terça-feira, 27 de abril de 2010

Egoísmo, culpa da biologia?

Haverá realmente algo na nossa natureza biológica que nos leve a sermos egoístas? Será este o equivalente biológico do Pecado Original? Quando alguns biólogos eminentes atestam que há fatos biológicos estabelecidos a mostrar a impossibilidade de um altruísmo genuíno, terão razão?

Eis, numa forma popular, a substância do argumento biológico que leva muitos a pensar que o egoísmo é inevitável:
Os seres humanos modernos são resultado de uma longa e incessante luta evolutiva. Nessa luta, alguns indivíduos conseguem alimentar-se e sobreviver o tempo suficiente para se reproduzirem. Outros, não. Aqueles que o conseguem, passam os seus genes à geração seguinte; os genes dos perdedores são eliminados da população. Os egoístas que agem fundamentalmente e acima de tudo em função dos seus próprios interesses têm uma maior probabilidade de vencer, em relação aos altruístas que colocam a ajuda aos outros para que estes vençam acima da maximização das suas próprias possibilidades de vitórias.

Uma vez que traços como o egoísmo são, pelo menos em parte, determinados pelos nossos genes, isto significa que o número de egoístas aumentará e o número de altruístas diminuirá. Ao longo prazo – e a evolução já se faz mesmo há muito tempo – não haverá quaisquer verdadeiros altruístas.

Confrontados com o exemplo da dedicação de Madre Teresa, ao longo de toda a sua vida, às pessoas de rua doentes e moribundas de Calcutá, observaram que se tratava de uma cristã e, por conseguinte, acreditava vir a receber uma recompensa no céu. Outro sociobiólogo, Pierre van den Berghe, afirmou, simplesmente: “Estamos programados para nos preocuparmos apenas conosco próprios e com os nossos familiares”.
*Peter Singer

Sexo, Freud e essas coisas

Segundo Freud, o alvo do desejo sexual é “a união dos órgãos sexuais no ato conhecido como cópula, que conduz à libertação da tensão sexual e à extinção temporária do instinto sexual – uma satisfação análoga ao saciar da fome”. Esta imagem científica do desejo sexual originou, na altura própria, o relatório Kinsey, e faz agora parte da mercadoria padronizada do desencantamento.

O que é exatamente o prazer sexual? Assemelha-se ao prazer de comer e beber? Ao de repousar num banho quente? Ao de olhar a nossa criança a brincar? É claramente como todos eles e diferente de todos eles. É diferente do prazer de comer no fato do seu objetivo não ser consumido. É diferente do prazer do banho no fato de envolver ter prazer numa atividade, e na outra pessoa que se junta. É diferente do de olhar a nossa criança a brincar no fato de envolver sensações corporais e uma entrega ao desejo físico. O prazer sexual assemelha-se no entanto, num ponto crucial, ao prazer de olhar algo: tem intencionalidade. Não é apenas uma sensação de formigueiro; é uma resposta a outra pessoa, e ao ato em que se está envolvido com ele ou ela. A outra pessoa pode ser imaginária: mas é na direção de uma pessoa que os nossos pensamentos estão orientados, e o prazer depende do pensamento.

Esta dependência no pensamento significa que o desejo sexual pode ser enganado, e que cessa quando o engano é conhecido. Apesar de eu ser um pateta se não saltar de um banho relaxante depois de me ter sido dito que o que tomei por água é na realidade ácido, não é por ter cessado de sentir sensações agradáveis na minha pele. No caso do prazer sexual, as descobertas de que é uma mão indesejada que me toca extingue de imediato o meu prazer. Uma mulher que faz amor com o homem que se disfarçou de seu marido não deixa de ser vítima de violação, e a descoberta do seu engano pode levar ao suicídio. Não é simplesmente por o consentimento obtido por fraude não ser consentimento; mas porque a mulher foi violada, no próprio ato que lhe causou prazer.

O que torna um prazer num prazer sexual é o contexto da excitação. E excitação não é o mesmo que intumescência. É uma “propensão para” o outro, um movimento na direção do ato sexual, que não pode ser separado, nem dos pensamentos em que é fundado nem do desejo a que conduz. A excitação é uma resposta ao pensamento do outro como um agente consciente de si, que está consciente de mim, e que é capaz de ter “intenções” em mim.

*Roger Scruton

Deus e o mau

O principal argumento contra a existência de Deus é a existência do mal. O argumento resume-se assim: se Deus é onipotente poderia ter criado um mundo onde não existisse o mal. Se Deus é bom deveria querer criar um mundo onde não existisse o mal. Mas o mal existe. Logo, ou Deus quis criar um mundo sem o mal mas não pôde - e neste caso não é onipotente -, ou pôde mas não quis - e neste caso não é sumamente bom. Logo, o tal Deus teísta não existe.

Os teístas acabaram por conseguir responder à existência do mau moral. Deus criou um mundo com livre arbítrio. Um mundo com livre arbítrio é um mundo preferível a um mundo sem livre arbítrio. Logo, o mau moral não é da responsabilidade de Deus, mas do livre arbítrio.
Mas e o mau natural, que não depende do livre arbítrio do ser humano? Encontraremos uma resposta a este problema sem pôr em causa a existência de Deus?

