vale a pena usar palavras de acordo com uma regra privada que seja nossa, temos de as usar de um modo que se adéqüe ao uso comum. Uma vez mais, isto seria fácil não fosse o fato de o uso comum ser ambíguo. A palavra "arte" quer dizer várias coisas diferentes; e temos de decidir qual destes usos nos interessa. Além disso, os outros usos não podem ser simplesmente eliminados por serem irrelevantes. São muito importantes para a nossa investigação; em parte porque se geram teorias falsas por incapacidade para os distinguir, de modo que ao elucidar um uso temos de dar uma certa atenção a outros; em parte porque confundir os vários sentidos da palavra pode resultar em má prática tal como em má teoria. Temos conseqüentemente de passar em revista os sentidos inapropriados da palavra "arte" de um modo cuidadoso e sistemático; de maneira que no fim possamos não apenas dizer "aquilo e aquilo e aquilo não são arte", mas "aquilo não é arte por exemplo é pseudo-arte do tipo A; aquilo, porque é pseudo-arte do tipo B; e aquilo, porque é pseudo-arte do tipo C".
Em segundo lugar, temos de definir o termo "arte". Isto vem em segundo lugar, e não em primeiro, porque ninguém pode sequer tentar definir um termo até ter estabelecido na sua própria mente um dado uso do termo: ninguém pode definir um termo de uso comum até se sentir satisfeito de que o seu uso pessoal está em harmonia com o uso comum. Definir significa necessariamente definir uma coisa em termos de outra; logo, para definir qualquer coisa, temos de ter não apenas uma idéia clara do que há a definir, mas também uma idéia igualmente clara de todas as outras coisas com referência às quais o definimos. As pessoas erram muitas vezes nisto. Pensam que para construir uma definição ou (o que é o mesmo) uma "teoria" de algo, é suficiente ter uma idéia clara dessa coisa. Isso é absurdo. Ter uma idéia clara da coisa permite-lhes reconhecê-la quando a vêem, tal como ter uma idéia clara de uma certa casa lhes permite reconhecê-la quando lá estão; mas definir a coisa é como explicar onde fica a casa ou indicar a sua posição no mapa; é necessário conhecer igualmente as suas relações com as outras coisas, e se as nossas idéias sobre essas outras coisas são vagas, a nossa definição será fútil.

*R. G. Collingwood
**
Tradução Desidério Murcho

As nações tem desígnios próprios?

O respeito pelas pessoas como agentes morais autônomos exige que lhes concedamos o direito de escolher uma posição moral para si próprias, por mais repulsiva que possamos achar a sua escolha. Segundo a filosofia do liberalismo político, exige-se também que insistamos que o governo não comece por ocupar as escolhas morais individuais estabelecendo uma religião de estado ou uma moralidade de estado. Mas a oposição intransigente a todas as formas de autoritarismo político e moral não deve comprometer-nos com o relativismo moral ou com o cepticismo moral. A razão pela qual é errado o governo ditar uma moralidade ao cidadão individual não é que existam dúvidas acerca de quais são as formas de vida satisfatórias e quais são as formas de vida não satisfatórias, ou de algum modo moralmente erradas. (Se não houvesse tal coisa como o moralmente errado, então não seria errado o governo impor escolhas morais.) O fato de algumas pessoas recearem, ao admitirem abertamente algum tipo de objetividade moral, encontrar algum governo a impor-lhes a sua noção de objetividade é, sem dúvida, uma das razões pelas quais tanta gente subscreve um subjetivismo moral ao qual não dá um assentimento real.
*Hilary Putnam

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Felicidade: A morte e o absurdo (Simbolismo e Valor)

Os filósofos antigos tiveram muito a dizer sobre a felicidade. Supunham que "a melhor vida" e "a vida feliz" eram a mesma coisa, e geralmente aceitavam que a felicidade consistia numa vida de razão e virtude. Epicuro (341-270 a. C.) recomendou uma vida simples, de modo a evitar-se sofrimentos e ansiedades. Os estóicos acrescentaram que um homem sábio não permitiria que a sua felicidade dependesse de coisas que estivessem fora do seu controlo, como a riqueza, a saúde, a boa aparência ou as opiniões dos outros. Não podemos controlar as circunstâncias externas, disseram, pelo que devemos ser indiferentes as essas coisas, aceitando-as como aparecem. Epicteto (c. 55-135), um dos grandes professores estóicos, deu este conselho aos seus estudantes: "Não peçam que as coisas ocorram segundo a vossa vontade; façam que a vossa vontade seja que as coisas ocorram como ocorrem de fato, e terão paz".
Algumas destas idéias podem parecer questionáveis, mas uma parte notável delas tem sido confirmada pela investigação psicológica moderna. Consideremos, por exemplo, a idéia de que a riqueza não traz felicidade. Dado que a maior parte das pessoas quer ser rica, poderíamos pensar que há alguma correlação entre a riqueza e a felicidade. Mas não há. Quando Ronald Inglehardt, cientista político da Universidade de Michigan, comparou os níveis de riqueza de países diferentes com aquilo que as pessoas desses países dizem sobre a sua satisfação com a sua vida, descobriu que as pessoas dos países mais ricos não são mais felizes do que as dos países mais pobres. Por vezes acontece o oposto: os alemães ocidentais têm o dobro da riqueza dos irlandeses, mas os irlandeses são mais felizes. Dentro de países particulares, encontrou a mesma ausência de correlação: as pessoas que têm mais dinheiro não são mais felizes do que as outras. Portanto, ser rico não importa. As pessoas afetadas pela pobreza tendem a ser menos felizes do que aqueles que possuem o suficiente para viver, mas, para quem está acima da linha de pobreza, o dinheiro adicional faz pouca diferença. O psicólogo David Myers observa que "Quando se ultrapassa a pobreza, o crescimento econômico suplementar não melhora significativamente o ânimo dos seres humanos".
Os estudos sobre vencedores de lotarias confirmam isto de forma notável. Como é óbvio, os vencedores de loterias ficam extremamente felizes quando sabem das boas notícias e a euforia tende a durar alguns dias. Mas, passado pouco tempo, regressam ao seu nível normal de felicidade. No essencial, as pessoas amuadas voltar a ficar amuadas. Podem ser capazes de deixar o emprego e de comprar muitas coisas, mas, no que respeita ao seu nível de felicidade, a riqueza recentemente adquirida não faz diferença.
Surpreendentemente, pode-se dizer algo semelhante das pessoas que sofrem desastres. Para as pessoas que são essencialmente felizes, uma calamidade — mesmo que tenha efeitos a longo prazo — pode causar uma descida momentânea de felicidade, mas elas recuperaram depressa. Um estudo incidiu em vítimas de acidentes de automóvel de Michigan que tinham sofrido danos na coluna. Três semanas depois, a felicidade prevalecia novamente entre elas (ou pelo menos foi isso que disseram). Um estudo da Universidade de Illinois descobriu que os estudantes sem deficiências e os estudantes deficientes se descreviam em termos virtualmente idênticos: felizes durante 49 por cento do tempo, infelizes durante 22 por cento do tempo e neutros em 29 por centro do tempo. Os estudos sobre pacientes com cancro também não mostraram diferenças de longo prazo entre os seus estados emocionais anteriores e posteriores ao diagnóstico.
Então o que tornará as pessoas felizes? Se não é a riqueza ou a saúde, o que será? Os estudos indicam que a felicidade está correlacionada com várias coisas. Uma delas é o controlo pessoal — ter controlo sobre a própria vida e destino, ou pelo menos acreditar que se tem esse controlo. (Curiosamente, as pessoas que vivem em países democráticos com imprensa livre declaram-se mais felizes do que aquelas que vivem noutros países. Entenda isto como quiser.) Ter boas relações com outras pessoas, especialmente com os amigos e familiares, também é vital. Um trabalho compensador é um terceiro elemento de uma vida feliz: as pessoas que sentem estar a fazer algo com valor declaram-se mais felizes do que as pessoas que não se ocupam de tarefas com sentido.
Num certo sentido, a felicidade sustenta-se a si própria, já que as pessoas felizes tendem a comportar-se de formas que as mantêm felizes. Têm melhor opinião das outras pessoas e são menos cínicas. Por isso, fazem amizades com mais facilidade. As pessoas felizes são mais otimistas: quando se lhes coloca questões específicas sobre como estão a correr as coisas, têm uma maior tendência para pensar que os seus automóveis e televisões estão a funcionar bem. Têm também uma maior tendência para preferir recompensas de longo prazo a satisfações imediatas, e ganham com isso, já que essa geralmente é uma boa estratégia.
Podemos pensar então que, para sermos felizes, precisamos controlar a nossa vida, fazer amigos e procurar trabalho que tenha sentido. Isto pode ser verdade, mas há um problema. Paradoxalmente, se valorizarmos estas coisas apenas enquanto meio para a felicidade, elas não nos farão felizes. Não podemos procurar a felicidade diretamente. Em vez disso, temos de valorizar os amigos e o trabalho por si. A felicidade será então um efeito colateral bem-vindo. John Stuart Mill declarou ter aprendido esta lição com a sua depressão. Depois de ter recuperado, Mill compreendeu o seguinte:
Só são felizes (pensei) aqueles que fixam a sua mente num objeto que não a sua própria felicidade, como a felicidade dos outros, o aperfeiçoamento da humanidade ou mesmo alguma arte ou atividade, procurando-o não como meio, mas como fim ideal em si. Tendo outra coisa em vista, encontram a felicidade pelo caminho. […] Pergunte a si próprio se é feliz e deixará de o ser. A única hipótese é tratar, não a felicidade, mas outro fim que lhe seja exterior, como propósito da vida.

