domingo, 27 de fevereiro de 2011

Jardim

Labiatas de um jardim sem dono; aos que perderam os seus, algures querem quem nunca os teve. Amar é ser canibalizado sem piedade! Um tiro surdo na noite, a verve de um lavrador drenada pela fome da terra. Toda gota de sangue é carvão ermo na tempera duma fornalha acesa, constantemente trespassada, a rua projeta sensações de não estar. Não há metal por toda a parte, a vida a tornar em giz quebradiço a matéria. O mundo aninha-se aqui como uma procissão de sexos abertos. Uma iluminura que me leva além, uma doença que me há de matar. E que mais? Ademais o corpo, pedaço de rocha liquefeita, fio de orvalho pra sempre dissipado ao contato solar duma aurora. Só se vive uma vez, a não ser que a matéria assim como o desejo, se desdobre. Dimensões multiplicadas ao contato da presença exterior, o balanço das esferas mais interno que a impressão.

Uma aparição rara, confusão de hemisférios espraiados a cismar. Arroubos do mais puro impensado, o horizonte definitivamente a romper a linha do equador. Por que desejar tanto esse corpo? Refazer em novas curvas a busca antiga, abrir por sobre a terra o veio mais fecundo. Um instante e duas eras findaram, o que antes antagônico unido foi, num sítio anterior à presunção. Amar uma representação alheia, dissolver a fadiga dos campos à espera de cabelos e olhos.

(...)

Ter na carne o transcendente além da carne, uma chama feita de antiguidade, a afeição brotada dos lugares mais inesperados. Habita a casa e vê como é vazia, vias de caminhos bifurcados, talhas de um formão imperfeito. Logo passa o instante e descobre-se que o relógio nunca parou. Que Cronos é cego e a dor é muda, nenhuma fúria castiga mais que o lastro do não vivido. Onde estariam todos a não ser na lembrança do que não mais existe...

Talvez quando esse lugar for ainda mais longínquo possamos nos sentar ao pé de uma árvore, se acaso ainda restarem árvores e dimensioná-lo ao modo de alguém que fabrica ou pensa. Não é possível entender a grandeza das coisas a não ser olhando-as com distância. No momento em que aquele homem fincou nesse lugar os seus pés, deveria ter pego a primeira condução que findasse a jornada de volta à sua terra, mas a mulher a quem procurava estava aqui, estrangeira. Ele não tomou a primeira, nem a segunda e nem a terceira condução. Desejou com a ardência dos que nunca nasceram rasgar o tempo e voltar ao momento anterior à revelação, pra que pudesse morrer em paz, com as solenidades dos que existiram apenas. Deveras, onde era sua terra? O mundo todo convertido em exílio, o homem alheio de si.

O perfume da rosa envolve por ser efêmero, qualquer paixão que vale a pena é suicida. E ele se perdeu mais uma vez, pra descobrir que todo corpo é feito de matéria e não há luz além daquela que a vontade projeta. Mas não falemos de empreitas frutadas, a experiência é um fim em si mesmo, quem perde termina mais rico que quem toma. No fim, o ser é feito de memória assim como de esquecimento, um caminho não trilhado nega ambos.
*Leandro M. de Oliveira

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