Por exemplo, Deus nunca teria tencionado que uma pessoa morresse esmagada por um pedregulho. Mas se as erupções vulcânicas acontecerem de acordo com as leis da geofísica, que Deus quer que existam (caso contrário o mundo seria diferente do que é, e nós seríamos igualmente diferentes, o que seria um mal), algumas pessoas podem ser esmagadas por pedregulhos. Deus não pode suster as leis e preservar todas as pessoas do mal, exceto através de uma série de contínuos milagres, e isto prejudicaria a estrutura da lei. O que é benéfico para o todo será, por vezes, prejudicial para as partes. Perceberemos melhor esta objeção a partir de um exemplo mundano. Se quisermos um jardim muito bonito, por oposição a um caos de ervas daninhas, muitas plantas terão de ser arrancadas e outras fortemente podadas. Poderíamos dizer que o benefício de um todo requer o sacrifício de algumas das partes?
*Keith Ward

domingo, 25 de abril de 2010

O Estado produz Humanidade? (Conjeturas acerca do selvagem)

Como seria a vida num “estado de natureza”, num mundo sem governo?
Tomamos como adquirido o fato de vivermos num mundo de instituições políticas: o governo central, o governo local, a polícia, os tribunais. Estas instituições distribuem e administram o poder político. Colocam pessoas em cargos de responsabilidade e estas pessoas podem reivindicar o direito a mandar-nos a agir de determinadas formas.

É claro que não poderíamos abolir o estado apenas para descobrir como seria a vida sem ele e, por isso, na prática, o melhor que podemos fazer é uma experiência mental. Imaginamos um “estado de natureza”, uma situação na qual o estado não existe e ninguém detém o poder político. Em seguida, tentamos determinar como seria viver nestas condições.

Alguma vez existiu um estado de natureza? Muitos filósofos parecem relutantes em comprometer-se relativamente a este assunto. Jean-Jacques Rosseau (1712-1778), por exemplo, pensava que levaria tanto tempo a passar de um estado de natureza para a “sociedade civil” (uma sociedade governada por um estado formal), que se tornava blasfemo supor que as sociedades modernas teriam surgido dessa forma. Afirmava que o tempo necessário à transição seria superior à idade do mundo, tal como registrada nas escrituras.

Mas mesmo que nunca tenha existido um verdadeiro estado de natureza, podemos ainda assim, considerar como seria a vida se, hipoteticamente, nos víssemos sem um estado. Thomas Hobbes (1558-1679) em Leviatã, traçou um quadro negro desta situação hipotética, esperando convencer os leitores das vantagens do governo.

Mas é possível um estado de natureza? Por vezes, diz-se que não só os seres humanos sempre viveram sob um estado, como essa é a única forma de eles conseguirem viver. De acordo com esta perspectiva, o estado existe naturalmente, no sentido de ser natural para os seres humanos. Talvez não fôssemos seres humanos se vivêssemos numa sociedade sem estado. Talvez fôssemos uma forma inferior de vida animal. Se os seres humanos existem, também existe o estado.
*Jonathan Wolff

O nada é alguma coisa?

Quantas mãos tem? Duas? Ou será três? A sua mão esquerda, a sua mão direita, e a terceira mão, não existente, que está agarrada à sua cabeça?

É óbvio que esta última “mão” não deve contar. Dizer que não tem uma terceira mão não é dizer que possui uma mão que tem a propriedade da não existência. Estaremos metidos numa grande embrulhada se entendermos afirmações de não existência como significando que existem objectos que têm a propriedade da não existência. Isto porque, se assim não fosse, tais objectos teriam de existir e não existir simultaneamente, o que não pode ser. Assim, quando dizemos que ninguém veio à festa, queremos deste modo negar que alguém tenha vindo à festa – e não afirmar que pelo menos uma pessoa apareceu (a saber, “ninguém”, a “não pessoa”)

Esta confusão torna-se inevitável quando se parte do princípio de que todos os substantivos de uma linguagem referem, necessariamente, coisas. Se partir deste princípio, ao deparar com uma frase como “Nada bate um

às de trunfo”, vê-se forçado a concluir que afinal existe algo que bate o às de trunfo, a saber, nada. Contudo, nem todos os substantivos contribuem da mesma maneira para o sentido de uma frase. Nomeadamente, existem substantivos (como por exemplo”nada”) que não referem coisa alguma, existindo outros (como por exemplo “Manhattan”) que referem.

Concluindo, pensar que nada é algo que compete com uma coisa pelo mesmo espaço denota confusão. Em qualquer espaço dado, ou há uma coisa, ou não há uma coisa. Se não há coisa alguma, se nada lá está, isto não quer dizer que haja lá uma coisa, a saber, uma coisa chamada “Nada”.
*Alexander George (org), Que Diria Sócrates, 1ª edição, 2008. Lisboa: Gradiva, pp.19-20

2046 de Wong Kar-Wai


sábado, 24 de abril de 2010

Eterno Retorno

Não sinto surpresas.
A isto ou aquilo, me vem o tudo,
Perdido ao não de todos os sins,
Talvez tudo seja mesmo nada.
Falar, comer, chorar, amar,
Tão somente reinterpretações
Da peça tantas vezes encenada...
Se o tempo é não linear,
As coisas vão e tornam a vir,
E na intangibilidade dos eventos
Diferença não há entre o eu-ter-sido
Que seja aparente no eu-vir-a-ser.