Morte

A idéia de que, num sentido mais amplo, mesmo uma vida feliz é absurda costuma ser apoiada por duas idéias. Uma delas é que vamos morrer inevitavelmente; a outra é que o universo nos é indiferente. Examinemos separadamente estas idéias.

Que atitude deveremos ter em relação à nossa mortalidade? Obviamente, isso depende do que julgamos que acontece quando morremos. Algumas pessoas acreditam que irão viver para sempre no paraíso. A morte, portanto, é como mudar para uma casa melhor. Se acreditamos nisto, devemos pensar que a morte é boa, pois ficaremos melhor depois de morrermos. Aparentemente, Sócrates tinha esta atitude, mas a maior parte das pessoas não a tem.
A morte pode ser, pelo contrário, o fim permanente da nossa existência. Se assim for, a nossa consciência extinguir-se-á e será o nosso fim. É importante compreender o que isto significa. Algumas pessoas parecem presumir que a inexistência é uma condição misteriosa, difícil de imaginar. Perguntam "Como será estar morto?" e ficam perplexas. Mas isto é um erro. A razão pela qual não conseguimos imaginar como é estar morto é o fato de estar morto ser como nada. Não conseguimos imaginar porque nada há para imaginar.
Se a morte é o fim da nossa existência, que atitude devemos ter relativamente a isso? A maior parte das pessoas pensa que a morte é uma perspectiva terrível. Odiamos a idéia de morrer e estamos dispostos a fazer quase tudo para prolongar a nossa vida. Porém, Epicuro disse que não devemos recear a morte. Numa carta a um dos seus seguidores, defendeu que "A morte nada é para nós", já que quando estivermos mortos não existiremos e, não existindo, nada de mal poderá acontecer-nos. Não estaremos infelizes, não sofreremos (não sentiremos medo, preocupações ou aborrecimentos) e não teremos desejos nem remorsos. Logo, concluiu Epicuro, a pessoa sábia não receará a morte. Epicuro acreditava que, ao eliminar o medo da morte, estas reflexões filosóficas podiam contribuir positivamente para a nossa felicidade durante a vida.
Há alguma verdade nisto. Ainda assim, esta perspectiva ignora a possibilidade de a morte ser má por constituir uma privação enorme — se a nossa vida pudesse continuar, poderíamos desfrutar de todos os gêneros de coisas boas. Deste modo, a morte é um mal porque põe fim às coisas boas da vida. Isto parece-me correto. Depois de eu morrer, a história humana prosseguirá, mas não conseguirei fazer parte dela. Não verei mais filmes, não lerei mais livros e não farei mais amigos nem mais viagens. Se eu morrer antes da minha mulher, não conseguirei estar com ela. Não irei conhecer os meus bisnetos. Surgirão novas invenções e far-se-ão novas descobertas sobre a natureza do universo, mas nunca irei conhecê-las. Será composta nova música, mas não irei ouvi-la. Talvez venhamos a estabelecer contacto com seres inteligentes de outros mundos, mas não saberei disso. É por esta razão que não quero morrer e que o argumento de Epicuro é irrelevante.
Mas será que o fato de ir morrer torna a minha vida absurda? Afinal, diz-se, o que interessa trabalhar, fazer amigos e constituir uma família se acabaremos por deixar de existir? Esta idéia tem uma certa ressonância emocional, mas envolve um erro fundamental. Temos de distinguir o valor de uma coisa da sua duração. Estas são questões diferentes. Uma coisa pode ser boa enquanto dura, mesmo que não vá durar para sempre. Enquanto controlaram o Afeganistão, os talibã destruíram diversos monumentos antigos. Isso foi uma tragédia porque esses monumentos eram maravilhosos, e o fato de serem vulneráveis não os tornava menos valiosos. Também uma vida humana pode ser maravilhosa, mesmo que tenha de terminar inevitavelmente. Pelo menos, o simples fato de que vai terminar não anula o valor que tenha.

*James Rachels

Clonagem humana, um ponto de vista

Atendendo a pedidos venho postar esse pequeno texto do português Alexei Buruian, ele trata talvez da maior dicussão médico-ética de nosso ponto, a clonagem humana. Esclareço que não expressa a minha convicção integral sobre o assunto, todavia, julguei consistente o bastante para início de uma discussão mais larga a qual pretendo iniciar com novos posts. Espero que gostem. Abraços a todos.

Att,
Leandro M. de Oliveira

"Será a clonagem humana moralmente aceitável?

Há duas possíveis aplicações para a clonagem humana: a clonagem terapêutica, que não vou abordar neste ensaio, e a clonagem reprodutiva. Este tipo de clonagem visa a criação de indivíduos geneticamente iguais a um organismo já existente, através do processo de transferência nuclear. Este processo consiste em introduzir um núcleo dador num ovócito anucleado, implantar a nova célula obtida num útero e esperar pelo desenvolvimento do feto.

Importa chegar a um consenso acerca da moralidade da clonagem. Enquanto não o fizermos, poderemos estar injustificadamente a privar as pessoas de gozarem de um novo meio de reprodução.

