segunda-feira, 31 de agosto de 2009

À maneira provençal

Carmen castelã domina
estas torres de palavras
que eu construo como quem
junta limalhas de ferro
fazendo da língua imã


amor vendado de ouro
com dedos de purpurina
traça no ar o desenho
de som de sentido e sina


carmen castelã domina
estas torres de linguagem
imagem de mãe e filha
rosto de amante e menina
senhal miragem poesia


e o tempo de chá e Proust
se dissolve qual neblina
volta a manhã volta a noite
o escuro se faz matina


e é tudo como se fosse
a mesma matéria-prima
de vida revisitada
de instante que não termina:
carmen castelã domina

o tempo reprimavera
na trama da luz mais fina
neste castelo de ar
carmen castelã domina
feto de ser e de tempo
que o imã da língua junta
qual limalha de platina


amor vendado e vidente
aos pés do castelo assina
seu mistério e grava o nome
com selo de turmalina


diz camões que o amador
na coisa amada se ultima
horácio diz: carpe diem
curte o tempo: flor que fina


mas aqui o tempo tira
da garganta a mão mofina
s’insempra – Dante diria
se enamora: repristina


amor dessela o mistério
que tem seu nome por cima:

“amor mais forte que a morte”
diz a pedra turmalina

neste castelo de torres
carmen castelã domina
*Haroldo de Campos
**Montagem superior por Thay

domingo, 30 de agosto de 2009

A esquerda e a direita tem raízes comuns?

Os comunistas odeiam utopias. Não foi à toa que Engels se insurgiu contra elas. As utopias são do campo da esperança e os comunistas gostam do campo do conhecimento. As utopias são feitas por aquilo que os filósofos modernos, desde Hobbes e Descartes, temem: a imaginação. Contra o Renascimento, os modernos abominaram a imaginação e a substituíram pelo entendimento iluminador que, depois, se transformou em iluminista. Antes conhecer do que imaginar. Antes propor o caminho reto do que criar utopias. Os marxistas se fizeram herdeiros aferrados dessa tradição iluminista, praticamente cientificista.

As utopias, como o próprio nome diz, não estão em lugar algum no campo do existente. Não são pensadas para serem realizadas. As melhores utopias são apenas propostas negativas, de denúncia da sociedade existente. Rousseau com o seu Emílio irritou Durkheim exatamente porque, como o sociólogo dizia, e com razão, era algo irrealizável. Diferente de Durkheim, Marx estava preparado para conviver com as utopias, mas os marxistas nunca as engoliram, pois, como frutos de uma árvore demasiadamente enraizada no século XIX, eles cultuaram o cientificismo, herdeiro do iluminismo estreito. Ao contrário da ciência, o cientificismo odeia a imaginação. Assim, uma boa parte do pensamento de esquerda, ainda hoje, apegado ao cientificismo do século XIX, não tolera quando se lida com a imaginação. Nisso, este tipo de esquerda se aproxima do pensamento da direita.

*Paulo Ghiraldelli Jr.

O que é um filósofo?

O que é um filósofo? Quase todos os mais escolarizados sabem o que é. Todavia, quando a pergunta é dirigida a alguém que estudou filosofia ou que fez o curso de graduação em filosofia ou que é reconhecidamente um filósofo, nem sempre aquele que pergunta obtém uma resposta satisfatória. Não raro, os que estão na empresa da filosofia complicam demais a resposta. Como todo e qualquer campo do saber, quem está nele sabe que detém algum poder – isso nos foi ensinado por Bacon, de um modo, e por Foucault, de outro. Alguns acreditam, então, que se respondem às perguntas que lhe fazem de um modo complicado, podem exercer o poder de maneira ampliada. Afinal, tudo que é misterioso, mesmo no mundo moderno, o mundo que Weber qualificou de desencantado, parece guardar mais poder que aquilo que é exposto claramente.

É claro que, como Aristóteles notou e praticou, pode-se falar de filosofia em diversos níveis e para diversos públicos segundo discursos diferentes. Mas, enfim, isso é desse modo para qualquer assunto. O que não é impossível de fazer é não conseguir explicar, para alguém com alguma escolarização, o que é ser filósofo, e isso de modo claro, objetivo e até mesmo simples. Aliás, quem não expõe de modo claro o que pensa, não pensa bem – não sabe corretamente o que acredita que sabe.

