sábado, 22 de agosto de 2009

Literatura Portuguesa: Cantigas de Amor (considerações)

Quer'eu em maneira de proençal
fazer agora un cantar d'amor,
e querrei muit'i loar mia senhor
a que prez nen fremusura non fal,
nen bondade; e mais vos direi en:
tanto a fez Deus comprida de ben
que mais que todas las do mundo val.


Ca mia senhor quiso Deus fazer tal,
quando a faz, que a fez sabedor
de todo ben e de mui gran valor,
e con todo est'é mui comunal
ali u deve; er deu-lhi bon sen,
e des i non lhi fez pouco de ben,
quando non quis que lh'outra foss'igual.


Ca en mia senhor nunca Deus pôs mal,
mais pôs i prez e beldad'e loor
e falar mui ben, e riir melhor
que outra molher; des i é leal
muit', e por esto non sei oj'eu quen
possa compridamente no seu ben
falar, ca non á, tra-lo seu ben, al.

*El-Rei D. Dinis

1. Sabido é como todos os que se têm ocupado da nossa antiga poesia desdenham mais ou menos das cantigas-d'amor porque as consideram a parte mais convencional, menos portuguesa, do lirismo trovadoresco. A graça e a frescura da cantiga-d'amigo são culpadas nisso. E é assim que D. Carolina Michaëlis, no prefácio do Glossário do Cancioneiro da Ajuda, pôde dizer, em 1922, esta coisa lamentável: que guardara inédito esse Glossário durante dezoito anos, devido à indiferença com que o texto fora acolhido! Essa opinião, estribada principalmente num vicioso conceito estético, que não mede as distâncias, e na incompreensão das delicadezas do texto, é falsa, como quase tudo o que considera apenas a superfície. Não que as cantigas-d'amor constituam uma série de obras-primas, como o não é de resto a cansó provencal, cujo modelo seguem de longe. Mas há nelas alto nível poético. Quanto ao convencionalismo, já dissemos que é isso um elemento indispensável, obrigado em toda a escola. Clássica, romântica, realista, simbolista, todas têm as suas normas, o seu sistema de formas, o seu convencionalismo, enfim, pela razão bem simples de que todas têm os seus programas; e para a execução dum programa é necessário um método. (...) E um dos primeiros problemas a tratar, entrevisto lucidamente por D. Carolina Michaëlis, em 1897, é o de averiguar as razões que levaram os nossos trovadores àquela "propositada indiferença pela riqueza e variedade do pensamento, e tendência predilecta para a repetição e monotonia"; pois não é de acreditar que os nossos trovadores fossem menos dotados que os de outros países, depois do que dissemos acerca do banho lustral da cultura francesa, que a quase todas directa ou indirectamente atingiu. De resto, já em 1894 Lang acentuava que o paralelismo se não podia explicar por falta de individualidade ou de diligência artística, e que possivelmente a sua origem se reduziria a uma questão de forma (Das Liederbuch des Königs Denis von Portugal, XLVII). O carácter repetitivo do nosso lirismo explica-se por razões de ordem psicológica e artística. Em primeiro lugar, a nossa poesia amorosa é mais do coração que a poesia provençal. Nesta, como vimos, a inteligência e a imaginação suprem muitas vezes a falta de emoção. Por Isso, a poesia se alonga, num recreio dos sentidos, através de seis e sete estrofes e mais ainda. O trovador compraz-se no jogo da sua fantasia, sente-se a divisória entre o artista e o homem. A nossa cantiga-d'amor dá-nos uma impressão diferente e de maior verdade psicológica. (...) A emoção não se pulveriza em cintilações de forma artística; sempre uno, o turbilhão emocional permanece até ao fim substancialmente o mesmo, com uma ou outra modificação levíssima de forma. Isto dá à cantiga-d'amor um cunho de obsessão de monotonia pungente, que resultaria fastidiosa se fosse desenrolada em mais de três ou quatro estrofes. Talvez por isso mesmo os trovadores limitassem a este número a repartição estrófica das cantigas. Para exprimir esta devoradora monotonia do nosso sentimentalismo os trovadores tinham já na cantiga tradicional dois elementos que habilmente utilizaram o paralelismo e o refrão, que se completam um ao outro. Se o paralelismo exige que, pelo menos no início, as estrofes se assemelhem, o refrão que é muitas vezes um verdadeiro mote e a alma da cantiga, determina necessariamente um mesmo teor para os versos que o precedem. Por outras palavras: devendo todos os versos da estrofe confluir no refrão, e sendo este, naturalmente, o mesmo ara cada estrofe, é Inevitável a repetição da ideia, com ligeiras variantes da forma. O amor, entre nós, é uma súplica apaixonantemente triste. E não há nada que exprima tão bem esse carácter de prece do que a tautologia, a repetição necessária do apelo para alcançar um dom, que não chega mais. Por isso o nosso lirismo é por vezes um documentário precioso de poesia pura tudo se exala num suspiro, numa queixa, numa efusão exclamativa.