Irei defender que, dado o deficiente estado de aperfeiçoamento da técnica da clonagem, não é moralmente aceitável recorrer à clonagem reprodutiva humana.

São diversos os argumentos contra a clonagem: o argumento das relações familiares, o argumento da identidade, o do apelo à natureza e outros. Contudo, não são estes argumentos que influenciaram a minha opinião acerca deste assunto. Objeções fortes, como as de que a família tradicional não é o único modelo aceitável de relações familiares; a objeção de que a identidade de uma pessoa não depende apenas do seu DNA; e a objeção de que o apelo à natureza se baseia numa definição imprecisa daquilo que a natureza é, de que modo a clonagem se lhe opõe e por que é errado fazer coisas antinaturais, levaram-me a não ter em consideração estes argumentos.

Mas há outras razões talvez mais fortes contra a clonagem. Em primeiro lugar, há o perigo de eugenia, ou seja, a seleção de indivíduos com genes mais favoráveis ao desenvolvimento da nossa raça. As pessoas poderiam recorrer à clonagem para tentar ultrapassar a sua longevidade, através da perpetuação do seu ADN; criar grupos de pessoas geneticamente iguais, para desempenharem uma determinada função (por exemplo, clonar pessoas altas, para que estas constituíssem uma equipe homogênea de basquetebol) ou até clonar celebridades para que os filhos (os clones) herdassem o talento deles. Em todos estes casos, haveria também uma forte expectativa para que o clone sirva o objetivo para o qual foi criado. Desta maneira o clone seria instrumentalizado, seria usado como um meio e não como um fim em si, o que constituiria um atentado à sua dignidade.

No entanto, estes argumentos talvez sejam exagerados, já que não há uma ligação necessária entre a clonagem e a eugenia e pode-se alegar que não é pelo fato de o clone ter sido criado com um objetivo que este perderá a sua dignidade (muitos pais também têm objetivos pessoais para os seus filhos e isso não leva a que estes percam a sua dignidade como seres humanos). O clone seria uma pessoa autônoma, pois teria sempre o direito de fazer as suas próprias escolhas na vida, como um ser humano comum.

O argumento mais forte contra a clonagem acaba por ser o de que a própria taxa de sucesso da clonagem é muito baixa. O nascimento da ovelha Dolly, por exemplo, foi o resultado de 276 clonagens fracassadas, e há indícios de que os clones criados com a tecnologia atual poderão nascer defeituosos e ter uma esperança de vida bastante inferior a media. Afinal Dolly morreu com apenas 6 anos de idade, quando o normal seria cerca de 12 anos. Na minha opinião, estes elevados custos humanos são inaceitáveis.

Contudo, como qualquer outra tecnologia, também a clonagem pode evoluir e há sempre a possibilidade de esta chegar a ter um sucesso semelhante ao da reprodução tradicional e, neste caso, o argumento seria anulado.

Os principais argumentos a favor da clonagem, invocam o valor prático que esta poderá ter. A clonagem permitiria aos casais inférteis ou homossexuais a possibilidade de obterem filhos geneticamente relacionados com pelo menos um dos progenitores. Aliás, um direito que muitos seres humanos reclamam é o da sua autonomia reprodutiva, pelo que proibir a clonagem com fins reprodutivos iria também pôr em causa esse direito. Além disso, a clonagem reprodutiva também poderia ajudar na investigação científica e filosófica relacionada com o ser humano. Por exemplo, poderia melhorar a nossa compreensão das doenças genéticas e ajudaria a responder a perguntas como «De onde provém o talento de uma pessoa? Será algo com que a pessoa já nasce ou será algo adquirido durante a sua vida?».

Contudo, acho que o argumento da baixa taxa de sucesso da clonagem é suficientemente forte para que, pelo menos, se limite esse direito. Afinal, nascer uma criança em quase 300 tentativas, com a possibilidade de ter graves doenças congênitas, só por si já constitui um grande obstáculo, tanto à obtenção de um filho como à pesquisa científica.

Concluindo, atualmente a clonagem ainda não está suficientemente bem desenvolvida para que seja aplicada aos seres humanos, pelo que estou contra. Contudo, terei de rever a minha posição caso algum dia a clonagem prove ser um método tecnicamente fiável."

*Alexei Buruian

sexta-feira, 19 de junho de 2009

O homem livre

Existe uma gama de espíritos inferiores, os ressentidos e mal situados no fluxo da vida. Esses tentam a toda custa justificar o ato de existir com indulgências mentirosas e palavras construídas sob a égide da hipocrisia. Relutam incessantemente a tomar nas mãos o que a vida lhes deu de forma gratuita,e pagam o mais alto preço para que renunciem ao bem que lhes persegue em favor de alguém que julgam mais necessitados. Esses homens de sal, essas pessoas sem cor fazem isso não por caridade em seu sentido lato, mas antes para autoglorificarem-se a si mesmos. Absortos que estão, não percebem que o tempo é veloz e que a vida não exita em tirar num dia aquilo que deu em outro. Preferem as penas aos horizontes, as lágrimas ao riso, isso não é apenas irracional, é uma blasfêmia contra a vida. Julgar que a esquiva do mundo por si só é uma forma de melhora, de elevação. E esses ditos puros nos olham do alto de suas torres de papel, imaginam em suas cabeças “Como sofrem essas pobres formiguinhas, tenho pena delas...” Homens puros eu vos abomino! Um homem desses poder-se-ia dizer um novo Prometeu, mas isso seria insidioso, esses grandes de outrora nunca aspiraram a própria grandeza, compará-los como desejam é dar vazão à mãe de todas as insídias. Todavia, a segunda espécie de homens a dos Homens livres, em nada se coaduna com esse ideal de autoflagelo voluntário. O Homem livre ama a vida, a sua busca última é a realização plena. Ele é uma aspiração da vida por si mesma. Enquanto o ressentido diz, “você foi stigmatizado pelo pecado, arrependa-se!” O Homem livre diz, “a ti foi entregue o dom supremo, a medida de compaixão da vida que lhe permite recomeçar sempre, não importando tua falta consigo mesmo, celebre!”

A diferença básica entre esses dois tipos de seres reside sobretudo no radical de cada um, isto é, na raiz da crença de vida em cada um. O ressentido, aquele que teceu o próprio açoite, persegue o pecado original, luta incessantemente para dar testemunho de seu arrependimento por algo que nem ele e nem mesmo um antepassado distante cometeu. Aceita a hipótese em que pela privação de todos os prazeres, torna-se muito superior, gosta de fantasiar em seu ego que a incapacidade que possui de apreciar a vida e sua pena por si mesmo podem levá-lo a um a um estado de sublimação ímpar. Todavia, o homem livre, aquele algo além que deve ser a busca última da humanidade não é apenas conflitante com esse indivíduo mas, com efeito, diametralmente oposto. Ele crê num conceito revolucionário, uma forma de ver que desafia toda a religião, toda a ordem social e qualquer outra sorte de apologia ao se sentir escravo criada para justificar a condição humana. O homem livre crê na pureza original, no viver a partir do coração, não importando o quanto esdrúxulo isso pareça. Ele descarta as palavras “feio”, “proibido”, “impossível”. Abomina a tradição do nosso tempo, essa culpa incriada, que foi nossa muleta ao sentirmos tanta pena de nós mesmos. Ele diz: “Lance fora essas escoras, deixe de andar como aleijo!”