O filósofo ocidental é aquele tipo de intelectual que está inserido na conversação inaugurada pelos pré-socráticos e, enfim, colocada de um modo durável por Platão. Trata-se da conversa que, depois de Aristóteles, chamamos de metafísica. Metafísica e alguma coisa que começamos a saber o que é quando a comparamos com a física.

A física fala do mundo, das coisas materiais. Sua função, ao menos no início das cosmologias, era o de procurar um princípio (um arkhé, em grego), dado por um elemento material (água, terra, ar e fogo – para os gregos antigos), cujo funcionamento e conduta, uma vez mostrados, diria como todo o mundo se faz e se organiza. A meta-física, como o próprio nome já diz, não se prende ao que é físico, vai além da física (ou aquém, dependendo do ponto de vista), e quer encontrar princípios que regem o mundo em algo não material. Está embutida na metafísica a idéia de que há a aparência e há a realidade essencial de tudo, e que, em geral, tomamos a aparência pelo real e, então, vivemos na ilusão. Assim, o irmos para além da física, ao entrarmos na metafísica, podemos desvendar os mecanismos pelos quais cometemos esse erro, o que nos faz cair na ilusão e não enxergar o real. Eis aí o trabalho da filosofia. Eis aí o que faz um filósofo, em um sentido bem amplo: ele é aquele que acredita que há uma ilusão – um especial tipo de ilusão – que dá um trança-pés na maioria das pessoas, os não-filósofos, e que ele, o filósofo, pode contar a tais pessoas como a estrutura do cosmos coloca a perna na frente de todos, armando o trança-pés. Antes que simplesmente expor o que é o real, o filósofo seria aquele capaz de mostrar o mecanismo pelo qual o real não estaria sendo captado pelo chamado senso comum.

É claro que há filósofos que dizem que toda essa conversa de metafísica é bobagem. São essas pessoas, que se dizem antimetafísicos, também filósofos? Na maioria dos casos, sim! Denunciar as ilusões da filosofia ou da metafísica, pela via cética ou pela via de pensamentos deflacionários – ou descritivos, como os de Donald Davidson – não coloca tais pessoas como quem não sabe o que diz a metafísica, mas, antes, como experts da conversação que veio desde os pré-socráticos e Platão – filósofos, então.

Cada filósofo autêntico é um ingênuo e, não raro, um presunçoso. Ele acredita – e tem de acreditar – que pode dar fim à filosofia, pois vai desvendar de uma vez o mecanismo que estaria dando o trança-pés em todos, ou seja, a armação do cosmos ou do mundo que faz com que o chamado senso comum tome o que é a mera aparência pelo real. Ao mesmo tempo, cada filósofo autêntico é um presunçoso, pois ele continua essa investigação mesmo olhando para trás e vendo que os que investigaram antes a questão não eram tolos – eram grandes filósofos.

Assim, em termos gerais, há dois tipos de filósofos: o metafísico e o deflacionário. Um, infla a filosofia com metafísica, o outro tenta fazer uma descrição do mundo racional, mas de um modo descritivo, querendo mostrar que não é necessário usar da dualidade central da metafísica – aparência e realidade – para tecer uma boa descrição do mundo, da nossa atividade no mundo e tudo o mais.

Esses segundos filósofos poderiam ser os cientistas? Não! Por uma razão simples: ainda que esses filósofos possam evocar algum tipo de empirismo ou pragmatismo, ou mesmo algum tipo de ceticismo, eles não fazem investigação a partir de experimentos e experiências, como os cientistas. Quando falam em experiências, estas são imaginárias, não são possíveis de serem efetivamente feitas em laboratório. São filósofos, sim, pois tentam fazer uma exposição geral do mundo a partir de uma descrição racional, ainda que digam que a exposição racional do mundo que estão fornecendo ou que poderiam oferecer tenha dispensado a presença do célebre trança-pés.

Particularmente, como filósofo, eu sou daqueles que ama ler os colegas metafísicos, embora me sinta mais companheiro dos deflacionários. Amo Platão, é certo, mas fui amigo, mesmo, de Rorty.