Ademais reside o silêncio tumular,
Ou o grito desesperado do ego
Que sem saída à pretensão,
Em transe luta a esmo de si
Inventando salas, janelas e fulgas.
Passado, presente, futuro,
Nada além de um uni-desencontro
Dentro desse todo simultâneo, ou
Um desaranjo no estômago
Que impede a práxis da vida.

Eu a divagar...
Pensando progredir em alguma parte
Mantendo os pés enterrados ao chão.

*Leandro M. de Oliveira

Amniótico (das crenças de hoje)

A resposta justa ao problema não foi proposta por ser a melhor, antes por ser produto de convicções internas muito subjacentes na ação teoricamente não intencional. Esse homem chamado cientista, é só um homem, passível de toda a sorte de paixões e decisões partidárias a que qualquer outro está exposto.

E mais uma vez você deu a vida pela verdade e de novo se viu morrendo em vão, no campo infértil dos trigais de quem acreditou. Se você se pensa livre por ser socialista, é tão preso quanto qualquer liberal. Se se acha puro por ser cristão, é mais corrompido que todos os ateus. Se por fim se sente livre em não levantar bandeiras, será a liberdade deveras, o teu ópio e o teu calabouço. A intransigência da negação nubla a vista e encerra a potência. Ser reacionário não é testemunho de fortaleza. Que há de justo, verdade ou conveniência além daquela mentira indecorosa contada tantas vezes?

Deus é fiel, a sua mãe não foi... Te fez acreditar que a prisão é o melhor remédio. Aqui se vai, tão aquém do que se era possível... Se no mundo todas as verdades são provisórias, que há de eterno além da ilusão? Participar é aceitar enxergar através de uma lente que você não pintou, ou quem sabe, fingir humildade na dominância. O mundo não permite a inocência, bem vindo à época das segundas intenções.

Sempre ela, a ciência. Te faz crer na evolução mas, o que evoluiu ao longo dos anos foi só a argúcia daqueles que dominam a técnica pra te fazer pensar que há um sentido de perenidade, além daquele guiado pelo interesse de quem opera o sistema. Ninguém vai te salvar aqui, a verdade científica em geral é tão verdade quanto o vôo de Ícaro ou os trabalhos de Hércules. A consciência humana bóia “in vitro” no fluido amniótico das imposições cotidianas. Você, tão arrebatado das promessas, não percebe sequer por um momento que essa é uma casa sem paredes e que qualquer intempérie da natureza pode assim nos dilacerar.

No bojo das ações, isenção é mito.
*Leandro M. de Oliveira

O neo-liberalismo e o reconhecimento da diferença

(...) O modelo do Estado-Providência sofreu, desde os anos 80, a forte concorrência do modelo do Neoliberalismo que critica com virulência a lentidão administrativa do primeiro e o peso dos constrangimentos econômicos que impõe aos empresários. Para os Neoliberais, a defesa da igualdade é uma política condenável porque maltrata o dinamismo e criatividade individuais à força de multiplicar barreiras que entravam a livre iniciativa e que destroem progressivamente a iniciativa privada.

Esta oposição do modelo social-democrata e do modelo ultra liberal podia reduzir-se à confrontação dos valores de igualdade e de liberdade. No entanto, ela insere-se num contexto cultural que, nas democracias liberais atuais tende a conceder um lugar cada vez mais privilegiado àquilo que se apresenta como uma nova exigência moral, o respeito pela diferença. Desde há cerca de 30 anos, com efeito, a preocupação de defender a autonomia individual, preocupação tipicamente liberal, parece ter mudado de sentido, ao passar pouco a pouco de uma reivindicação dos direitos para uma reivindicação identitária.

De agora em diante, o respeito pela liberdade já não passará tanto pela obtenção de uma igualdade jurídica, que concede o mesmo estatuto a indivíduos apesar das suas diferenças, mas pelo reconhecimento público de certas diferenças. Assim, cada vez mais numerosos são aqueles que desejam ser respeitados, já não enquanto cidadãos perante a lei, mas enquanto mulher, homossexual, muçulmano, membro de uma comunidade étnica, etc.

Os membros das "minorias", isto é, grupos que sofrem de uma falta de reconhecimento social, são evidentemente aqueles que mais defendem esse movimento. Mas este, longe de se limitar às reivindicações minoritárias, parece que se difunde no mais profundo da consciência democrática moderna. A igualdade abstrata que o estatuto atual da cidadania define já não será satisfatória. Formulada de modo universal, ela seria estruturalmente insensível às diferenças que constituem a personalidade de cada um e deixaria escapar uma dimensão fundamental daquilo que torna o ser humano digno de respeito.
*Sophie Guérard de Latour

O que é isto, a filosofia?

