sexta-feira, 17 de setembro de 2010

O gene egoísta (parte 2)

(...) Vou falar de como as coisas evoluíram. Não pretendo dizer de que maneira nós, os seres humanos, deveríamos nos comportar moralmente. Insisto neste ponto porque estou ciente do risco de ser mal interpretado por aquelas pessoas (numerosas, infelizmente) que não são capazes de diferenciar a declaração da crença num dado estado de coisas de uma defesa de como as coisas devam ser. Pessoalmente, acredito que uma sociedade baseada apenas na lei do egoísmo impiedoso dos genes seria uma sociedade execrável. Mas, infelizmente, por mais que se considere uma coisa execrável, ela não deixa, por isso, de ser verdade.

(...) Tratemos então de ensinar a generosidade e o altruísmo, porque nascemos egoístas. Tratemos de compreender o que pretendem os nossos próprios genes egoístas, pois só assim teremos alguma chance de perturbar os seus desígnios, algo que nenhuma outra espécie jamais aspirou fazer.


Como corolário dessas observações sobre o ensinar, devo dizer que é um erro - e, a propósito, bastante comum - supor que os traços herdados geneticamente são, por definição, fixos e inalteráveis. Os nossos genes podem nos instruir a sermos egoístas, mas não somos necessariamente forçados a obedecê-los a vida toda. Pode apenas ser mais difícil para nós aprender o altruísmo do que seria se estivéssemos geneticamente programados para sermos altruístas. Entre os animais, o homem é dominado de uma maneira muito singular pela cultura, por influências aprendidas e transmitidas de geração em geração. Alguns diriam que a importância da cultura é tão grande que os genes, egoístas ou não, são virtualmente irrelevantes para a compreensão da natureza humana. Outros discordariam. Tudo depende de onde nos situamos no debate sobre a "natureza versus cultura" como determinantes dos atributos humanos. (...) Se os genes de fato se mostrarem totalmente irrelevantes na determinação do comportamento humano moderno, e se formos com efeito os únicos entre os animais com os quais isso acontece, será, no mínimo, interessante nos indagarmos sobre a regra em relação à qual nos tornamos tão recentemente a única exceção. E, se a nossa espécie não for assim tão excepcional como gostaríamos de acreditar, será ainda mais importante nos indagarmos sobre essa regra.

(...) A lógica do meu argumento sobre o "gângster de Chicago" é inteiramente diferente. Ela funciona como segue. Os humanos e os babuínos evoluíram por meio da seleção natural. Se examinarmos o modo como a seleção natural opera, ele parece sugerir que qualquer coisa que tenha evoluído por meio da seleção natural deve ser egoísta. Portanto, é de esperar que, ao observarmos o comportamento dos babuínos, dos seres humanos e de todas as outras criaturas vivas, descobriremos que se trata de um comportamento egoísta. Se a nossa expectativa não se confirmar, se verificarmos que o comportamento humano é verdadeiramente altruísta, então estaremos diante de um fato intrigante, de algo que requer uma explicação.

Antes de prosseguir, precisamos de uma definição. Uma entidade, como um babuíno, por exemplo, será considerada altruísta se ela se comportar de forma a aumentar o bem-estar de outra entidade semelhante, com prejuízo de si mesma. O comportamento egoísta é aquele que tem exatamente o efeito oposto. O "bem-estar" é definido como "probabilidade de sobrevivência", ainda que o efeito sobre as expectativas reais de vida e de morte seja tão pequeno a ponto de parecer desprezível. Uma das conseqüências mais surpreendentes da teoria darwiniana é que mesmo as influências diminutas, aparentemente triviais, podem ter sobre as probabilidades de sobrevivência um impacto decisivo na evolução. Isso se deve à enorme quantidade de tempo disponível para que tais influências revelem seus efeitos.

É importante perceber que as definições acima apresentadas, tanto de altruísmo como de egoísmo, são comportamentais, e não subjetivas. Não me ocuparei aqui da psicologia das motivações. Não vou discutir se as pessoas que se comportam de maneira altruísta "na realidade" o fazem por motivos egoístas secretos ou subconscientes. Pode ser que seja assim e pode ser que não seja, e talvez nunca cheguemos a saber ao certo; de todo modo, não é disso que (se) trata. A minha definição visa somente a discernir se o efeito de uma ação consiste em diminuir ou aumentar as perspectivas de sobrevivência do presumível altruísta e as perspectivas de sobrevivência do presumível beneficiário.

