segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

A produção de um ponto moral é uma afirmação política?

Se eu fundamentar minha moral em minha religião, vocês contestarão minha religião em nome de outra religião ou da irreligião (se forem agnósticos ou ateus), e minha moral não passará de uma moral como as outras, de uma moral entre outras, uma moral particular. Só poderei dizer: esta é minha moral, vocês têm a sua, e eu a minha.

Se eu fundamentar minha moral em minha filosofia, vocês contestarão minha filosofia em nome de outra filosofia ou da não filosofia, e minha moral não passará de uma moral entre outras, sem nenhum direito de se impor.

Se vocês contestarem a necessidade de fundamentar a moral, porque todos já dispõem de uma, acreditarei decerto que minha moral é a melhor, mas vocês acharão o mesmo da moral de vocês. Todas as morais terão igual direito de julgar o que é bom e o que não é. Então os assassinos de Buchenwald, Dachau, Auschwitz etc. estarão com a faca e o queijo na mão. Terem sido vencidos por uma força superior, mas da qual não será possível dizer que estava, mais do que qualquer outra, a serviço da verdade moral, terem sido vencidos, repito, será seu único erro.
Caso contrário, deve-se, em primeiro lugar, fundamentar a moral; em seguida, deve-se fundamentá-Ia não no particular — e uma religião ou uma filosofia sempre são particulares, porque existem outras –, mas no universal. O universal é o que deixa de lado todas as particularidades.

Deixar de lado o que nos separa ou nos distingue é o que é feito no diálogo, quando se escuta. Eu falo, você escuta; você fala, eu escuto. Operamos ambos a redução dialógica, colocando de lado nossas crenças, nossas opiniões, nossas tradições, nossas particularidades de todos os tipos para estarmos exclusivamente atentos ao verdadeiro e ao falso. Realizamos o universal vivo por nossa operação recíproca. O que acontece então? Cada qual pressupõe que o outro pode apreender a verdade que é a sua verdade, mesmo que para cada um deles esta seja apenas a do outro. Ou: cada qual, simplesmente para poder dirigir-se ao outro, falar-lhe, pressupõe o outro como capaz de verdade. Por esse motivo, cada qual pressupõe o outro como seu igual. A partir do momento em que os desiguais dos regimes baseados em privilégios se dirigissem um ao outro de uma maneira que não fosse para julgar, louvar ou criticar, ou comandar sem réplica, colocariam em perigo, pelo simples fato de serem dois seres humanos falando um com o outro apenas para dizer o verdadeiro e o falso, o próprio sistema que os estabelecia como desiguais. É por esse motivo que privilegiados e não privilegiados não dialogavam e muitas vezes não se falavam. Ora, dessa igualdade de todos os homens, implicada no simples fato de se poder travar uma conversa de fato, extrai-se toda a moral — aquela que, diferentemente das morais coletivas particulares, é a mesma para todos e contém todos os direitos e deveres universais do homem.

A moral baseia-se não nesta ou naquela crença, religião ou sistema, mas neste absoluto que é a relação do homem com o homem no diálogo. … A moral, não a ética. A "ética" de Espinosa supõe o sistema desse filósofo. É portanto uma ética particular, pois somos espinosistas ou não. O mesmo ocorre com a ética nietzschiana do super-homem, ou com a ética epicurista, ou com a estóica, ou com qualquer outra. A ética é a doutrina da sabedoria — mas, a cada vez, de uma sabedoria; e a sabedoria é a arte de viver a melhor vida possível. Como viver? Nosso juízo a esse respeito será este ou aquele conforme, por exemplo, concebamos a morte como um ponto final ou uma passagem. Acontece a mesma coisa com as filosofias e as religiões: elas são necessariamente múltiplas, e ninguém pode demonstrar a inexatidão das concepções que não partilha.

(...)