Ao longo dos anos em que fui me filiando à empresa da filosofia, procurei criar minha própria definição do que seria a filosofia, e do que eu mesmo seria nisso tudo. Cheguei então à formulação atual: o filósofo é um desbanalizador do banal. O filósofo não busca o que está “por trás”, mas é aquele que fica estupefato com o mais banal, o que está sob a visão e observação de todos. Não é que ele esteja vendo mais que outros, ou de modo mais profundo, ele apenas é capaz de redescrever o que vê (ou que escuta ou que lê) de modo que aquilo que ficou banal se desbanaliza e ganha ou recupera fama, prestígio, adquire ou readquire capacidade de não ser mais banal.

É claro que bons escritores, diretores de cinema, artistas de teatro etc. podem desbanalizar o banal. Mas, o banal do qual eu falo é o banal desbanalizado a partir da conversação e da linguagem da filosofia. Encaixa-se perfeitamente na tradição dos assuntos que se colocaram, de uma maneira ou de outra, na agenda da filosofia ocidental ou que poderiam ter sido colocados. Por isso, não raro, a minha redescrição é sempre a partir de uma já boa redescrição. Não à toa a filosofia, como eu a prático, é uma forma de conversação sobre a cultura. Nessa linha, tento manter a articulação entre filosofia teórica e prática, como os filósofos gregos fizeram, negando o que atualmente a maioria dos professores de filosofia da universidade fazem – eles falam de filosofia e, no entanto, não vivem filosoficamente. O que os guia na vida são os interesses mundanos, são levados pela vida e não conseguem eles próprios levar a vida. Não são filósofos, de modo algum.

Uma boa definição de filosofia é aquela que não serve apenas para explicar o que o filósofo que a formulou faz. Ela tem de se encaixar como boa explicação da atividade de todos os outros filósofos do passado. Eles, os filósofos do passado, explicaram suas atividades de outro modo, é claro. No entanto, se voltassem à vida e lessem a minha definição de filosofia, seriam capazes de dizer: “é, isso não foge tanto do que eu mesmo fiz”. Isso deve valer, inclusive, para os não deflacionários. A definição tem de ser específica, para caracterizar o que é o filósofo, e ao mesmo tempo ampla, de modo a trazer para o seu interior até os metafísicos – contra os quais podemos, ora ou outra, nos colocar.

Ora, minha definição obedece a esses critérios? Isso é uma das coisas que tenho posto à prova, a cada dia, a cada iniciativa minha na vida filosófica que levo. Sempre convido o meu leitor ou ouvinte a participar dessa aventura comigo. Pois, filosofia é algo da conversação pública, da investigação coletiva. Nenhum filósofo imaginou filosofar sozinho. O filósofo que pensa fazer isso, não percebeu ainda que não é filósofo.

*Paulo Ghiraldelli Jr.

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

1 Ano de Paranóia

Hoje nosso blog completa 1 ANO! Recentemente fui chamado de formador de opinião num e-mail que recebi, fiquei um pouco incomodado com isso pensando que talvez minhas responsabilidades houvessem se multiplicado derepente mas, por outro lado, num país onde pessoas como Luciana Gimenez (entres outros asnos falantes) são formadores de opinião e o programa do Jô é a coisa mais cult que a maioria ousa, não creio que a tarefa seja tão árdua assim. De toda forma fico feliz em saber que chegamos a algum lugar, e muito embora compreenda que essa humilde página nunca será suficiente a sanar com a indigência intelectual de nossos dias, temos a sensação de que mesmo sendo uma minúscula gota, sem nós o oceano seria ainda menor. Um reconhecimento sem termo à Pititi, Lú, Lidy, Karina e Penélope (In Memorian). E a todos aqueles que acreditaram quando tudo era ainda uma quimera, o meu muito obrigado.

Aos nossos incentivadores; amigos e inimigos, a minha afeição ou o meu desprezo!

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Oswaldo Giacóia e Nietzsche

Os Seguintes vídeos são fragmentos de uma palestra dada pelo filósofo Oswaldo Giacóia para um especial de televisão. Ele faz suas leituras das idéias de Nietzsche e esplana acerca de conceitos basilares de sua obra, como as diferenças entre niilismos ativo e passivo, homem superior e além do homem e por fim a morte de Deus.