A natureza da filosofia pode ser captada mediante dois contrastes: por um lado, contrastando a filosofia com a ciência; por outro lado, com a teologia. De modo simples, a ciência é o domínio da investigação empírica. Resulta da tentativa de compreender o mundo tal como nós o percebemos, e da tentativa de predizer e explicar os acontecimentos observáveis e de formular as «leis da natureza» (se as há) a partir das quais o rumo da prática humana deve ser justificado. Contudo, qualquer ciência gera um certo número de questões que excedem a esfera dos seus próprios métodos de investigação, não podendo por isso responder-lhes. Consideremos a questão, que costuma assaltar-nos perante um acontecimento fora do vulgar, «O que é que causou isto?». Uma resposta científica apelará provavelmente a acontecimentos e condições precedentes, a par de certas leis e hipóteses, que ligam o acontecimento que se quer explicar aos acontecimentos que o explicam. Mas a mesma questão pode ser colocada a propósito destes últimos e, se for dado o mesmo tipo de resposta, a série de causas poderia, pelo menos potencialmente, regredir até ao infinito. Ao darmos conta desta possibilidade, poderíamos ser levados a fazer uma outra pergunta «Qual é a causa da própria existência dessa série de acontecimentos?», ou, de modo ainda mais abstrato «O que explica a própria existência de acontecimentos?»; a perguntar não apenas porque razão existe este ou aquele acontecimento, mas porque razão existe sequer alguma coisa? Dada a natureza do caso, a investigação científica, que nos leva do que é dado para o que o explica, pressupõe a existência das coisas. Porém, é incapaz de resolver esta questão mais abstrata e mais embaraçosa. Trata-se de uma questão que parece ultrapassar os limites da investigação empírica, apesar de surgir naturalmente dela. A ciência não lhe dará resposta. Apesar disso, não parece absurdo pensar que pode haver uma resposta.


Descobrimos constantemente que a ciência gera questões cuja resposta excede a sua competência. A estas questões costuma dar-se o nome de metafísicas, formando elas uma parte distintiva e inescapável da filosofia. No entanto, para dar resposta ao problema metafísico mencionado, as pessoas podem sempre recorrer à autoridade de um sistema teológico. Podem encontrar a resposta invocando Deus como a primeira causa e fim último de todas as coisas. Mas se este apelo se baseia meramente na fé, a autoridade que pode reclamar é tão racional como a que se costuma atribuir à idéia de revelação. Qualquer pessoa que deixa as coisas no plano da fé, e não continua a questionar a sua validade, possui, num certo sentido, uma filosofia, pois fundou a sua crença numa doutrina metafísica. Porém, fê-lo dogmaticamente: a doutrina não é o resultado de um processo argumentativo racional ou de especulação metafísica. É apenas uma idéia aceite, uma idéia que vale pelo fato de dar resposta a um enigma metafísico, mas sempre presa à desvantagem de não acrescentar qualquer autoridade ao pressuposto original que se limitou a aceitar.


Qualquer tentativa de fornecer um fundamento racional para a teologia constitui, pelo próprio fato de a teologia responder a questões metafísicas, uma forma de pensamento filosófico. Não surpreende, portanto, que, não sendo a teologia em si mesma filosofia, a questão da possibilidade da teologia tenha sido, e até certo ponto seja ainda, a principal questão filosófica.


Além das questões metafísicas do tipo referido, há outras questões às quais se pode atribuir o direito prima facie de serem consideradas filosóficas. Há em especial questões de método, tipificadas pelas disciplinas da epistemologia (teoria do conhecimento) e da lógica. Tal como a investigação científica pode ser obrigada a uma regressão explicativa que desemboca na metafísica, também o método das ciências pode ser posto em questão se perguntarmos repetidamente pelos fundamentos das convicções existentes a seu respeito. Por essa via, a ciência acaba inevitavelmente por conduzir à lógica e à epistemologia, e se houver a tentação de afirmar que as conclusões destas disciplinas são vazias ou destituídas de significado, ou que as suas questões são irrespondíveis, isso constituirá em si mesmo uma posição filosófica que necessita de defesa, tanto quanto as alternativas menos cépticas que ela põe em dúvida.


Aos estudos de metafísica, lógica e epistemologia devem acrescentar-se os da ética, da estética e da filosofia política, pois também nestes casos, assim que nos pomos a refletir sobre as bases dos nossos pensamentos, somos levados para níveis de abstração onde a investigação empírica não pode oferecer respostas satisfatórias. Por exemplo, toda a gente compreende que o respeito pelo princípio moral que proíbe o roubo implica não roubar em qualquer circunstância; toda a gente reconhece também que é preciso olhar de modo diferente um homem esfomeado que rouba um pão a um rico que deste não precisa e um rico que rouba o mais precioso bem a outro homem. Mas porque reconhecemos essa diferença? Como reconciliar esta atitude com o princípio geral que proíbe o roubo? Como justificar o próprio princípio? Todas estas perguntas nos levam para planos claramente filosóficos. Os próprios limites da moralidade, do direito e da política cedo ficarão para trás, e damos conosco no meio de abstrações, sem acreditar muitas vezes na capacidade destas para sustentar um sistema de crenças, e a ter muitas vezes saudades do refúgio dos velhos dogmas da teologia.