Criticou-se a filosofia de Heidegger por não conseguir fornecer nenhuma diretriz moral. Se nós mesmos, porém, não estivermos em condições de fundamentar uma moral universal, se permanecermos em uma moral de opinião — a nossa –, a ser confrontada com outras morais de opinião igualmente não fundamentadas, estaremos no mesmo ponto que ele: no niilismo moral; e um consenso qualquer sobre os "direitos do homem" nada muda com relação a isso. Quanto à ética, se a filosofia de Heidegger não propôs uma nova visão da vida, como explicar que tenha "repercutido profundamente no coração da juventude alemã”?! …
*Marcel Conche

domingo, 17 de janeiro de 2010

A subjetividade no juízo de valor

As questões sobre os valores - isto é, sobre o que é bom ou mau em si, independentemente dos seus efeitos estão fora do domínio da ciência, como os defensores da religião afirmam veementemente. Eu penso que nisto têm razão, mas retiro outra conclusão que eles não retiram - a de que as questões sobre "valores" estão completamente fora do domínio do conhecimento. Por outras palavras, quando afirmamos que isto ou aquilo tem "valor", estamos a exprimir as nossas emoções, e não a indicar algo que seria verdadeiro mesmo que os nossos sentimentos pessoais fossem diferentes. (...)

Qualquer tentativa de persuadir as pessoas de que algo é bom (ou mau) em si, e não apenas por causa dos seus efeitos, depende não de qualquer recurso a provas, mas da arte de suscitar sentimentos. O talento do pregador consiste em criar nos outros emoções semelhantes às suas - ou diferentes, se ele for hipócrita. Ao dizer isto não estou criticando o pregador, mas analisando o caráter essencial da sua atividade.

Quando um homem diz "Isto é bom em si" parece estar a exprimir uma proposição como se tivesse dito "Isto é um quadrado" ou "Isto é doce". Julgo que isto é um erro. Penso que aquilo que o homem quer realmente dizer é "Quero que toda a gente deseje isto", ou melhor, "Quem me dera que toda a gente desejasse isto". Se aquilo que ele diz for interpretado como uma proposição, esta é apenas sobre o seu desejo pessoal. Se for antes interpretado num sentido geral, nada afirma, exprimindo apenas um desejo. O desejo, enquanto acontecimento é pessoal mas, o que se deseja é universal. Penso que foi este curioso entrelaçamento entre o particular e o universal que provocou tanta confusão na Ética. (...)

Se esta análise está correta, a ética não contém quaisquer proposições, sejam elas verdadeiras ou falsas, consistindo em desejos gerais de uma certa espécie, nomeadamente naqueles que dizem respeito aos desejos da humanidade em geral - e dos deuses, dos anjos e dos demônios, se eles existirem. A ciência pode discutir as causas dos desejos e os meios para os realizar mas, não contém quaisquer frases genuinamente éticas, pois esta diz respeito ao que é verdadeiro ou falso.

A teoria que estou defendendo é uma forma daquelas que é conhecida pela doutrina da "subjetividade" dos valores. Esta doutrina consiste em sustentar que, se dois homens discordam quanto a valores, há uma diferença de gosto, mas não um desacordo quanto a qualquer gênero de verdade. Quando um homem diz "As ostras são boas" e outro diz "Eu acho que são más", reconhecemos que nada há para discutir. A teoria em questão sustenta que todas as divergências de valores são deste gênero, embora pensemos naturalmente que não o são quando estamos a lidar com questões que nos parecem mais importantes que as das ostras. A razão principal para adotar esta perspectiva é a completa impossibilidade de encontrar quaisquer argumentos que provem que isto ou aquilo tem valor intrínseco. Se estivéssemos de acordo a este respeito, poderíamos defender que conhecemos os valores por intuição. Não podemos provar a um daltônico que a relva é verde e não vermelha, mas há várias maneiras de lhe provar que ele não tem um poder de discriminação que a maior parte dos homens tem. No entanto, no caso dos valores não há qualquer maneira de fazer isso, e aí os desacordos são muito mais frequentes que no caso das cores. Como não se pode sequer imaginar uma maneira de resolver uma divergência a respeito de valores, temos de chegar à conclusão de que a divergência é apenas de gostos e não se dá ao nível de qualquer verdade objetiva.
*Bertrand Russell

Filosofar é estar sozinho

“Mas, tratando-se da natureza em seu conjunto, o irracional maravilhoso sempre estará presente, pois o infinito excede a razão. No seio da enormidade do tempo e do espaço, num ponto da natureza infinita, ou talvez infinitamente infinita, como quer Espinosa, o homem tem o sentimento do Englobante e do sem limites como de um mistério insondável, diante do qual a razão se detém.