O dois lados

Quem supõe que ...o ser superior, em qualquer coisa como circunstâncias iguais, não é mais feliz que o inferior -confunde as duas idéias muito diferentes de felicidade e contentamento. É indiscutível que um ser cujas capacidades de deleite são baixas tem maior probabilidade de tê-las inteiramente satisfeitas, e que um ser altamente dotado sentirá sempre que qualquer felicidade que pode esperar, tal como o mundo é constituído, é imperfeita. Mas pode aprender a suportar as suas imperfeições, se de todo forem suportáveis, e elas não o farão invejar o ser que na verdade não tem consciência das imperfeições, mas só porque não sente de maneira nenhuma o bem que essas imperfeições qualificam. É melhor ser um ser humano insatisfeito do que um porco satisfeito. E se o idiota ou o porco têm uma opinião diferente é porque só conhecem o seu próprio lado da questão. A outra parte da comparação conhece ambos os lados.
*Jonh Stuart Mill

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

À caça da origem: Fragmento primeiro

E se tudo que te disseram até agora fosse só uma forma mais refinada de te manter escravo? O mundo é um lugar escuro e sozinho, vence nele o menos dependente e o mais agressivo, pensar o contrário é trair a natureza humana. O ideal cristão de caridade e temperança, não é mais que uma derrota auto-consentida do homem e um conjunto de sandices de padres. O vencedor, o ser além, deve estar alheio, deve se deixar indiferente ao mercado de indulgências que se vende a si mesmo. Até hoje tentamos (sociedade) o amor, ou pelo menos a idéia que nos introjetaram dele, e assim fracassamos em tudo. As pessoas são infelizes porque foram pudorizadas pelo inconsciente coletivo e se prostam envergonhadas ante a esfinge social, não conseguem expressar o cinismo e a revolta que teêm para com seu próximo, e a chuva caiu e ninguém se molhou... Todos querem justificar a sua vida miserável com o amor, por que não tentar o ódio? Em vez de amor, desprezo ao próximo, talvez seja essa a última instância de elevação da alma humana. A estrada mais caudalosa e a opção mais resignada. É conturbado, é duro mas, a única forma possível. Lembrai aquele homem livre que primeiro emergiu da caverna¹ ele era o único a conseguir enxergar o mundo em suas cores verdadeiras, ainda assim os ressentidos, os humilhados de si mesmo o abominaram por querer libertar-lhes de sua fustigante auto-piedade.
*Leandro M. de Oliveira
**1 – Ver Platão in a República, alegoria da caverna.

Caballero Solo

Los jóvenes homosexuales y las muchachas amorosas,
y las largas viudas que sufren el delirante insomnio,

y las jóvenes señoras preñadas hace treinta horas,

y los roncos gatos que cruzan mi jardín en tinieblas,

como un collar de palpitantes ostras sexuales

rodean mi residencia solitaria,

como enemigos establecidos contra mi alma,

como conspiradores en traje de dormitorio

que cambiaran largos besos espesos por consigna.

El radiante verano conduce a los enamorados
en uniformes regimientos melancólicos,
hechos de gordas y flacas y alegres y tristes parejas:
bajo los elegantes cocoteros, junto al océano y la luna,
hay una continua vida de pantalones y polleras,
un rumor de medias de seda acariciadas,
y senos femeninos que brillan como ojos.

El pequeño empleado, después de mucho,
después del tedio semanal, y las novelas leídas de noche en cama,
ha definitivamente seducido a su vecina,
y la lleva a los miserables cinematógrafos
donde los héroes son potros o príncipes apasionados,
y acaricia sus piernas llenas de dulce vello
con sus ardientes y húmedas manos que huelen a cigarrillo.