O que distingue então o pensamento filosófico? As questões que os filósofos colocam exibem duas características pelas quais podemos começar a defini-las: a abstração e a preocupação com a verdade. Por abstração entendo a traços largos o seguinte: que as questões filosóficas surgem quando se chega ao limite de qualquer outra investigação, quando as questões acerca de coisas particulares, acontecimentos e dificuldades práticas, foram resolvidas de acordo com os métodos disponíveis e quando estes mesmos métodos, ou uma doutrina metafísica que lhes é subjacente, são postos em questão. Portanto, os problemas da filosofia e os sistemas concebidos para os resolver são formulados em termos que tendem a referir-se não ao domínio da realidade, mas aos domínios da possibilidade e da necessidade: ao que pode ser e ao que tem de ser, e não ao que é.


A segunda característica – a preocupação com a verdade – pode parecer tão óbvia que podemos achar que não vale a pena mencioná-la. Porém, ela é facilmente esquecida, e, quando é esquecida, a filosofia facilmente degenera em retórica. As perguntas feitas pela filosofia podem dever a sua especificidade ao fato de não poderem obter resposta – alguns filósofos chegaram a esta conclusão. Seja como for, não deixam de ser perguntas, e, por isso, qualquer resposta tem de ser avaliada em função das razões que a fundamentam para a podermos considerar verdadeira ou falsa. Se não houver respostas, todas as putativas respostas são falsas. Mas se alguém avança uma resposta terá de aduzir razões para que nela possamos acreditar.
*Roger Scruton

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Relativismo radical, a crítica de Dawkins

Muitas vezes pensamos que é inteligente dizer que a ciência não é mais do que nosso mito de origem moderno. Os judeus tinham Adão e Eva, os sumérios, Marduk e Gilgamesh, os gregos, Zeus e os deuses do Olimpo, os nórdicos, o Valhala. O que é a evolução, dizem algumas pessoas espertas, senão o nosso equivalente moderno dos deuses e dos heróis épicos, nem melhor nem pior, nem mais verdadeira ou mais falsa? Há uma filosofia de salão elegante chamada relativismo cultural que afirma, na sua versão radical, que a ciência não tem mais direito em afirmar a verdade do que o mito tribal: a ciência é apenas a mitologia favorecida por nossa tribo ocidental moderna. Uma vez fui provocado por um colega antropólogo e coloquei uma questão claramente, do modo que se segue: suponha que existe uma tribo, disse eu, que acredita que a Lua é uma cabaça velha lançada aos céus, pendurada fora de alcance um pouco acima do topo das árvores.

Você afirma realmente que nossa verdade científica - que afirma que a Lua está a 382 mil quilômetros afastada e tem um quarto do diâmetro da Terra - não é mais verdadeira do que a cabaça da tribo? "Sim", disse o antropólogo. "Nós apenas fomos criados em uma cultura que vê o mundo de outro modo. Nenhum destes modos é mais verdadeiro do que o outro.

Aponte-me um relativista cultural a 10 quilômetros de distância [altitude] e lhe mostrarei um hipócrita. Aviões construídos de acordo com princípios científicos funcionam. Eles mantêm-se no ar e o levam ao seu destino escolhido. Aviões construídos de acordo com especificações tribais ou mitológicas, tais como os aviões de imitação dos cultos de carregamento nas clareiras das selvas ou as asas coladas com cera de abelha de Ícaro, não funcionam. Se você estiver voando para um congresso internacional de antropólogos ou de críticos literários, a razão pela qual você provavelmente chegará lá - a razão pela qual você não se esborrachará em um campo cultivado - é que uma multidão de engenheiros ocidentais cientificamente treinados realizou os cálculos corretamente.

A ciência ocidental, com base na evidência confiável de que a Lua orbita em torno da Terra a uma distância de 382 mil quilômetros, conseguiu colocar pessoas em sua superfície. A ciência tribal, acreditando que a Lua estava um pouco acima do topo das árvores, nunca chegará a tocá-la, exceto em sonhos.
*Richard Dawkins

A menina e a teia

Sedução em rouge de mãos, olhos, bocas e abismos. Entre o deserto e a noite as paredes gritavam. A fome que não cessa, a fome que bestializa a vida; como pretender um momento excelso? Viver às vezes parece que se resume ao ato de flutuar por sobre os escombros. Nada mudou, a transfiguração é um estado de espírito, nada mais. A eterna promessa, o erro sem perdão de abraçar o agora exigindo o depois. A ordem do dia é o desespero, as estrelas são geradas no caos. O embuste da felicidade duradoura já paralisou muitas almas nobres. E você se viu ultrapassado e se viu perdido. Temos más notícias, só tuas pernas são capazes de movimentar teu corpo. É tempo de repaginar os sentidos, é imperioso sentir a si próprio quando nada mais restar. Coisa alguma jamais existiu de fato, as coisas não se desintegram ao nada. Se são estão, se não estão, é porque nunca foram em verdade.