*Leandro M. de Oliveira

O que é ser bom?

Às vezes chamar "bom" a alguém não quer dizer nada de bom: a tal ponto que costuma dizer-se coisas como esta - "O Fulano coitado, é muito bom." O poeta espanhol António Machado estava consciente desta ambiguidade e na sua autobiografia poética escreveu: " Sou bom no bom sentido da palavra..." Sabia que, com frequência, o fato de se chamar a um indivíduo "bom" se refere apenas à sua docilidade, à sua tendência para não contrariar os outros e para não causar problemas, para ser ele sempre a virar os discos enquanto os outros dançam, e assim por diante.

Para alguns ser bom significará ser resignado e paciente, mas outros chamarão boa à pessoa empreendedora, original, que não se encolhe quando chega a hora de dizer o que pensa ainda que isso possa ferir alguém. Em países como a África do Sul, por exemplo, alguns considerarão bom o negro que não causa problemas e se conforma com o apartheid, ao passo que outros só chamarão bons aos apaniguados de Nelson Mandela. E sabes por que é que não é simples dizer quando é que um ser humano é "bom" e quando é que não o é? Porque não sabemos para que servem os seres humanos. Um futebolista serve para jogar futebol de uma maneira que ajude a sua equipe a ganhar fazendo gols no adversário; uma moto serve para nos deslocarmos com velocidade, estabilidade, resistência... Sabemos quando é que um especialista nalguma coisa ou instrumento funcionam como devem ser porque temos uma idéia do serviço que eles devem prestar, uma idéia do que se espera deles. Mas, se considerarmos o ser humano em geral, a coisa complica-se: dos seres humanos exige-se umas vezes resignação e outras vezes rebeldia, umas vezes iniciativa e outras obediência, umas vezes generosidade e outras vezes previsão do futuro, etc. Não é fácil determinar sequer uma qualquer virtude: o fato de um futebolista um gol no time contrário sem cometer falta é sempre uma coisa boa, mas dizer a verdade poderá não o ser. Chamarias "bom" ao que por crueldade diz ao moribundo que vai morrer ou ao que denuncia ao assassino o lugar onde se esconde a vítima que ele pretende matar?

*Savater in Ética para um jovem

Prêmio Top Blog 2009

Saudações,
Quero agradecer a vocês amigos e fiéis leitores que possibilitaram a indicação dessa singela página ao "Top Blog 2009". A sua constância nos acessos e na atenção que teêm comigo é o que inspira e move meu esforço, fazendo com que seja mais esmerado a cada dia para oferecer uma ferramenta que possa não possibilitar todas as respostas, mas quando pouco, formular algumas boas questões. Pois como diria um grande mestre da antiga Athenas, "uma vida não questionada é uma vida que não se vale a pena viver". Essa é a mensagem básica que tento expor aqui por meio de textos, reflexões, poemas e gravuras. Aos que acreditam nessa idéia, muito obrigado por estarem aqui. Esse sentido de identidade comum entre nós é o que me tem feito sonhar mais alto e tem-me possibilitado esses flertes com coisas maiores dantes não imaginadas. De coração agradeço a todos irrestritamente, mesmo àqueles que em algum momento vieram com o intuito de me desacreditar, vocês me lembraram de coisas importantes... Por fim, aos amigos e novos visitantes, peço que deixem seu voto clicando na figura branca que aparece no canto superior direito da página.

A todos, saudações soturnas,
Mais uma vez obrigado, muito obrigado...

Ps: Um agradecimento especial a Lú, Pititi e ao Kurt, em meio à incerteza desses tempos a força da crença de vocês faz tudo parecer possível. Aos três, os meus carinhos e as minhas elevadas formas de amar...

Att,
Leandro M. de Oliveira

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Aprendiz de filósofo, como se comportar à busca do conhecimento profundo

Ora se o fundamental da Filosofia é, de fato, a crítica, e se a Filosofia deve ser estudada, não pelo mérito das respostas precisas sobre um certo número de questões primárias, mas pelo valor que em si mesma ela assume, para a cultura do espírito, a mera discussão de tais problemas, segue-se que é ideia inteiramente absurda a de se dar a alguém uma iniciação filosófica pela pura transmissão das respostas precisas com que pretendeu resolver esses tais problemas um determinado autor ou uma certa escola. Deverá pois a iniciação filosófica assumir um caráter essencialmente crítico, e consistir num debate dos problemas básicos que não seja dominado pelo intuito dogmático de cerrar as portas a discussões ulteriores. (...) Repito: seja a Filosofia para o aprendiz de filósofo, não uma pilha de conclusões adotadas, e sim uma atividade de elucidação dos problemas. É esta atividade o que realmente importa, e não o aceitar e propagandear conclusões. (...) Pode ser muito útil para a vida prática o simples enunciado de uns tantos teoremas de matemática: porém, não há nisso sombra de valor cultural: só possui de fato valor cultural o perfeito entendimento dos raciocínios que nos dão as provas dos enunciados.

Por isso mesmo, ao lermos um filósofo de genuíno mérito, de dois erros opostos nos cumprirá guardar-nos: o primeiro de nos mantermos aí eternamente passivos e de tudo aceitarmos como se fossem dogmas, de que depois tentaremos convencer o próximo; o segundo, o de criticarmos demasiado cedo, antes de chegarmos à compreensão do texto. Para evitar o escolho do segundo erro, a atitude inicial do aprendiz de filósofo deverá ser receptiva e de todo humilde. Se achar uma ideia no texto de um Mestre que lhe pareça de fácil refutação, conclua que ele próprio é que não percebe, e que o pensar do autor deverá ser mais fino, mais meandroso, mais facetado, mais verrumante, do que ao primeiro relance se lhe afigurou: e que se lhe impõe, portanto uma atenção maior...

*António Sérgio in Os problemas da Filosofia,de Bertrand Russell (Prefácio)

A crença e o conhecimento

Tipos de Conhecimento

No quotidiano (…) falamos acerca do “conhecimento” de coisas. Dizemos também que certas crenças estão “fortemente apoiadas por provas”; que elas estão “justificadas” ou “bem confirmadas”.(…)
A epistemologia tenta avaliar a idéia do senso comum de que possuímos (frequentemente, senão sempre) realmente conhecimento e que as crenças que temos estão (frequentemente, senão sempre) racionalmente justificadas. Alguns filósofos tentaram defender com argumentação filosófica estas idéias do senso comum. Outros desenvolveram uma posição filosófica que nega estas idéias do senso comum. Um filósofo que sustenta que não temos conhecimento, ou que as nossas crenças não têm justificação racional, está a defender uma versão de cepticismo filosófico. (…)

Três tipos de conhecimento

Antes de perguntarmos a nós mesmos se conhecemos alguma coisa, temos de tornar claro o que é o conhecimento. Para focar idéias, quero distinguir três diferentes sentidos em que podemos falar de conhecimento. (…)
Considere-se a diferença entre as declarações seguintes, relativas a um sujeito, a quem chamarei S (o sujeito):

(1) S sabe andar de bicicleta.
(2) S conhece o Presidente dos Estados Unidos.
(3) S sabe que as Montanhas Rochosas ficam na América do Norte.