Los atardeceres del seductor y las noches de los esposos
se unen como dos sábanas sepultándome,
y las horas después del almuerzo en que los jóvenes estudiantes
y las jóvenes estudiantes, y los sacerdotes se masturban,
y los animales fornican directamente,
y las abejas huelen a sangre, y las moscas zumban coléricas,
y los primos juegan extrañamente con sus primas,
y los médicos miran con furia al marido de la joven paciente,
y las horas de la mañana en que el profesor, como por descuido,
cumple con su deber conyugal y desayuna,
y más aún, los adúlteros, que se aman con verdadero amor
sobre los lechos altos y largos como embarcaciones:
seguramente, eternamente me rodea
este gran bosque respiratorio y enredado
con grandes flores como bocas y dentaduras
y negras raíces en forma de uñas y zapatos.

*Pablo Neruda

sábado, 22 de agosto de 2009

Literatura Portuguesa: Cantigas de Amor (considerações)

Quer'eu em maneira de proençal
fazer agora un cantar d'amor,
e querrei muit'i loar mia senhor
a que prez nen fremusura non fal,
nen bondade; e mais vos direi en:
tanto a fez Deus comprida de ben
que mais que todas las do mundo val.


Ca mia senhor quiso Deus fazer tal,
quando a faz, que a fez sabedor
de todo ben e de mui gran valor,
e con todo est'é mui comunal
ali u deve; er deu-lhi bon sen,
e des i non lhi fez pouco de ben,
quando non quis que lh'outra foss'igual.


Ca en mia senhor nunca Deus pôs mal,
mais pôs i prez e beldad'e loor
e falar mui ben, e riir melhor
que outra molher; des i é leal
muit', e por esto non sei oj'eu quen
possa compridamente no seu ben
falar, ca non á, tra-lo seu ben, al.

*El-Rei D. Dinis

1. Sabido é como todos os que se têm ocupado da nossa antiga poesia desdenham mais ou menos das cantigas-d'amor porque as consideram a parte mais convencional, menos portuguesa, do lirismo trovadoresco. A graça e a frescura da cantiga-d'amigo são culpadas nisso. E é assim que D. Carolina Michaëlis, no prefácio do Glossário do Cancioneiro da Ajuda, pôde dizer, em 1922, esta coisa lamentável: que guardara inédito esse Glossário durante dezoito anos, devido à indiferença com que o texto fora acolhido! Essa opinião, estribada principalmente num vicioso conceito estético, que não mede as distâncias, e na incompreensão das delicadezas do texto, é falsa, como quase tudo o que considera apenas a superfície. Não que as cantigas-d'amor constituam uma série de obras-primas, como o não é de resto a cansó provencal, cujo modelo seguem de longe. Mas há nelas alto nível poético. Quanto ao convencionalismo, já dissemos que é isso um elemento indispensável, obrigado em toda a escola. Clássica, romântica, realista, simbolista, todas têm as suas normas, o seu sistema de formas, o seu convencionalismo, enfim, pela razão bem simples de que todas têm os seus programas; e para a execução dum programa é necessário um método. (...) E um dos primeiros problemas a tratar, entrevisto lucidamente por D. Carolina Michaëlis, em 1897, é o de averiguar as razões que levaram os nossos trovadores àquela "propositada indiferença pela riqueza e variedade do pensamento, e tendência predilecta para a repetição e monotonia"; pois não é de acreditar que os nossos trovadores fossem menos dotados que os de outros países, depois do que dissemos acerca do banho lustral da cultura francesa, que a quase todas directa ou indirectamente atingiu. De resto, já em 1894 Lang acentuava que o paralelismo se não podia explicar por falta de individualidade ou de diligência artística, e que possivelmente a sua origem se reduziria a uma questão de forma (Das Liederbuch des Königs Denis von Portugal, XLVII). O carácter repetitivo do nosso lirismo explica-se por razões de ordem psicológica e artística. Em primeiro lugar, a nossa poesia amorosa é mais do coração que a poesia provençal. Nesta, como vimos, a inteligência e a imaginação suprem muitas vezes a falta de emoção. Por Isso, a poesia se alonga, num recreio dos sentidos, através de seis e sete estrofes e mais ainda. O trovador compraz-se no jogo da sua fantasia, sente-se a divisória entre o artista e o homem. A nossa cantiga-d'amor dá-nos uma impressão diferente e de maior verdade psicológica. (...) A emoção não se pulveriza em cintilações de forma artística; sempre uno, o turbilhão emocional permanece até ao fim substancialmente o mesmo, com uma ou outra modificação levíssima de forma. Isto dá à cantiga-d'amor um cunho de obsessão de monotonia pungente, que resultaria fastidiosa se fosse desenrolada em mais de três ou quatro estrofes. Talvez por isso mesmo os trovadores limitassem a este número a repartição estrófica das cantigas. Para exprimir esta devoradora monotonia do nosso sentimentalismo os trovadores tinham já na cantiga tradicional dois elementos que habilmente utilizaram o paralelismo e o refrão, que se completam um ao outro. Se o paralelismo exige que, pelo menos no início, as estrofes se assemelhem, o refrão que é muitas vezes um verdadeiro mote e a alma da cantiga, determina necessariamente um mesmo teor para os versos que o precedem. Por outras palavras: devendo todos os versos da estrofe confluir no refrão, e sendo este, naturalmente, o mesmo ara cada estrofe, é Inevitável a repetição da ideia, com ligeiras variantes da forma. O amor, entre nós, é uma súplica apaixonantemente triste. E não há nada que exprima tão bem esse carácter de prece do que a tautologia, a repetição necessária do apelo para alcançar um dom, que não chega mais. Por isso o nosso lirismo é por vezes um documentário precioso de poesia pura tudo se exala num suspiro, numa queixa, numa efusão exclamativa.