Há muitas formas de se perceber um corpo alheio, todavia, nunca pode ser maior que a percepção da rota individual. O martírio nunca santificou, a cisma em sofrer não é mais que degeneração da alma. E como o sol não está fixo por sobre o céu, entre dores e gemidos é preciso bailar por sobre a terra, a imobilidade atrofia, só o movimento concebe potência. Abra os olhos, abra o seio da terra com os dentes, cuspa o passado como se fosse um chiclete sem açúcar. A tua hora é essa, esse instante encerra a chave do novo, que será feito então? Cada um é livre ao que desejar, tanto para esforço supremo como para degradação voluntária. Cadáveres exalam mau cheiro depois de algum tempo, lancem-nos ao fogo, salte você mesmo. A colheita não para, a árvore que deixa de produzir deve ser ceifada. Quero que a vergonha habite a sua casa, que a doença e o caos espreitem sua respiração. Eu vim para trazer a discórdia, a injúria e o ódio. Só é possível renascer quando se morre, corte a garganta da tua mentira, corte as correntes que te uniram ao que nunca deveria ser.

O chão rachou debaixo dos pés, o ar parece condensado como uma instância do inferno. Virgílio só guia o peregrino de Dante, terás de conseguir com teu próprio esforço. É duro, é sem sentido mas, é o único jeito. Grite até quebrar todas as vidraças, a essa altura a fúria é muito salutar. Depois, quando não houver mais voz, sorria como um Sheik drogado, expulsar os fantasmas é melhor que anestesiar-se de ópio imaginário.

Vamos, rebele-se!

Enquanto isso as paredes continuarão gritando, o sono será escasso e a noite abundante. Mas que importa? A bíblia não diz “bem aventurados os que sofrem”? Sei que diz, e você se esconde atrás desse tipo de mentira para exaltar a escravidão. O velho inconsciente ocidental e seu talento em fabricar auto-piedade. Um aleijado não é um semi-deus, é só um aleijado, assim como todos os outros enfermos e gente desqualificada de toda a espécie. Esperar alguma glória na derrota é violentar as leis da vida. Então a opção é essa, expor-se aos ressentidos, sentir deles a pequenez em suas formas mais vis, lutar, perder, cair e levantar. E repetir o ciclo em tantas vezes forem necessárias até que chegue o dia da imunidade. Em muitos casos é preciso descer ao inferno pra ascender como anjo, a única questão é: Você quer aprender a voar?
*Leandro M. de Oliveira

terça-feira, 13 de abril de 2010

Poema em Linha Reta

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.

Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.


E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,

Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,

Indesculpavelmente sujo,

Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,

Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,

Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,

Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,

Que tenho sofrido enxovalhos e calado,

Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;

Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,

Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,

Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,

Eu, que quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado

Para fora da possibilidade do soco;

Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,

Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.


Toda a gente que eu conheço e que fala comigo

Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,

Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida…


Quem me dera ouvir de alguém a voz humana

Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;

Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!


Não, são todos os Ideal, se os oiço e me falam.

Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?

Ó príncipes, meus irmãos,


Arre, estou farto de semideuses!

Onde é que há gente no mundo?


Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?


Poderão as mulheres não os terem amado,

Podem ter sido traídos – mas ridículos nunca!

E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,

Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?

Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,

Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

*Fernando Pessoa

Alice

Alice estava começando a ficar muito cansada de estar sentada ao lado de sua irmã e não ter nada para fazer: uma vez ou duas ela dava uma olhadinha no livro que a irmã lia, mas não havia figuras ou diálogos nele e “para que serve um livro”, pensou Alice, “sem figuras nem diálogos?”

Então, ela pensava consigo mesma (tão bem quanto era possível naquele dia quente que a deixava sonolenta e estúpida) se o prazer de fazer um colar de margaridas era mais forte do que o esforço de ter de levantar e colher as margaridas, quando subitamente um Coelho Branco com olhos cor-de-rosa passou correndo perto dela.

Não havia nada de muito especial nisso, também Alice não achou muito fora do normal ouvir o Coelho dizer para si mesmo “Oh puxa! Oh puxa! Eu devo estar muito atrasado!” (quando ela pensou nisso depois, ocorreu-lhe que deveria ter achado estranho, mas na hora tudo parecia muito natural); mas, quando o Coelho tirou um relógio do bolso do colete, e olhou para ele, apressando-se a seguir, Alice pôs-se em pé e lhe passou a idéia pela mente como um relâmpago, que ela nunca vira antes um coelho com um bolso no colete e menos ainda com um relógio para tirar dele. Ardendo de curiosidade, ela correu pelo campo atrás dele, a tempo de vê-lo saltar para dentro de uma grande toca de coelho embaixo da cerca.

No mesmo instante, Alice entrou atrás dele, sem pensar como faria para sair dali.

A toca do coelho dava diretamente em um túnel, e então aprofundava-se repentinamente. Tão repentinamente que Alice não teve um momento sequer para pensar antes de já se encontrar caindo no que parecia ser bastante fundo.

Ou aquilo era muito fundo ou ela caía muito devagar, pois a menina tinha muito tempo para olhar ao seu redor e para desejar saber o que iria acontecer a seguir. Primeiro, ela tentou olhar para baixo e compreender para onde estava indo, mas estava escuro demais para ver alguma coisa; então, ela olhou para os lados do poço e percebeu que ele era cheio de prateleiras: aqui e ali ela viu mapas e quadros pendurados em cabides. Alice apanhou um pote de uma das prateleiras ao passar: estava etiquetado “GELÉIA DE LARANJA”, mas para seu grande desapontamento estava vazio: ela não jogou o pote fora por medo de machucar alguém que estivesse embaixo e por isso precisou fazer algumas manobras para recolocá-lo em uma das prateleiras.