Decerto a filosofia é obra da razão, do “bom senso”, como diz Descartes. Mas ao contrário da razão científica que passa ao lado do maravilhoso e do mistério sem o ver, a razão filosófica reconhece, identifica o irracional, o maravilhoso, o mistério. Seu fracasso, sua impotência em apreender os arcanos das coisas lhe revelam mistérios impossíveis de desvendar: o mistério da natureza insondável e infinita, o mistério da morte e do sentido, ou do não-sentido, do homem. Não há, aqui, “problemas” que o filósofo poderia resolver. A filosofia não resolve nenhum problema. Não existe, a bem da verdade, problema filosófico. O papel da filosofia é, para além do racional nos fazer tomar consciência do demônico que age na natureza, do mistério que envolve todas as coisas, e revelar o homem a si mesmo como enigma: enigma do qual resulta a liberdade radical da escolha filosófica. Pois a filosofia repousa não numa “revelação” qualquer, ou em alguma necessidade demonstrativa, mas na liberdade.


Abstração feita da experiência religiosa que, dizem, revela-lhe o sagrado e o coloca em relação com o Tu absoluto, o homem está sozinho. Não há ninguém para escutar suas questões e sua queixa. A “luz natural” serve principalmente para acentuar, de todos os lados, as sombras. Resta-lhe, tendo abandonado o sagrado no caminho, assumir sua solidão. Filosofar é isso.”

*Marcel Conche

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Teses Brasileiras - A RELIGIÃO É UMA CAUSA DE ATRASO ?

1. Aproveitando o mote que nos é dado com a discussão em torno de crença, ou descrença, em Deus, é inevitável associar a ideia de religião e atraso. Simplificadamente,lembramos o contraponto que Max Weber faz ao nosso catolicismo que vem do Vaticano nos moldes mais ortodoxos. A ele Weber contrapõe a religiosidade dos Estados Unidos, fundada no calvinismo, o que teria permitido àquela sociedade se desenvolver materialmente, enquanto cá pra baixo, do Mexico à Patagônia, amargamos a hipocrisia que fala em bobagens como camelo, fundo de agulha e rico entrar no reino de Deus. Claro, essa não pode ser a única razão de nosso atraso, mas é um dos caminhos a percorrer para entendê-lo.

2. Nossa história está coberta de exemplos de fanatismo religioso que explicam o nosso atraso e são decorrentes dele. Antes de Canudos, na última década do século 19, quando tivemos um modelo "avançado" de fanatismo - uma mistura de misticismo e revolta social - tivemos outros modelos, atrasados, no Rodeador, em Bonito, e Pedra Bonita, que hoje está em São José do Belmonte e, quando se deu a tragédia provocada pelo fanatismo, estava em Serra Talhada. São histórias que mostram grandes massas sendo manipuladas por vigaristas, em nome de Deus, de salvação eterna e, sobretudo, vitória material em vida.

3. Tudo isso está na ordem do dia, no século 21. Do ponto de vista emocional, o Brasil não passou do século 19. Pior, estamos regredindo, voltando à idade das trevas, quando toda miséria do mundo provinha do mau humor de um Deus vingativo, rancoroso, raivoso. Quem tiver estômago para aguentar alguns minutos em seis a dez canais de televisão que transmitem programas "religiosos" a toda hora do dia ou da noite, vai ver que continua havendo grandes massas de brasileiros que são manipuladas em nome da fé. Vai ver coisas assustadoras, como a negação de todos os avanços da Medicina em todo mundo, com um "pastor", ou algo que o valha, botando a mão na cabeça das pessoas, diante de câmeras de TV, e tirando paraplégicos das cadeiras de roda, fazendo cego ver, paralítico andar, curando de câncer a unha cravada. Sem nenhum protesto das entidades médicas do País, nem do Ministério Público, de ninguém. Um escândalo, protegido pelas leis brasileiras, leis "cristãs" que asseguram que os vigaristas fiquem cada vez mais ricos, sem pagar um tostão de imposto.