É muito complicado demonstrar os efeitos do comportamento quando se trata das perspectivas de sobrevivência no longo prazo. Na prática, quando aplicamos a definição ao comportamento real, temos de qualificá-lo com o termo "aparentemente". Uma ação aparentemente altruísta é aquela que, superficialmente, parece tender a tornar a morte do altruísta mais provável (por pouco que seja) e a favorecer a sobrevivência do beneficiário. O exame mais detalhado revela, muitas vezes, que atos de altruísmo aparente são, na realidade, atos de egoísmo disfarçados. Uma vez mais, não pretendo dizer com isso que os motivos subjacentes sejam secretamente egoístas, e sim que os efeitos reais da ação sobre as perspectivas de sobrevivência são o oposto daquilo que havíamos pensado a princípio.

Fornecerei alguns exemplos de comportamentos aparentemente egoístas e de comportamentos aparentemente altruístas. Tendo em vista a dificuldade de evitar certos vícios de pensamento subjetivo quando lidamos com a nossa própria espécie, darei preferência a exemplos relativos a outros animais. Primeiro, alguns exemplos variados de comportamentos egoístas em animais individuais.

Os guinchos constroem seus ninhos em grandes colônias, e os mantêm separados uns dos outros por poucos palmos de distância. Ao nascer, os filhotes são pequenos e indefesos e, portanto, fáceis de engolir. É bastante comum que uma fêmea espere a sua vizinha virar as costas, possivelmente para pescar, e então se lance sobre um dos seus filhotes para engoli-lo inteiro. Deste modo, ela obtém uma refeição farta e nutritiva sem ter tido o trabalho de apanhar um peixe, e sem deixar o próprio ninho desprotegido.

Mais conhecido é o canibalismo macabro das fêmeas do louva-a-deus. Os louva-a-deus são grandes insetos carnívoros. Normalmente, alimentam-se de insetos menores, como as moscas, mas atacam praticamente tudo o que se move. Na época do acasalamento, o macho se arrasta com cautela na direção da fêmea, monta sobre ela e copula. Se tiver a oportunidade, a fêmea o come, começando por lhe arrancar a cabeça, quando o macho estiver se aproximando, logo que ele tiver montado nela, ou ainda depois que tiverem se separado. Para nós, pareceria mais sensato que ela esperasse a cópula se completar antes de começar a devorá-lo. Porém, a perda da cabeça não parece privar o restante do corpo do seu cadenciado movimento sexual. Na realidade, uma vez que a cabeça do inseto é a sede de alguns centros nervosos inibitórios, é possível que a fêmea melhore o desempenho sexual do macho ao lhe devorar a cabeça. Se assim for, isso seria um ganho secundário. O benefício primário é a boa refeição que ela obtém.

A palavra "egoísta" pode parecer demasiado branda para se aplicar a casos tão extremos como o canibalismo, muito embora estes se ajustem muito bem à nossa definição. Talvez possamos sentir uma empatia mais direta com o conhecido comportamento covarde dos pingüins-imperadores na Antártida. Observou-se que eles permaneciam de pé à beira d'água, hesitantes antes de mergulhar, em virtude do perigo de serem devorados pelas focas. Bastava que um deles mergulhasse para que os demais soubessem se ali havia ou não uma foca. Mas, naturalmente, nenhum queria servir de cobaia, de modo que todos ficavam esperando e, às vezes, chegavam mesmo a tentar empurrar-se uns aos outros para dentro d'água.

Mais habitualmente, o comportamento egoísta pode consistir apenas na recusa em partilhar um recurso valioso, tal como o alimento, o território ou os parceiros sexuais. Vejamos agora alguns exemplos de comportamentos aparentemente altruístas.

A picada das abelhas-operárias é um comportamento defensivo muito eficiente contra os ladrões de mel. Mas as abelhas que picam são lutadores camicase. No ato da picada, os órgãos vitais são normalmente arrancados do seu corpo, e o inseto morre pouco depois. Pode ser que a sua missão suicida tenha posto a salvo o estoque vital de alimento da colônia, no entanto ela própria já não estará presente para tirar proveito disso. De acordo com nossa definição, este é um comportamento altruísta. O leitor deve lembrar-se de que não estamos nos referindo a motivações conscientes, as quais podem ou não estar presentes, tanto aqui como nos exemplos de comportamento egoísta, porém isso é irrelevante para a nossa definição.