“Bem”, pensou Alice consigo mesma. “Depois de uma queda dessas, eu não vou achar nada se rolar pela escada! Em casa eles vão achar que eu sou corajosa! Porque eu não vou falar nada, mesmo que caia de cima da casa!” (O que era provavelmente verdade).

Para baixo, para baixo, para baixo. Essa queda nunca chegará ao fim?



Ao ver Alice, o Gato só sorriu. Parecia amigável, ela pensou; ainda assim tinha garras muito longas e um número enorme de dentes, de modo que achou que devia tratá-lo com respeito.

“Bichano de Cheshire”, começou, muito tímida, pois não estava nada certa de que esse nome iria agradá-lo; mas ele só abriu um pouco mais o sorriso. “Bom, até agora ele está satisfeito”, pensou e continuou: “Poderia me dizer, por favor, que caminho devo tomar para ir embora daqui?”

“Depende bastante de para onde quer ir”, respondeu o Gato.

“Não me importa muito para onde”, disse Alice.

“Então não importa que caminho tome”, disse o Gato.

“Contanto que eu chegue a algum lugar”, Alice acrescentou à guisa de explicação.

“Oh, isso você certamente vai conseguir”, afirmou o Gato, “desde que ande o bastante”.

Como isso lhe pareceu irrefutável, Alice tentou uma outra pergunta: “Que espécie de gente vive por aqui?”

“Naquela direção”, explicou o Gato, acenando com a pata direita, “vive um Chapeleiro; e naquela direção”, acenando com a outra pata, “vive uma Lebre de Março. Visite qual deles quiser: os dois são loucos.”

“Mas não quero me meter com gente louca”, Alice observou.

“Oh! É inevitável”, disse o Gato; “somos todos loucos aqui. Eu sou louco. Você é louca.”

“Como sabe que sou louca?” perguntou Alice.

“Só pode ser”, respondeu o Gato, “ou não teria vindo parar aqui.”
*Lewis Carroll

domingo, 4 de abril de 2010

Definição do método (Procedimentos para o verdadeiro conhecer)

(...) Por este motivo, considerei ser necessário buscar algum outro método que, contendo as vantagens desses três, estivesse desembaraçado de seus defeitos. E, como a grande quantidade de leis fornece com freqüência justificativas aos vícios, de forma que um Estado é mais bem dirigido quando, apesar de possuir muito poucas delas, são estritamente cumpridas; portanto, em lugar desse grande número de preceitos de que se compõe a lógica, achei que me seriam suficientes os quatro seguintes, uma vez que tornasse a firme e inalterável resolução de não deixar uma só vez de observá-los.

- O primeiro era o de nunca aceitar algo como verdadeiro que eu não conhecesse claramente como tal; ou seja, de evitar cuidadosamente a pressa e a prevenção, e de nada fazer constar de meus juízos que não se apresentasse tão clara e distintamente a meu espírito que eu não tivesse motivo algum de duvidar dele.

- O segundo, o de repartir cada uma das dificuldades que eu analisasse em tantas parcelas quantas fossem possíveis e necessárias a fim de melhor solucioná-las.

- O terceiro, o de conduzir por ordem meus pensamentos, iniciando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para elevar-me, pouco a pouco, como galgando degraus, até o conhecimento dos mais compostos, e presumindo até mesmo uma ordem entre os que não se precedem naturalmente uns aos outros.

- E o último, o de efetuar em toda parte relações metódicas tão completas e revisões tão gerais nas quais eu tivesse a certeza de nada omitir
*René Descartes

Taciturno

Há ouro marchetado em mim, a pedras raras,
Ouro sinistro em sons de bronzes medievais -
Jóia profunda a minha alma a luzes caras,
Cibório triangular de ritos infernais.

No meu mundo interior cerraram-se armaduras,
Capacetes de ferro esmagaram Princesas.
Toda uma estirpe real de heróis d´Outras bravuras
Em Mim se despojou dos seus brazões e presas.

Heráldicas-luar sobre impetos de rubro,
Humilhações a liz, desforços de brocado;
Basílicas de tédio, arneses de crispado,
Insígnias de Ilusão, troféus de jaspe e Outubro...

A ponte levadiça e baça de Eu-ter-sido
Enferrujou - embalde a tentarão descer...
Sobre fossos de Vago, ameias de inda-querer -
Manhãs de armas ainda em arraiais de olvido...

Percorro-me em salões sem janelas nem portas,
Longas salas de trono a espessas densidades,
Onde os panos de Arrás são esgarçadas saudades,
E os divans, em redor, ânsias, lassas, absortas...

Há roxos fins de Império em meu renunciar -
Caprichos de setim do meu desdém Astral...
Há exéquias de heróis na minha dor feudal -
E os meus remorsos são terraços sobre o Mar...