4. Um repórter do jornal Folha de São Paulo fez o levantamento de cada passo dado na fundação de uma dessas "igrejas" e conseguiu, ele próprio, fundar uma gastando menos de R$ 500 reais. Daí por diante, é ganhar dinheiro, muito dinheiro, isento de impostos. Produto absoluto da ignorância que alimenta as crenças e retardam nosso País. Principalmente porque essa gente está formando quadrilha legislativa dentro do Congresso. Em toda eleição elegem mais e mais deputados, que formam uma "bancada" voltada só para os interesses deles. Que futuro podemos esperar de um país que faz da crença uma mercadoria isenta de impostos?
*Jodeval Duarte

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

O Alienista

Uma vez desonerado da administração, o alienista procedeu a uma vasta classificação dos seus enfermos. Dividiu-os primeiramente em duas classes principais: os furiosos e os mansos; daí passou às subclasses, monomanias, delírios, alucinações diversas. Isto feito, começou um estudo acurado e contínuo; analisava os hábitos de cada louco, as horas de acesso, as aversões, as simpatias, as palavras, os gestos, as tendências; inquiria da vida dos enfermos, profissões, costumes, circunstâncias da revelação mórbida, acidentes da infância e da mocidade, doenças de outra espécie, antecedentes na família, uma devassa, enfim, como a não faria o mais atilado corregedor (...)

Mal dormia e mal comia; e ainda comendo, era como se trabalhasse, porque ora interrogava um texto antigo, ora ruminava uma questão, e ia muitas vezes de um cabo a outro do jantar sem dizer uma só palavra a D. Evarista (...)

- A Casa Verde é um cárcere privado, disse um médico sem clínica.

Nunca uma opinião pegou e grassou tão rapidamente. Cárecere privado: eis o que se repetia de norte a sul e de leste a oeste de Itaguaí, – a medo, é verdade, porque durante a semana que se seguiu à captura do pobre Mateus, vinte e tantas pessoas, duas ou três de consideração – foram recolhidas à Casa Verde. O alienista dizia que só eram admitidos os casos patológicos, mas pouca gente lhe dava crédito. Sucediam-se as versões populares. Vingança, cobiça de dinheiro, castigo de Deus, monomania do próprio médico, plano secreto do Rio de Janeiro com o fim de destruir em Itaguaí qualquer germe de prosperidade que viesse a brotar, arvorecer, florir, com desdouro e míngua daquela cidade, mil outras explicações, que não explicavam nada, tal era o produto diário da imaginação pública (...)

Daí em diante foi uma coleta desenfreada. Um homem não podia dar nascença ou curso à mais simples mentira do mundo, ainda daquelas que aproveitam ao inventor ou divulgador, que não fosse logo metido na Casa Verde. Tudo era loucura. Os cultores de enigmas, os fabricantes de charadas, de anagramas, os maldizentes, os curiosos da vida alheia, os que põem todo o seu cuidado na tafularia, um ou outro almotacé enfunado, ninguém escapava aos emissários do alienista. Ele respeitava as namoradas e não poupava as namoradeiras, dizendo que as primeiras cediam a um impulso natural e as segundas a um vício. Se um homem era avaro ou pródigo, ia do mesmo modo para a Casa Verde; daí a alegação de que não havia regra para a completa sanidade mental.
*Machado de Assis

A arte e o "sepultamento" de Deus

Pois Deus e o Belo mantém uma relação homotética (têm uma colocação semelhante) : a matéria de um é, frequentemente a mesma do outro.

Consistências idênticas, lógicas semelhantes, invisibilidades comparáveis, fazem habitualmente da Arte uma religião de substituição ou uma aliada da religião dado que o seu registro é radicalmente imanente.