Rodrigues Lapa,
Lições de Literatura Portuguesa, Época Medieval

2.
Não há dúvida de que as cantigas de amor devem a forma e os temas à arte provençal, mas também se torna evidente que a imitação é imperfeita. Têm construção menos laboriosa, menos subtileza de pensamento e menos técnica na retórica. Cotejar as cantigas de amor com as canções amorosas de Rernart de Ventadour, de Guiraut de Borneil ou de Guiraut Riquier é notar sensivelmente diferenças quase tão impressionantes como as semelhanças. As poesias galego-portuguesas dão impressão de monotonia com a repetição dum número limitado de conceitos simples, expressos em número comparativamente pequeno de versos-tipo. Poder-se-ia tentar explicar este fenómeno, quer por relativo atraso da cultura peninsular, quer por se supor que os poetas da Península imitaram modelos arcaicos franco-provençais. Quanto à suposição, não é fácil acreditar que escritor tão importante como Afonso X não pudesse acompanhar o progresso da técnica provençal, especialmente quando consideramos os elogios que lhe fizeram alguns trovadores que o visitaram. Afonso II e Pedro II de Aragão, Afonso VIII e Afonso X de Castela sobressaíram como os mais ardentes patronos da Gaia Ciência, competindo com os poetas pelas vantagens da sua situação elevada e de igual cultura, e pela possibilidade de trocarem versos com os seus visitantes, segundo todas as subtilezas das convenções provençais. Pelo que diz respeito à técnica, menos desenvolvida do que a arte perfeita das poesias líricas dos trovadores anualmente existentes, onde é que a encontramos? Para além da técnica que empregaram, temos apenas um pequeno punhado de velhas chansons à refrain francesas, que são até bastante diferentes da maneira das cantigas de amor. Se, pois, não podemos atribuir a simplicidade das canções corteses galego-portuguesas à ignorância ou à inexperiência dos poetas nem à imitação de alguma técnica mais antiga, hoje desaparecida, vemo-nos forçados a concluir que a divergência dos dois estilos é deliberada. A poderosa atracção de qualquer outro ideal sentiu-se até quando o novo ideal era exaltado. Os poetas corteses aceitam em princípio as leis da Gaia Ciência, mas põem-nas em execução parcial e intermitentemente, porque não querem sacrificar certos outros recursos e prazeres poéticos. Apresentando as coisas como elas são a maneira estrangeira, embora revestida de todo o seu possível prestígio, tinha de conquistar terreno já ocupado pela poesia nativa, só triunfando após haver leito concessões. As cantigas de amor são, em consequência, poesias de inspiração provençal, profundamente modificadas pelas cantigas de amigo. Por outro lado, as cantigas de amigo, tal como se nos apresentam nos antigos Cancioneiros, estão parcial ou profundamente provençalizadas. A maior parte delas, pelos temas e pelo estilo, não se distinguem das cantigas de amor, excepto pelo acidente a que se atribuem, embora cossantes, tal como agora os lemos, são obras de poetas corteses e usam algumas das convenções provençais. Não há poeta de inspiração mais popular do que João Zorro, autor das inimitáveis barcarolas e bailadas; mas as barcarolas de Zorro referem-se a expedições reais, sendo a dama a que alude uma senhor, dona d'algo ou dona virgo, e o seu amado membro do séquito do rei. A sua bailada «Bailemos agora, por Deus, ai velidas» usa um modelo de estrofes também conhecido de Guilhem IX. Martim Códax, o esquisito cantor das ondas de Vigo, é amigo dum rei (del-rei amigo). Martim de Ginzo dirige-se à sua dama à maneira cortesã chamando-lhe a do mui bon parecer, e emprega o termo semitécnico de lezer no mesmo sentido que Peire d'Alvernhe. Pêro Meogo canta primorosamante os cervos do monte, mas fá-lo apenas como incidente duma caçada real. Não quero dar mais exemplos dum facto bem conhecido citando os compositores de encantadores cossantes que desempenharam altos cargos na Corte, tais como o almirante Pai Gomes Charinho ou o rei D. Dinis. Basta concluir que, sob as mais elementares condições poéticas recolhidas nos Cancioneiros, os estilos indígena e estrangeiro se encontram em luta e se fazem mutuamente concessões.