Dar a própria vida pelos amigos é decerto um gesto altruísta, do mesmo modo como correr riscos pelo bem deles. Muitos passarinhos, ao ver aproximar-se um predador voador, tal como um falcão, disparam gritos de "alarme" característicos, diante dos quais o bando inteiro toma as medidas de evasão apropriadas. Existe evidência indireta de que o pássaro que emite o grito se coloca em maior perigo, uma vez que atrai para si a atenção do predador. Trata-se apenas de um pequeno risco adicional, mas, ainda assim, pelo menos à primeira vista, ele parece qualificar-se como um ato altruísta, de acordo com a nossa definição.

Os atos de altruísmo animal mais comuns e mais reconhecíveis são realizados pelos pais, especialmente as mães, em relação aos seus filhotes. Eles podem incubá-los, em ninhos ou no interior dos próprios corpos, alimentá-los, com enormes custos para si mesmos, e correr grandes riscos para protegê-los dos predadores. Para citar um só exemplo, muitas aves que fazem ninhos no chão executam a chamada "manobra de distração" quando um predador, como uma raposa, por exemplo, se aproxima. A ave, que pode ser o pai ou a mãe, caminha coxeando para fora do ninho, deixando pender uma asa como se ela estivesse quebrada. O predador, ao perceber a presa fácil, é atraído para longe do ninho em que os filhotes se encontram. Por fim, a ave abandona a sua simulação e se lança no ar, exatamente a tempo de escapar dos dentes da raposa. É muito provável que consiga assim salvar a vida dos seus filhotes, mas o faz expondo-se, ela própria, a um risco.

Não é minha intenção defender uma posição por intermédio dessas histórias. Exemplos escolhidos nunca constituem evidência séria para qualquer generalização válida. As histórias acima nada mais são do que ilustrações daquilo que entendo por comportamento altruísta e por comportamento egoísta, no nível dos indivíduos. (...) é necessário que eu comente uma explicação particularmente errônea do altruísmo, uma vez que ela é bastante conhecida e até mesmo amplamente ensinada nas escolas.

Tal explicação baseia-se na falsa noção, já mencionada, de que os seres vivos evoluem para fazer coisas "pelo bem da espécie" ou "pelo bem do grupo". É fácil ver como essa idéia se originou, na biologia. Grande parte da vida de um animal é dedicada à reprodução, e quase todos os atos de auto-sacrifício altruísta observados na natureza são realizados pelos pais em relação aos seus descendentes. A "perpetuação da espécie" é um eufemismo comum de reprodução e é, sem dúvida, uma conseqüência dela. Não é preciso mais do que uma ligeira distorção da lógica para deduzirmos que a "função" da reprodução é "servir" à perpetuação da espécie. A partir daí, é suficiente uma pequena escorregadela para que se conclua que os animais, em geral, se comportarão de forma a favorecer a perpetuação da espécie. O altruísmo em relação aos demais membros da espécie parece converter-se, assim, numa conseqüência natural.

Esta linha de pensamento pode ser formulada em vagos termos darwinianos. A evolução opera por meio da seleção natural e seleção natural significa a sobrevivência diferencial dos "mais aptos". Mas estamos falando dos indivíduos mais aptos, das raças mais aptas, das espécies mais aptas ou do quê? Para certos propósitos, isso não é de muita importância, contudo, quando se trata de altruísmo, a diferenciação é crucial. Se são as espécies que competem naquilo que Darwin chamou de luta pela existência, o indivíduo deveria ser considerado um peão no jogo, a ser sacrificado quando o interesse maior da espécie como um todo assim exigir. Para dizer de uma forma ligeiramente mais respeitável, um grupo, tal como uma espécie ou uma população dentro de uma espécie, cujos membros individuais estão prontos a se sacrificar pelo bem-estar do grupo, corre menos risco de extinção do que um grupo rival cujos membros colocam os próprios interesses egoístas em primeiro lugar. Assim, o mundo torna-se povoado principalmente por grupos constituídos por indivíduos capazes de auto-sacrifício. Essa é a teoria da "seleção de grupo", tida como verdadeira durante muito tempo por biólogos pouco familiarizados com os pormenores da teoria da evolução. Apresentada num famoso livro de V. C. Wynne-Edwards, ela foi popularizada por Robert Ardrey em The social contract. A alternativa ortodoxa costuma ser chamada de "seleção individual", embora, pessoalmente, eu prefira falar em "seleção do gene".
*Richard Dawkins

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