Incriados, incorruptíveis, inacessíveis à razão pura, mesmo que esta seja bem conduzida, eternos, imortais, imutáveis, inacessíveis, inalteráveis, Belo e Deus conduzem conjuntamente os seus respectivos interesses.

Duchamp concretiza o crime Nietzscheniano depois da morte de Deus, que significa igualmente a morte do Bem, logo do Mal, mas também do Belo, Nietzsche sublinhou-o em certos fragmentos da "Vontade de Poder" acendemos a um mundo imanente, a um real do aqui e agora. O céu esvaziado torna possível a plenitude da terra. A partir deste ato fundador, Marcel Duchamp avança no sentido de uma desteologia da Arte em prol de uma rematerialização da sua aspiração.

A súbita e imediata vitalidade assim gerada permanece inigualável em toda a história da Arte.

No entanto, esta revolução não desemboca no niilismo, ausência de sentido ou deriva conceitual. Antes pelo contrário, pois doravante a famosa Fonte gera um Novo Paradigma que deixa para trás vinte séculos de estética.

A obra de Arte torna-se mais que nunca coisa mental, cessa de ser Bela e carrega desde então uma carga de sentido a decifrar. Com esta ruptura epistemológica potencia-se o aspecto inacabado de cada objeto.
*Michel Onfray

Mundo Tupinambá

A idéia de uma filial terrena do Éden bíblico, onde ninguém precisaria de ler leis escritas para ser feliz para sempre existia muito antes de 1500 (1502 era a data da carta de Américo Vespúcio ao banqueiro Lourenço de Medici em 1502, relatando a descoberta na baia de Guanabara, de um grupo de índios, os Tupinambás. Esta carta segundo teses citadas pelo autor serviria de inspiração à obra de Thomas More Utopia)O problema era que não se sabia onde ficava esse Éden e quais eram as horas de visita. Mas, com as grandes navegações, vieram os descobrimentos e os primeiros contatos com as populações dos trópicos. Finalmente se tinha um Éden para mostrar, melhor ainda que o do Gênesis - e, pelo que se depreendeu do relato de Vespúcio, ele ficava no Rio. Por quê?

Porque, aqui, em meio da natureza mais exuberante que se pudesse imaginar, vivia um povo doce e inocente, sem noção de governo, moeda, bens materiais ou propriedade privada, desprovido de cobiça, inveja e egoísmo, e alheio a qualquer noção de "bem" e de "mal". Sem culpa também, porque, no perene verão da Guanabara, os homens, mulheres, crianças e velhos circulavam nus dia e noite, sem que isso levantasse sobrolhos entre eles. E, ao contrário do que se poderia pensar, não se tratava de feras com o corpo coberto de pêlos e um terceiro olho na testa, mas de uma gente simpática, de grande beleza física e com uma saúde de fazer inveja a qualquer europeu. O "homem natural", filho direto de Adão, existia de verdade, e que isto servisse de lição para o homem europeu, subitamente esmagado pelo surgimento das grandes potências, pela emergência do capitalismo e pelo individualismo que começava a grassar - eis o recado da Utopia de sir Thomas More.
Tudo isso era confirmado pelos piratas franceses, normandos e bretões que começaram a aportar na Guanabara em 1504, apenas dois anos depois de Vespúcio, e que voltavam para contar a história. Diziam eles que, ao se aproximar do Rio, assim que as suas naus despontavam na barra, eram cercados pelas canoas dos tupinambás e recebidos com tratamento VIP. Os indígenas subiam a bordo, faziam-lhes festinhas, ofereciam-lhes frutas e presentes e ainda lhes entregavam as mulheres. (...)