Chamo conhecimento proposicional ao tipo de conhecimento apresentado em (3). Note-se que o objeto do verbo em (3) é uma proposição — uma coisa que é verdadeira ou falsa. Existe uma proposição — as Montanhas Rochosas ficam na América do Norte — e (3) afirma que S sabe que essa proposição é verdadeira. As frases (1) e (2) não têm esta estrutura. O objeto do verbo em (2) não é uma proposição, mas uma pessoa. O mesmo tipo de conhecimento estaria envolvido se eu dissesse que S conhece Chicago. A afirmação (2) diz que S está ou esteve na presença de uma pessoa, de um lugar ou de uma coisa. Por isso, direi que (2) descreve uma instância de conhecimento por contacto.(…)
Consideremos agora o tipo de conhecimento descrito na afirmação (1). Chamar-lhe-ei conhecimento de saber fazer. Que significa dizer que sabemos fazer qualquer coisa? Penso que esta idéia tem pouco a ver com o conhecimento proposicional. O meu filho Aaron sabia andar de bicicleta aos cinco anos. Isso significa que ele tinha certas aptidões – sabia como manter o equilíbrio, como pedalar, e por aí fora. Se perguntar a um físico para descrever o que Aaron fazia para poder andar na bicicleta, ele poderia pôr por escrito um conjunto de proposições. Estabeleceria fato acerca da gravidade, do movimento para frente, do equilíbrio de forças. Porém, Aaron, com a idade de cinco anos, não era um físico. Não conhecia as proposições que o físico especifica. Aaron obedece aos princípios que o físico descreve – o seu comportamento está em conformidade com o que aqueles dizem. Mas não o faz aprendendo as proposições em questão. Aaron possui um conhecimento de saber-fazer, mas pouco conhecimento do tipo proposicional. Conversamente, um físico que tem um conhecimento detalhado dos princípios físicos que descrevem como se deve andar de bicicleta pode, não obstante, não saber como andar de bicicleta. (…) Não necessitamos de conhecimento proposicional para saber executar uma tarefa, nem ele é suficiente para tal.

Dois Requisitos para o Conhecimento: Crença e Verdade

Devemos fazer notar desde já duas idéias que fazem parte do conceito de conhecimento. Primeiro, se S sabe que p, então tem de acreditar que p. Segundo, se S sabe que p, então p tem de ser verdadeira. O conhecimento requer tanto a crença quanto a verdade. (…)
A segunda idéia requer alguma explicação. As pessoas dizem às vezes que sabem coisas que mais tarde se revelam falsas. Ora, isto não quer dizer que sabem coisas que são falsas, mas que pensavam que sabiam coisas que, de fato, se revelaram falsas.
O conhecimento tem um lado subjetivo e um lado objetivo. Um fato é objetivo se a sua verdade não depende da mente das pessoas. É um fato objetivo que as montanhas rochosas estão a 3000 metros acima do nível do mar. Por outro lado, um fato é subjetivo se não é objetivo. O exemplo mais óbvio de um fato subjetivo é uma descrição do que acontece na mente de alguém. Se uma pessoa acredita ou não que as montanhas rochosas estão a 3000 metros acima do nível do mar é uma questão subjetiva, mas se a montanha tem realmente essa propriedade é uma questão objetiva. O conhecimento requer tanto um elemento subjetivo como um elemento objetivo. Para que S conheça p, p tem de ser verdadeira e o sujeito, S, tem de acreditar que p é verdadeira.

*Elliott Sober

A liberdade é o que guia a ação?

Se alguém tentar expressar em palavras a diferença entre a experiência de percepcionar e a experiência de agir é que, na percepção, se tem esta sensação: "Isto está a contecer-me", e, na ação, a sensação é a seguinte: "Faço isto acontecer". Mas a sensação de que "Faço isto acontecer" traz consigo a sensação de que "poderia fazer alguma coisa mais". Eis a fonte da inabalável convicção da nossa vontade livre. Saliento que estou a discutir a ação humana normal. Se alguém está a braços com uma grande paixão, ou se encontra numa cólera imensa, por exemplo, perde esse sentido da liberdade e pode mesmo surpreender-se ao descobrir o que está a fazer.

Desde que atentemos nesta característica da experiência do agir, muitos dos fenômenos intrigantes que mencionei se explicam. Por que é que, por exemplo, o homem no caso da sugestão pós-hipnótica não está a agir livremente no sentido em que nós somos livres, mesmo que ele possa pensar que está a agir livremente? A razão é que, num sentido importante, ele não sabe o que está a fazer. A sua efetiva intenção na ação é completamente inconsciente. As opções que ele vê disponíveis para si são irrelevantes para a motivação efetiva da sua ação. Note-se também que os exemplos compatibilistas do comportamento "forçado" implicam ainda, em muitos casos a experiência da liberdade. Se alguém me diz para fazer algo apontando-me uma arma, mesmo em tal caso eu tenho uma experiência que tem o sentido dos cursos alternativos nela incrustados. Assim, a experiência da liberdade é uma parte essencial da experiência do agir.

Isto explica também, creio eu, porque é que não podemos abandonar a nossa convicção de liberdade. Achamos fácil abandonar a convicção de que a Terra é plana logo que compreendemos a prova para a teoria heliocêntrica do sistema solar. Mas não podemos de modo semelhante abandonar a convicção de liberdade, porque esta convicção está inserida em toda a ação intencional normal e consciente. E usamos esta convicção para identificarmos e explicarmos as ações. Efetivamente não podemos agir de outra maneira senão com base na suposição da liberdade.

*John Searle in Mente, Cérebro e Ciência

terça-feira, 16 de junho de 2009

A justiça enquanto reconhecimento comum do indivíduo

A justiça é a virtude primeira das instituições sociais, tal como a verdade o é para os sistemas de pensamento. Uma teoria, por mais elegante ou parcimoniosa que seja, deve ser rejeitada ou alterada se não for verdadeira; da mesma forma, as leis e instituições, apesar de poderem ser eficazes e bem concebidas, devem ser reformadas ou abolidas se forem injustas. Cada pessoa beneficia de uma inviolabilidade que decorre da justiça, a qual nem sequer em benefício do bem-estar da sociedade como um todo poderá ser eliminada. Por esta razão, a justiça impede que alguns percam a liberdade para outros passarem a partilhar um bem maior. Não permite que os sacrifícios impostos a uns poucos sejam compensados pelo aumento das vantagens usufruídas por um maior número. Assim, numa sociedade justa, a igualdade de liberdade e direitos entre os cidadãos é considerada definitiva.

(...)

Na teoria da justiça como equidade, a posição da igualdade original corresponde ao estado de natureza na teoria tradicional do contrato social.Esta posição original não é, evidentemente, concebida como uma situação histórica concreta, muito menos como um estado cultural primitivo. Deve ser vista como uma situação puramente hipotética, caracterizada de forma a conduzir a uma certa concepção da justiça. Entre as características essenciais está o facto de que ninguém conhece a sua posição na sociedade, a sua situação de classe ou estatuto social, bem como a parte que lhe cabe na distribuição de atributos e talentos naturais, como a sua inteligência, a sua força e outras qualidades semelhantes. Parto inclusivamente do princípio de que as partes desconhecem as suas concepções do bem e as suas tendências psicológicas particulares. Os princípios da justiça são escolhidos a coberto de um véu de ignorância. Assim se garante que ninguém é beneficiado ou prejudicado na escolha daqueles princípios pelos resultados do acaso natural ou pela contingência das circunstâncias sociais. Uma vez que todos os participantes estão numa situação semelhante e que ninguém está em posição de designar princípios que beneficiem a sua situação particular, os princípios da justiça são o resultado de um acordo ou negociação equitativa, (...) isto justifica a designação "justiça como equidade": transmite a ideia de que o acordo sobre os princípios da justiça é alcançado numa situação inicial que é equitativa. Não decorre daqui que os conceitos de justiça e equidade sejam idênticos, tal como também não decorre da frase "a poesia como metáfora" que os conceitos de poesia e de metáfora o sejam.


