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fazer agora un cantar d'amor,
e querrei muit'i loar mia senhor
a que prez nen fremusura non fal,
nen bondade; e mais vos direi en:
tanto a fez Deus comprida de ben
que mais que todas las do mundo val.
Ca mia senhor quiso Deus fazer tal,
quando a faz, que a fez sabedor
de todo ben e de mui gran valor,
e con todo est'é mui comunal
ali u deve; er deu-lhi bon sen,
e des i non lhi fez pouco de ben,
quando non quis que lh'outra foss'igual.
Ca en mia senhor nunca Deus pôs mal,
mais pôs i prez e beldad'e loor
e falar mui ben, e riir melhor
que outra molher; des i é leal
muit', e por esto non sei oj'eu quen
possa compridamente no seu ben
falar, ca non á, tra-lo seu ben, al.
*El-Rei D. Dinis
Rodrigues Lapa, Lições de Literatura Portuguesa, Época Medieval
2. Não há dúvida de que as cantigas de amor devem a forma e os temas à arte provençal, mas também se torna evidente que a imitação é imperfeita. Têm construção menos laboriosa, menos subtileza de pensamento e menos técnica na retórica. Cotejar as cantigas de amor com as canções amorosas de Rernart de Ventadour, de Guiraut de Borneil ou de Guiraut Riquier é notar sensivelmente diferenças quase tão impressionantes como as semelhanças. As poesias galego-portuguesas dão impressão de monotonia com a repetição dum número limitado de conceitos simples, expressos em número comparativamente pequeno de versos-tipo. Poder-se-ia tentar explicar este fenómeno, quer por relativo atraso da cultura peninsular, quer por se supor que os poetas da Península imitaram modelos arcaicos franco-provençais. Quanto à suposição, não é fácil acreditar que escritor tão importante como Afonso X não pudesse acompanhar o progresso da técnica provençal, especialmente quando consideramos os elogios que lhe fizeram alguns trovadores que o visitaram. Afonso II e Pedro II de Aragão, Afonso VIII e Afonso X de Castela sobressaíram como os mais ardentes patronos da Gaia Ciência, competindo com os poetas pelas vantagens da sua situação elevada e de igual cultura, e pela possibilidade de trocarem versos com os seus visitantes, segundo todas as subtilezas das convenções provençais. Pelo que diz respeito à técnica, menos desenvolvida do que a arte perfeita das poesias líricas dos trovadores anualmente existentes, onde é que a encontramos? Para além da técnica que empregaram, temos apenas um pequeno punhado de velhas chansons à refrain francesas, que são até bastante diferentes da maneira das cantigas de amor. Se, pois, não podemos atribuir a simplicidade das canções corteses galego-portuguesas à ignorância ou à inexperiência dos poetas nem à imitação de alguma técnica mais antiga, hoje desaparecida, vemo-nos forçados a concluir que a divergência dos dois estilos é deliberada. A poderosa atracção de qualquer outro ideal sentiu-se até quando o novo ideal era exaltado. Os poetas corteses aceitam em princípio as leis da Gaia Ciência, mas põem-nas em execução parcial e intermitentemente, porque não querem sacrificar certos outros recursos e prazeres poéticos. Apresentando as coisas como elas são a maneira estrangeira, embora revestida de todo o seu possível prestígio, tinha de conquistar terreno já ocupado pela poesia nativa, só triunfando após haver leito concessões. As cantigas de amor são, em consequência, poesias de inspiração provençal, profundamente modificadas pelas cantigas de amigo. Por outro lado, as cantigas de amigo, tal como se nos apresentam nos antigos Cancioneiros, estão parcial ou profundamente provençalizadas. A maior parte delas, pelos temas e pelo estilo, não se distinguem das cantigas de amor, excepto pelo acidente a que se atribuem, embora cossantes, tal como agora os lemos, são obras de poetas corteses e usam algumas das convenções provençais. Não há poeta de inspiração mais popular do que João Zorro, autor das inimitáveis barcarolas e bailadas; mas as barcarolas de Zorro referem-se a expedições reais, sendo a dama a que alude uma senhor, dona d'algo ou dona virgo, e o seu amado membro do séquito do rei. A sua bailada «Bailemos agora, por Deus, ai velidas» usa um modelo de estrofes também conhecido de Guilhem IX. Martim Códax, o esquisito cantor das ondas de Vigo, é amigo dum rei (del-rei amigo). Martim de Ginzo dirige-se à sua dama à maneira cortesã chamando-lhe a do mui bon parecer, e emprega o termo semitécnico de lezer no mesmo sentido que Peire d'Alvernhe. Pêro Meogo canta primorosamante os cervos do monte, mas fá-lo apenas como incidente duma caçada real. Não quero dar mais exemplos dum facto bem conhecido citando os compositores de encantadores cossantes que desempenharam altos cargos na Corte, tais como o almirante Pai Gomes Charinho ou o rei D. Dinis. Basta concluir que, sob as mais elementares condições poéticas recolhidas nos Cancioneiros, os estilos indígena e estrangeiro se encontram em luta e se fazem mutuamente concessões.
Aubrey Bell et alii, Da Poesia Medieval Portuguesa, 1985
3. As cantigas de amor são poesias ao sabor provençal, em que quem fala é o apaixonado, que consagra à sua dona um amor platónico, sem esperança. Não se trata. por isso, de um amor adúltero. O poeta confia o seu destino ao bom senso da senhora perante a qual se apresenta numa atitude submissa. Queixa-se da sua sorte por ela não acreditar nele, afirma que sofre por vê-la e por não vê-la, considera-a a mais formosa de quantas mulheres existem, promete servi-la e honrá-la como o mais humilde servo, louva-a por ser a mais ajuizada de todas, diviniza-a como mensageira e protectora,... São, entretanto, cantigas artificiais em que o poeta raras vezes sente o amor que diz ter. Trata-se pois, geralmente, dum amor fingido «que é mais produto da inteligência e da imaginação do que propriamente da sensibilidade».
Alexandre Costa, Questões sobre a História da Literatura Portuguesa, Edições Asa, 1985.
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