Surpreendentemente, uma outra especialidade dos Tupinambás, observada pelos visitantes, não conseguiu diminuir sua cotação em sociedade: o canibalismo. Talvez porque o seu hábito de comer carne humana fosse movido apenas por vingança (nada a ver com escassez de alimento na praça) e obedecesse a rígidas regras de etiqueta. Primeiro só comiam os seus prisioneiros de guerra e, mesmo assim, só os fortes e corajosos - de preferência os temiminós, uma tribo com quem mantinham uma guerra quase esportiva havia quinhentos anos. Segundo, nada era feito às pressas: o prisioneiro tinha uma série de direitos e deveres antes de morrer.
*Ruy Castro

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Confusões do fim

"Óbito do Autor"

Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo. Moisés, que também contou a sua morte, não a pôs no intróito, mas no cabo; diferença radical entre este livro e o Pentateuco.
Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta feira do mês de agosto de 1869, na minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e prósperos, era solteiro, possuía cerca de trezentos contos e fui acompanhado ao cemitério por onze amigos. Onze amigos!

(...)

"O delírio"

Pobre minuto! exclamou. Para que queres tu mais alguns instantes de vida! Para devorar e seres devorado depois! Não estás farto do espetáculo e da luta? Conheces de sobejo tudo o que eu te deparei menos torpe ou menos aflitivo: o alvor do dia, a melancolia da tarde, a quietação da noite, os aspectos da terra, o sono, enfim, o maior benefício das minhas mãos. Que mais queres tu, sublime idiota?
Viver somente, não te peço mais nada. Quem me pôs no coração este amor da vida, se não tu? e, se eu amo a vida, por que te hás de golpear a ti mesma, matando me?
Porque já não preciso de ti. Não importa ao tempo o minuto que passa, mas o minuto que vem. O minuto que vem é forte, jocundo, supõe trazer em si a eternidade, e traz a morte, e perece como o outro, mas o tempo subsiste. Egoísmo, dizes tu? Sim, egoísmo, não tenho outra lei. Egoísmo, conservação. A onça mata o novilho porque o raciocínio da onça é que ela deve viver, e se o novilho é tenro tanto melhor: eis o estatuto universal. Sobe e olha.
Isto dizendo, arrebatou me ao alto de uma montanha. Inclinei os olhos a uma das vertentes, e contemplei, durante um tempo largo, ao longe, através de um nevoeiro, uma coisa única. Imagina tu, leitor, uma redução dos séculos, e um desfilar de todos eles, as raças todas, todas as paixões, o tumulto dos impérios, a guerra dos apetites e dos ódios, a destruição recíproca dos seres e das coisas. Tal era o espetáculo, acerbo e curioso espetáculo. A história do homem e da terra tinha assim uma intensidade que lhe não podiam dar nem a imaginação nem a ciência, porque a ciência é mais lenta e a imaginação mais vaga, enquanto que o que eu ali via era a condensação viva de todos os tempos. Para descrevê la seria preciso fixar o relâmpago. Os séculos desfilavam num turbilhão, e, não obstante, porque os olhos do delírio são outros, eu via tudo o que passava diante de mim, flagelos e delícias, desde essa coisa que se chama glória até essa outra que se chama miséria, e via o amor multiplicando a miséria, e via a miséria agravando a debilidade. Aí vinham a cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba, e a enxada e a pena, úmidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancolia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, até destruí lo, como um farrapo. Eram as formas várias de um mal, que ora mordia a víscera, ora mordia o pensamento, e passeava eternamente as suas vestes de arlequim, em derredor da espécie humana. A dor cedia alguma vez, mas cedia à indiferença, que era um sono sem sonhos, ou ao prazer, que era uma dor bastarda. Então o homem, flagelado e rebelde, corria diante da fatalidade das coisas, atrás de uma figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalpável, outro de improvável, outro de invisível, cosidos todos a ponto precário, com a agulha da imaginação; e essa figura, nada menos que a quimera da felicidade, ou lhe fugia perpetuamente, ou deixava se apanhar pela fralda, e o homem a cingia ao peito, e então ela ria, como um escárnio, e sumia se, como uma ilusão.
*Machado de Assis

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Moral como decadência; Institucionalismo como vingança dos fracos

(...) Não há absolutamente atos “desinteressados”. Os atos nos quais o indivíduo se torna infiel aos seus próprios instintos e escolhe em seu detrimento, são sinais de decadência (uma quantidade de “santos” os mais célebres estão decididos em ser decadentes, simplesmente devido a sua falta de “egoísmo”—). Os atos de amor, de “heroísmo” são de tal forma pouco “altruístas”, que são precisamente a prova dum “ego” vigoroso e abundante: os “pobres” não são livres para abandonar algo de si mesmos... estão privados também da grande intrepidez, da alegria da aventura que participa do “heroísmo”. Não é sacrificar-se que é o “fim”, mas desabrochar fins onde as conseqüências não nos inquietam, devido a confiança que temos em nós mesmos, fins que vos são indiferentes...