*John Rawls in Uma Teoria da justiça

domingo, 14 de junho de 2009

Cuerpo de mujer

Cuerpo de mujer, blancas colinas, muslos blancos,
te pareces al mundo en tu actitud de entrega.
Mi cuerpo de labriego salvaje te socava
y hace saltar el hijo del fondo de la tierra.

Fui solo como un túnel. De mí huían los pájaros
y en mí la noche entraba su invasión poderosa.
Para sobrevivirme te forjé como un arma,
como una flecha en mi arco, como una piedra en mi honda.

Pero cae la hora de la venganza, y te amo.
Cuerpo de piel, de musgo, de leche ávida y firme.
¡Ah los vasos del pecho! ¡Ah los ojos de ausencia!
¡Ah las rosas del pubis! ¡Ah tu voz lenta y triste!

Cuerpo de mujer mía, persistiré en tu gracia.
Mi sed, mi ansia si límite, mi camino indeciso!
Oscuros cauces donde la sed eterna sigue,
y la fatiga sigue, y el dolor infinito.

*Pablo Neruda

sábado, 13 de junho de 2009

Piedras antárticas

Allí termina todo
y no termina:
allí comienza todo:
se despiden los ríos en el hielo,
el aire se ha casado con la nieve,
no hay calles ni caballos
y el único edificio
lo construyó la piedra.
Nadie habita el castillo
ni las almas perdidas
que frío y viento frío
amedrentaron:
es sola allí la soledad del mundo,
y por eso la piedra
se hizo música,
elevó sus delgadas estaturas,
se levantó para gritar o cantar,
pero se quedó muda.
Sólo el viento,
el látigo
del Polo Sur que silba,
sólo el vacío blanco
y un sonido de pájaro de lluvia
sobre el castillo de la soledad.
*Pablo Neruda

Olhos (A Pepe)

Olhares, contemplam tudo por fora
Refletem tudo por dentro
Interiorizam pensamentos para a alma
A alma dá-lhes embelezamento

De fora vem beleza e angústia
De dentro vem a significação
Lágrimas vêm do fundo da alma
Beleza embeleza o coração

Olhos tristes revelam alma consternada
Exaustos da força de sofrimento e mágoa
Olhos jubilosos espelham alma suave
Compartilham paz de alma profunda e leve

Olhos misteriosos de pessoas misteriosas
Olhares e mistérios que se devem venerar
Do pouco que suas almas mostram
Mostram que muito mais têm para dar

Olhos profundos procuram profundidade
Vêem o exterior internamente
Enfraquecem com tão forte invasão no espírito
Engrandecem a alma com poderoso adorno vitalício

Olhos belos são os que procuram profundidade
Olhos profundos de profunda sagacidade
Que sua alma lhes implora por beleza intensa
Olhos belos são reflexo de alma sempre imensa

*Simão Cabral
**Vê se recupera logo, ja ta fazendo falta ;)

sexta-feira, 12 de junho de 2009

Dia dos Namorados

Não tenho nenhuma impressão de maior cunho filosófico ou passional sobre esse dia, e assim livre de pré-moldagens me ponho a uma pergunta que às vezes me faço a respeito de algumas quimeras populares parecidas com essa:

Por quê o maldito comércio insiste em inventar esse tipo de data pra tentar fazer as pessoas se sentirem uma droga???


*Leandro M. de Oliveira
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Canção do dia de sempre

Tão bom viver dia a dia...
A vida assim, jamais cansa...

Viver tão só de momentos
Como estas nuvens no céu...

E só ganhar, toda a vida,
Inexperiência... esperança...

E a rosa louca dos ventos
Presa à copa do chapéu.

Nunca dês um nome a um rio:
Sempre é outro rio a passar.

Nada jamais continua,
Tudo vai recomeçar!

E sem nenhuma lembrança
Das outras vezes perdidas,
Atiro a rosa do sonho
Nas tuas mãos distraídas...
*Mario Quintana

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Dúvida em Descartes, indução à busca de uma realidade desmistificada?

O “método da dúvida” de Descartes implica pôr de lado qualquer crença ou conhecimento que admitam a mais pequena dúvida possível, por mais improvável ou absurda que essa dúvida possa ser, no intuito de ver se alguma coisa resta. Se alguma coisa resta é precisamente porque é invulnerável à dúvida: é certo. Uma vez que o objetivo de Descartes (…) é o de descobrir o que pode ser conhecido com certeza, o método da dúvida é crucial, pois constitui o caminho para o seu objetivo. A tentativa de considerar cada uma das suas crenças ou afirmações de conhecimento e submetê-las a escrutínio seria uma tarefa impossivelmente longa, de modo que Descartes teve necessidade de uma estratégia geral para pôr de lado todo o corpo de crenças dubitáveis. Procurou alcançá-la utilizando argumentos céticos.
É preciso notar que o uso de argumentos céticos por parte de Descartes não faz dele um céptico. Longe disso. Ele usa-os meramente como um instrumento heurístico para mostrar que nós possuímos efetivamente conhecimento. Ele é, portanto, um 'céptico metódico' e não um 'céptico problemático', entendo-se por esta última expressão alguém que pensa que os problemas colocados pelos céticos são sérios e colocam uma genuína ameaça à nossa ambição de adquirir conhecimento. Acontece que muitos filósofos desde o tempo de Descartes pensaram que ele não produziu uma resposta adequada às dúvidas cépticas que ele próprio levantou e que, por conseguinte, o cepticismo é deveras um problema. O próprio Descartes pensava enfaticamente o contrário.
As considerações cépticas que Descartes usou (…) merecem aqui referência. A primeira delas é a de recordar que os sentidos por vezes nos conduzem no caminho do erro. Equívocos perceptivos, ilusões e alucinações podem levar, e ocasionalmente levam, a crenças falsas. Isto pode fazer com que não depositemos confiança no que pensamos conhecer através da experiência dos sentidos, ou, no mínimo, a sermos cautelosos a depositar confiança nela como fonte de verdade. Não obstante, diz Descartes, haverá muita coisa em que eu acredito com base na minha experiência - tal como, por exemplo, que tenho mãos e que estou a segurar um pedaço de papel com elas, que estou sentado numa poltrona defronte de uma lareira, etc. e que duvidar disto seria uma loucura, mesmo dada a falta de fiabilidade dos sentidos.
Mas será mesmo loucura duvidar destas coisas? Não, diz Descartes - e aqui ele traz o seu segundo argumento - porque eu muitas vezes sonho quando durmo e se eu estou agora a sonhar que estou sentado em frente à lareira segurando um pedaço de papel, o pensamento de que assim estou é falso. Para estar certo de que assim estou sentado, teria de poder excluir a possibilidade de que estou meramente a sonhar que assim estou sentado. Como pode isso ser feito? Parece difícil, senão impossível, fazê-lo.
Mas se estivermos a dormir e a sonhar, continua ele, poderíamos saber que, por exemplo, um mais um é igual a dois. Na verdade, há muitas destas crenças que mesmo num sonho podemos conhecer como verdadeiras. Portanto, Descartes introduz uma consideração ainda mais extrema: suponha-se que em vez de existir um deus bom que quer que conheçamos a verdade, existe um demônio maligno cujo propósito central fosse o de nos enganar a respeito de todas as coisas, mesmo acerca de 'um mais um é igual a dois' e todas as outras verdades destas aparentemente indubitáveis. Se existisse um tal ser, teríamos uma razão geral para duvidar de todas as coisas de que se pode duvidar. E agora podemos perguntar: supondo que tal ser existe, haverá, não obstante, alguma crença de que eu não possa duvidar, mesmo que o demônio enganador faça com que cada crença que eu tenha seja falsa (se puder ser falsa)? E, como sabemos, a resposta é sim, há uma crença indubitável: é a de que eu existo.