Rodrigues Lapa,
Lições de Literatura Portuguesa, Época Medieval

2.
Não há dúvida de que as cantigas de amor devem a forma e os temas à arte provençal, mas também se torna evidente que a imitação é imperfeita. Têm construção menos laboriosa, menos subtileza de pensamento e menos técnica na retórica. Cotejar as cantigas de amor com as canções amorosas de Rernart de Ventadour, de Guiraut de Borneil ou de Guiraut Riquier é notar sensivelmente diferenças quase tão impressionantes como as semelhanças. As poesias galego-portuguesas dão impressão de monotonia com a repetição dum número limitado de conceitos simples, expressos em número comparativamente pequeno de versos-tipo. Poder-se-ia tentar explicar este fenómeno, quer por relativo atraso da cultura peninsular, quer por se supor que os poetas da Península imitaram modelos arcaicos franco-provençais. Quanto à suposição, não é fácil acreditar que escritor tão importante como Afonso X não pudesse acompanhar o progresso da técnica provençal, especialmente quando consideramos os elogios que lhe fizeram alguns trovadores que o visitaram. Afonso II e Pedro II de Aragão, Afonso VIII e Afonso X de Castela sobressaíram como os mais ardentes patronos da Gaia Ciência, competindo com os poetas pelas vantagens da sua situação elevada e de igual cultura, e pela possibilidade de trocarem versos com os seus visitantes, segundo todas as subtilezas das convenções provençais. Pelo que diz respeito à técnica, menos desenvolvida do que a arte perfeita das poesias líricas dos trovadores anualmente existentes, onde é que a encontramos? Para além da técnica que empregaram, temos apenas um pequeno punhado de velhas chansons à refrain francesas, que são até bastante diferentes da maneira das cantigas de amor. Se, pois, não podemos atribuir a simplicidade das canções corteses galego-portuguesas à ignorância ou à inexperiência dos poetas nem à imitação de alguma técnica mais antiga, hoje desaparecida, vemo-nos forçados a concluir que a divergência dos dois estilos é deliberada. A poderosa atracção de qualquer outro ideal sentiu-se até quando o novo ideal era exaltado. Os poetas corteses aceitam em princípio as leis da Gaia Ciência, mas põem-nas em execução parcial e intermitentemente, porque não querem sacrificar certos outros recursos e prazeres poéticos. Apresentando as coisas como elas são a maneira estrangeira, embora revestida de todo o seu possível prestígio, tinha de conquistar terreno já ocupado pela poesia nativa, só triunfando após haver leito concessões. As cantigas de amor são, em consequência, poesias de inspiração provençal, profundamente modificadas pelas cantigas de amigo. Por outro lado, as cantigas de amigo, tal como se nos apresentam nos antigos Cancioneiros, estão parcial ou profundamente provençalizadas. A maior parte delas, pelos temas e pelo estilo, não se distinguem das cantigas de amor, excepto pelo acidente a que se atribuem, embora cossantes, tal como agora os lemos, são obras de poetas corteses e usam algumas das convenções provençais. Não há poeta de inspiração mais popular do que João Zorro, autor das inimitáveis barcarolas e bailadas; mas as barcarolas de Zorro referem-se a expedições reais, sendo a dama a que alude uma senhor, dona d'algo ou dona virgo, e o seu amado membro do séquito do rei. A sua bailada «Bailemos agora, por Deus, ai velidas» usa um modelo de estrofes também conhecido de Guilhem IX. Martim Códax, o esquisito cantor das ondas de Vigo, é amigo dum rei (del-rei amigo). Martim de Ginzo dirige-se à sua dama à maneira cortesã chamando-lhe a do mui bon parecer, e emprega o termo semitécnico de lezer no mesmo sentido que Peire d'Alvernhe. Pêro Meogo canta primorosamante os cervos do monte, mas fá-lo apenas como incidente duma caçada real. Não quero dar mais exemplos dum facto bem conhecido citando os compositores de encantadores cossantes que desempenharam altos cargos na Corte, tais como o almirante Pai Gomes Charinho ou o rei D. Dinis. Basta concluir que, sob as mais elementares condições poéticas recolhidas nos Cancioneiros, os estilos indígena e estrangeiro se encontram em luta e se fazem mutuamente concessões.

Aubrey Bell et alii, Da Poesia Medieval Portuguesa, 1985

3.
As cantigas de amor são poesias ao sabor provençal, em que quem fala é o apaixonado, que consagra à sua dona um amor platónico, sem esperança. Não se trata. por isso, de um amor adúltero. O poeta confia o seu destino ao bom senso da senhora perante a qual se apresenta numa atitude submissa. Queixa-se da sua sorte por ela não acreditar nele, afirma que sofre por vê-la e por não vê-la, considera-a a mais formosa de quantas mulheres existem, promete servi-la e honrá-la como o mais humilde servo, louva-a por ser a mais ajuizada de todas, diviniza-a como mensageira e protectora,... São, entretanto, cantigas artificiais em que o poeta raras vezes sente o amor que diz ter. Trata-se pois, geralmente, dum amor fingido «que é mais produto da inteligência e da imaginação do que propriamente da sensibilidade».

Alexandre Costa, Questões sobre a História da Literatura Portuguesa, Edições Asa, 1985.
*Espero que suas dúvidas tenham sido sanadas. Att, Leandro M. de Oliveira

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