Psicologia dos atos que chamamos não-egoístas. — Na realidade são regulados estritamente conforme o instinto de conservação. É o caso contrário para atos que chamamos egoístas: ali o instinto diretor falta precisamente, — a consciência profunda do que é útil e prejudicial. Toda força, toda saúde, toda vitalidade, pelo fato de que aumentam a tensão, visam o instinto soberano do eu. Todo afrouxamento é decadência.

Segundo sua origem, a moral é a soma das condições de existência de uma espécie de homens pobre e malnascida. Esta pode ser o “grande número”: daí seu perigo. Nas suas aplicações é o principal meio do parasitismo dos sacerdotes, em sua luta contra os fortes, contra as afirmações da vida. — Os sacerdotes ganham o “grande número” (os humildes, os que sofrem, em todas as classes — as vítimas de toda espécie —. Uma espécie de insurreição geral contra o pequeno número dos seres bem-nascidos... (— crítica dos “reformadores”—). Em suas conseqüências, chega a falsear radicalmente, a aniquilar até as camadas de exceção. Estas terminam, para apenas poderem se sustentar em não serem verídicas, em nenhum ponto, quanto a si mesmas — a completa corrupção psicológica com o que daí se segue... (Crítica dos homens “bons”—).
*Nietzsche

É encargo da arte criar uma realidade paralela?

Que, para o artista, o talento máximo seja imitar a realidade até se confundir com ela é, no entanto, um lugar comum do juízo estético que, mesmo entre nós até a época recente, prevaleceu durante muito tempo. Para glorificarem os seus pintores, os gregos reuniam pequenas histórias: uvas pintadas que os pássaros vinham debicar, imagens de cavalos que os seus congêneres pensavam estar vivos, cortina pintada que um rival pedia ao autor que levantasse para poder contemplar o quadro dissimulado por detrás. A lenda atribui a Giotto e a Rembrant este mesmo tipo de proeza. Sobre os seus pintores famosos, a China e o Japão contam histórias muito semelhantes: cavalos pintados que, à noite, deixam o quadro para irem pastar, dragão partindo a voar pelos ares quando o artista acrescenta o último pormenor que faltava.

Quando os índios das pradarias da América do Norte viram, pela primeira vez, um pintor branco a trabalhar, ficaram confusos. Catlin tinha retratado um deles de perfil; um outro índio que não simpatizava com o modelo, gritou que o quadro provava que aquele era apenas uma metade de homem. Seguiu-se uma desordem mortal.

É a imitação do real que Diderot começa por admirar em Chardin: "Este vaso é de porcelana, estas azeitonas ficam de fato separadas do olhar pela água em que nadam (...) estes biscoitos é só agarrá-los e comê-los."

(...)

A sabedoria das nações atesta que Pascal levanta um verdadeiro problema ao exclamar: "Que vaidade a da pintura, que suscita a admiração pela semelhança com coisas cujos originais não são admirados." O romantismo para quem a Arte não imita a Natureza mas, exprime o que o artista põe de si próprio nos quadros, não escapa ao problema; o mesmo acontecendo à crítica contemporânea que faz do quadro um sistema de signos. Pois o trompe - l'oil¹ exerceu, e continua a exercer, o seu império sobre a pintura. Refaz o visível quando pensamos que ela se libertou definitivamente dele.
*Claude Lévi - Strauss
**1 Trompe-l'oeil é uma técnica artística que, com truques de perspectiva, cria uma ilusão óptica que mostre objetos ou formas que não existem realmente. Provém de uma expressão em língua francesa que significa engana o olho e é usada principalmente em pintura ou arquitetura.