Alguns críticos deste procedimento dizem que os argumentos céticos utilizados por Descartes não funcionam. Criticam os argumentos do sonho e do demônio maligno em vários aspectos “for respective examples”, que há na realidade critérios que permitem distinguir o sonho do estado de vigília e que a hipótese do demônio enganador é muito menos plausível do que a maior parte das crenças (tais como aquela de um mais um ser igual a dois) que supostamente coloca em questão. Mas estas tentativas de mostrar que o método da dúvida de Descartes não consegue descolar do chão são desajustadas. Os argumentos de Descartes podem ser menos plausíveis que aquilo que impugnam, mas isso não é importante. Eles são simplesmente uma ferramenta heurística, algo que nos ajuda a ver o que está em causa quando dizemos que 'Eu existo' não pode deixar de ser verdade. Se, em qualquer caso, o objetivo (…) é o de demonstrar o que pode ser conhecido com certeza, praticamente qualquer instrumento heurístico que torne possível descobrir certezas funcionará igualmente bem.

*A. C. Grayling. Descartes

terça-feira, 9 de junho de 2009

Sísifo, quem é?


Os mitos servem para expressar uma faceta da realidade, a alegoria tem um requinte pedagógico único, disso sabiam bem os gregos. Mas recentemente durante sua apresentação em um seminário, Paulo Herkenhoff recorreu à mitologia para demonstrar o quanto exaustiva e incessante é a missão do artista. Disse ele: “O artista é um Sísifo social e histórico que busca permanentemente novos sentidos para os percursos de sua pedra (...)”.
Mas afinal, quem é Sísifo?


Sísifo, filho de Éolo, da raça de Deucalião, era sucessor de Medéia , do reino de Corinto. Conta a mitologia que Zeus, deus do Olimpo, casado com Hera, raptou Egina, filha do deus-rio Asopo. Essa ação foi presenciada por Sísifo, que em troca de uma fonte concedida pelo pai de Egina, revelou-lhe o nome do raptor.

  O castigo não tardou a chegar pela delação. Quando Hades, irmão de Zeus, reclamou ao deus do Olimpo que havia pouca gente morrendo, Zeus, atendendo ao seu pedido e cumprindo uma vingança pessoal contra Sísifo, enviou-lhe Tanatos a Morte).
Sísifo, muito esperto, convenceu sua mulher que deixasse de fazer as honras fúnebres para que fosse inviabilizada a sua permanência nas trevas. Chegando ao reino de Hades, as trevas, foi-lhe cobrado as cerimônias adequadas de morte e Sísifo mentiu, culpando a mulher por tamanho esquecimento. Pediu ao poderoso Hades a possibilidade de voltar para a terra e castigar sua mulher por esse descaso. Impossibilitado de permanecer nas trevas sem ter recebido as devidas honras mortuárias, Hades consentiu e Sísifo voltou para a terra.

Como Sísifo havia mentido para Hades não se preocupou em aplicar o castigo na mulher, traindo , mais uma vez, a confiança de um deus , Hades. Já velho, Tanatos veio buscá-lo para o reino das trevas e desta vez ele não escapou. Por ter traído por duas vezes os deuses, Sísifo recebeu um castigo complementar e foi condenado a empurrar, indefinidamente, uma pesada pedra até o cume da montanha mais alta. Seu castigo era esse: de dia, empurrava a pedra até o cume da montanha, à noite dormia exausto e deixava a pedra rolar. No dia seguinte, voltava novamente à base da montanha e recomeçava o trabalho. E assim ocorria sucessivamente.

*Antonio Carlos Tonca Falseti

Uma vida com sentido?

“ A ideia de uma distinção entre uma vida com sentido e uma vida sem sentido não é equivalente à diferença mais óbvia e incontroversa entre uma vida que é subjetivamente satisfatória ou enriquecedora e outra que não o é. Quando perguntamos se as nossas vidas têm sentido não estamos a fazer algo totalmente introspectivo, e quando procuramos uma forma de dar sentido às nossas vidas, não estamos à procura do comprimido da felicidade. A vida de Sísifo, perpetuamente condenado a carregar um pedregulho por um monte acima que depois caía outra vez, tem sido caracterizada (…) como um paradigma da ausência de sentido. Se imaginarmos que Sísifo encontrava uma perversa satisfação nesta atividade repetitiva e inútil, não é claro se pensamos que nesse caso a sua vida tem mais sentido, ou se pelo contrário é mais miserável.”

*Susan Wolf

De quem é o pecado: dele; dela ou de ambos?

Quando me interrogou, refleti. Um dia, Ana Carolina (Karolzinha) fez-me uma pergunta. Uma pergunta que foi para mim um pouco inquietante pelo contexto da mesma e foi, por assim dizer, reflexiva. Mas como reflexiva algo que foi inquietante? Acredite! Foi uma pergunta reflexiva, pois me inquietou. Se ela não tivesse me deixado perturbado, talvez, passasse despercebida e seria mais uma palavra no meio de tantas outras. Isto porque existem inúmeras perguntas, palavras e fatos que passam a cada dia por nós, mas que não são percebidos, e nem mesmo são levado em conta. Mas não quer dizer que as perguntas não são feitas, que as palavras deixam de falar por si e pelo seu contexto e também que os fatos cairão no nosso esquecimento. Nada disso. Os três: perguntas, palavras e fatos estão interligados de uma forma tal que podem até serem confundidos.

01.

A pergunta não vem sem uma palavra. Como, de igual modo, a palavra não vem até nós fora de um contexto, tornando, então, um fato. 

Quando a pergunta vem até nossa compreensão, ela vem com uma resposta prévia. Pois uma indagação é levada a ação quando já, no nosso entendimento, temos uma resposta. Mesmo que uma resposta sem tanto fundamento teórico ela — a resposta — já tem sua palavra que a justifica.

02.

A palavra pode até ser dada com a mesma pergunta. De que forma? Quando se pergunta sabendo da resposta ou quando a pergunta é feita para dar (...) certeza da resposta antecedente que se tem.

Contudo, a resposta dada a uma pergunta pode ser formulada sobre urna outra pergunta. E desta maneira, nem aquele que pergunta e nem mesmo o que da a resposta tem "culpa" seja parcial ou total da própria resposta. Visto que, cada uma se isenta — com palavras — de uma fatalidade prevista por uma resposta forjada.