*Mário de Sá Carneiro

Mantém a tua mão

Mantém a tua mão
No rigor das dunas
Andar no arame
Não é próprio de desertos

Cruza sobre mim
As pontas do vento
E orienta-as a sul
Pelo sol

Mantém a tua mão
Perpendicular às dunas
E encontra o equilíbrio
No corredor do vento

A nossa conversa percorrerá oásis
Os lábios a sede

Quando saíres
Deixa encostadas
As portas do Kalahari.

*Paula Tavares

Linguagem e comunicação em Aristóteles (As palavras e seus usos)

No caso de um oposto contraditório, é preciso ver igualmente se ele tem mais de um significado. Porque, se assim for, o seu oposto será também usado em mais de uma acepção:

Por exemplo, "não ver" é uma expressão que tem mais de um significado, a saber: (1) não possuir o sentido da vista, e (2) não fazer uso ativo dessa capacidade. Mas, se "não ver" tem mais de um significado, segue-se necessariamente que "ver" também tem mais de um, pois haverá um oposto para cada sentido de "não ver"; por exemplo, o oposto de "não possuir o sentido da visão'' e possuí-lo, enquanto o oposto de "não fazer uso ativo do sentido da visão" é fazer uso ativo dele. Examine-se, além disso, o caso dos termos que denotam a privação ou a presença de um certo estado: porque, se um dos termos tem mais de uma acepção, o mesmo acontecerá com o outro: por exemplo, se "ter sensibilidade" se usa em mais de um sentido, conforme se aplique à alma ou ao corpo, "estar privado de sensibilidade" também será usado em mais de um sentido, segundo se referir à alma ou ao corpo. Que a oposição entre os termos agora depende da presença ou privação de um certo estado é evidente, pois os animais possuem naturalmente ambas as espécies de "sensibilidade", tanto no que se refere à alma como ao corpo.

Examinem-se igualmente as formas derivadas. Pois, se "justamente" tem mais de um sentido, “justo" também será usado em mais de um significado, porquanto haverá um acepção de "justo" correspondente a cada acepção de "justamente"; por exemplo, se a palavra "justamente" se emprega no sentido de julgar de acordo com a sua própria opinião, e também no de julgar como se deve, então "justo" será usado de igual maneira. Analogamente, se "saudável" tem mais de um significado, "saudavelmente" também será usado em mais de uma acepção; por exemplo, se "saudável" significa tanto o que produz saúde e o que a conserva como o que dá mostras de saúde, "saudavelmente" também será usado nos sentidos: "de maneira a produzir", ou a "conservar", ou a "dar mostras de" saúde. E do mesmo modo nos outros casos, sempre que o termo original comporte mais de um significado, o termo que dele se deriva será usado em mais de um significado, e vice-versa.

Considerem-se também as classes de predicados que o termo significa, procurando ver se são as mesmas em todos os casos. Porquanto, se não forem as mesmas, o termo será evidentemente ambíguo; por exemplo: "bom", no caso de alimentos, significa "que causa prazer"; e, no caso de medicamentos, "que promove a saúde", ao passo que, se o aplicarmos à alma, significará a posse de certa qualidade, como a de ser temperante, corajoso ou justo; e do mesmo modo quando aplicado a "homem". Por vezes significa o que acontece em determinada ocasião, como, por exemplo, o "bom" que acontece na ocasião oportuna, pois ao que acontece na ocasião oportuna chamamos "bom". Não raro significa o que existe em determinada quantidade, por exemplo; quando se aplica à quantidade apropriada; pois a quantidade apropriada também é chamada boa. Por tudo isso se vê que o termo "bom" é ambíguo. E, analogamente, "claro", quando aplicado a um corpo, significa uma cor, mas em referência a uma nota designa o que é fácil de ouvir . "Agudo" é também um caso que tem estreita semelhança com este, pois o mesmo termo não possui o mesmo significado em todas as suas aplicações; com efeito, uma nota aguda é uma nota rápida, como nos ensinam todos os teóricos matemáticos da harmonia, ao passo que um ângulo agudo é aquele que é menor do que um ângulo reto, enquanto um punhal agudo é o que possui uma ponta penetrante (pontiagudo).

Atenda-se também aos gêneros dos objetos designados pelo mesmo termo, e veja-se se são diferentes sem ser subordinados um ao outro, como, por exemplo, "gato", que designa tanto o animal como o utensílio. Com efeito, as definições correspondentes ao nome são diferentes em cada caso: num deles se dirá que é um animal de determinada espécie, e no outro um utensílio usado para certo fim. Se, contudo, houver subordinação entre os gêneros, não é necessário que as definições sejam diferentes. Assim, por exemplo, "animal" é o gênero de "corvo" e também de "ave". Por conseguinte, sempre que dizemos que o corvo é uma ave, também dizemos que ele é uma determinada espécie de animal, de modo que ambos os gêneros se predicam dele. E igualmente, sempre que dizemos que o corvo é um "animal bípede voador", classificamo-lo como ave; e assim, também desta maneira ambos os gêneros se predicam de corvo, bem como a sua definição. Isso, porém, não acontece no caso dos gêneros que são subalternos, pois sempre que chamamos uma coisa de "utensílio" não a chamamos de animal, e vice-versa.
*Aristóteles