03.

De igual peso se tem a palavra. Ela que comunica e faz comunicar. Uma palavra que comunica é aquela que vem em forma de indagação, conversa e tantos outros meios. A palavra que faz comunicar tem sua peculiaridade, ao passo que ela trabalha sobre os signos — sinais visuais. As placas de sinais de trânsito são os melhores exemplos. Eles nos remetem a uma comunicação que diz algo para nós, como por exemplo, "pare (stop)".

Porque quando temos aos olhos algo parecido isto nos levará a uma linguagem que vem antes disso: no "pare", vemos um perigo. Isto porque o perigo toma-se um fato.

04.

O fato tão pouco é importante quanto à pergunta, ou a palavra. Ambos possuem igualmente seu peso na (...) pergunta, que vem, por sua vez, com construções de palavras.

05.

Agora depois de versar sobre a minha inquietude e reflexão frente a uma pergunta, ponho-me a indagar: qual foi, portanto, a pergunta a qual me inquieta. A pergunta foi: "caso uma jovem beija (na boca) um presbítero, de quem é o pecado? Do padre, da garota ou dos dois?" Aqui se faz necessário uma análise por panes, para que possamos olhar as duas realidades imbuídas no contexto, de forma universal: um amor terreno e o outro espiritual. Para este amor, que se diz terreno, (...) estamos analisando, primeiro, uma conjuntura: "uma garota que beija", ou seja, que é livre para amar.

06.

Todo homem é livre para amar. Esta capacidade não é mérito puramente do humano, pois a possibilidade de amar é dada a cada ser humano pelo próprio Amor. Este eleva seus filhos e dão a eles a dignidade do amor na relação do amor que respeita e deixa o outro livre para amar. Sim. Para amar. Porque o Amor derrama no coração de cada pessoa o Seu amor. Aqui vemos um Amor que jorra o amor. Então fomos impressos com o selo do amor e isto nos faculta amar a nós mesmos e, sobretudo, amar o outro. Pois, somos capacitados a amar e sermos amados, visto que o amor nunca se esvai.

É justamente porque o amor nunca se finda que se pode afirmar que o amor vem para o homem da mesma forma que vem para a mulher. Entretanto, aqui é que se depara com a realidade concreta de realizar este amor: todo ser humano é convocado a amar naquilo que lhe é específico: amar o outro e a si. Porque cada qual deve amar na sua capacidade.

07.

A capacidade de amar do ser humano já está inscrita na sua consciência. Assim, o amor de uma jovem é diferente, mesmo que todos amam, do amor de um padre. Isto porque a pessoa é livre para amar uma pessoa em particular e assim, se for por designo do Oculto, constituir uma família. No entanto, a capacidade de amar de um sacerdote vai além de um amor que seja contrascivo (...) ou seja, um amor que se doa a uma pessoa específica, visto que um consagrado ao Oculto é convidado a amar de forma expansiva, que atinge a todos e que todos se sintam por ele amado. Dessa forma, o homem não está negando sua sexualidade.

08.

O homem pode e ama por meio da sexualidade. Nessa é que está contida a genitalidade. Essa, vivida sem a certeza de que o homem é um ser para o outro, então, vai existir uma banalização da sexualidade, a qual foi deixada por Deus para que os cônjuges se complementem com o gozo. Gozo este que é a alegria de estar utilizando a capacidade de amar (de forma profunda) que os esposos experimentam a cada ato conjugal.

Não cabe um consagrado se valer dos benefícios que a vida à dois concede. Entretanto, não dispensa ao casal viver uma castidade matrimonial, ao passo que a vida nupcial pode, também, ser oferecida através de alguns sacrifícios ao Amor, o Oculto. 

Um dos caminhos que se pode traçar é pela castidade. Castidade esta que reflete na vida de cada presbítero no segmento do Cristo Casto.

A castidade é para ser praticada com intensidade e muito amor. Amor que vem do próprio Amor e é oferecido, por cada célebre a Ele mesmo.

Por isto, a maior terapia que se possa fazer para viver a castidade é o amor de Deus. O que é, então, a castidade? A castidade, tal qual ouvi de um presbítero, "é amar sem querer possuir nada ou ninguém; é ter o desejo de amar com o amor sempre mais puro; é uma autonomia do voo. É voar sem um peso na asa".

A castidade sendo este "amar sem querer possuir nada ou ninguém", remete-me ao que tinha me perguntado: "... é pecado para o padre?" A resposta para esta sua indagação toma-se bastante clara com a citação feita acima, porque o padre tem que apresentar um coração indiviso e principalmente assemelhar-se ao coração do Cristo. Um coração casto. Por isto e tantas outras coisas, que é pecado para qualquer padre que beija — usando sentimentos — qualquer pessoa que seja. Ele é chamado a viver uma íntima relação com o Amor. O padre é um homem do Amor e não para o amor.

09.

O presbítero é um homem que consagra a sua vida ao Amor. Ele pode dar-se aos outros, no serviço, através do amor. Isto ele deve realizar de forma consciente e gratuita. Uma gratuidade que se manifesta pelo zelo e pelo pastoreio das ovelhas que a ele são confiadas.

Pastorear é ser pastor. E ser pastor requer uma cautela e um amor por suas ovelhas a ponto de dar a própria vida em resgate de uma que por ventura venha a se desgarrar do rebanho. O pastor dá a vida em prol das ovelhas, jamais ele tem a coragem de usar destas pobres ovelhas para fazê-las o mal.

Desta forma, o pastor é obsequiado a sarar todas as doenças de suas ovelhas e, se alguma se perder, o primeiro responsável é, sem dúvida, o pastor. Porque é ele quem deve conduzir cada ovelha ao Amor.

Esta é uma das funções do pastor: encaminhar seu rebanho ao encontro do seu Senhor. O pastor não pode ferir as ovelhas, ao contrário, como já disse, tem que cura-las de suas feridas com o amor espiritual e não utilizar a doença da ovelha para alimentar em si o amor terreno.

10.

Agora posso responder a dúvida. Sempre será pecado para o padre, pois ele tem a consciência de que cada pessoa ama na sua capacidade de amar. E pode não ser pecado para a garota, uma vez que o padre não conte a ela ou mesmo que ela não saiba do estado de vida do padre. E pecado tanto para um como para o outro se a garota sabe do estado de vida do servo de Deus e mesmo assim deixa estampar seus sentimentos por ele.

11.

No desfecho dessa reflexão, é plausível fixar que, com os fatos e as experiências da mesma existência não se fala para as várias vivências. Cada existente tem na sua vida um ponto, o qual o fez pensar diferente ou mesmo reflete sobre seu existir, seu relacionar com as pessoas. Porque cada ser humano que está no mundo não fica sem se relacionar com outro ser. 

Nisto encontra não só as experiências de cada homem, mas também o próprio sentido do seu existir e o existir do outro tirando este de uma miséria afetiva e dando-lhe a dignidade de uma pessoa.

O outro, com a compostura de uma pessoa, passa a ser inteiramente outro que se dá na relação interpessoal pela manifestação do corpo e da sua sexualidade. Esta manifestação é que vai elevar a dignidade do ser humano como sendo um ser corporal.

*Joacir Soares d'Abadia