Aubrey Bell et alii, Da Poesia Medieval Portuguesa, 1985

3.
As cantigas de amor são poesias ao sabor provençal, em que quem fala é o apaixonado, que consagra à sua dona um amor platónico, sem esperança. Não se trata. por isso, de um amor adúltero. O poeta confia o seu destino ao bom senso da senhora perante a qual se apresenta numa atitude submissa. Queixa-se da sua sorte por ela não acreditar nele, afirma que sofre por vê-la e por não vê-la, considera-a a mais formosa de quantas mulheres existem, promete servi-la e honrá-la como o mais humilde servo, louva-a por ser a mais ajuizada de todas, diviniza-a como mensageira e protectora,... São, entretanto, cantigas artificiais em que o poeta raras vezes sente o amor que diz ter. Trata-se pois, geralmente, dum amor fingido «que é mais produto da inteligência e da imaginação do que propriamente da sensibilidade».

Alexandre Costa, Questões sobre a História da Literatura Portuguesa, Edições Asa, 1985.
*Espero que suas dúvidas tenham sido sanadas. Att, Leandro M. de Oliveira

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Darcy Ribeiro

Era uma vez um homem que teve um sonho, ele sonhou que o Brasil poderá ser um dia aquilo que poderia ter sido desde sempre...
Ao saudoso mestre as nossas reverências.

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

É preciso disputar

Algumas pessoas imaginam que a filosofia tem algo a ver com os manuais de boas maneiras da Danuza Leão (jornalista brasileira). Mas não tem. O filósofo polido demais e incapaz de se irritar deveria desconfiar desse seu comportamento, talvez não seja um bom filósofo. Esse é um aviso que vem desde Heráclito, de gênio forte e, como sabemos, filósofo de mão cheia. Por outro lado, desde Sócrates, filósofos incapazes de irritar alguém, de provocar mesmo, corajosamente, nunca foram glorificados como autênticos filósofos. Os filósofos vivem intensamente as suas doutrinas.
As disputas em filosofia são necessárias – e a veemência e o ardor da disputa fazem parte do fato de que as discussões filosóficas não são “meramente sobre idéias”. São de fato e principalmente sobre idéias e discursos que os filósofos possuem como todas as outras pessoas. Quem diz, “eu ataco idéias e não pessoas”, ou está a mentir e é hipócrita, ou não entendeu nada de filosofia. As idéias da filosofia são todas pessoais, pois direta ou indiretamente podem mudar a vida de cada um de nós. Os filósofos são os que sabem disso de modo apropriado, e por isso se exacerbam na defesa e ataque do que podemos contar e argumentar. Wittgenstein chegou a dizer que um filósofo que nunca entrou numa disputa dura pelas suas idéias seria como um boxeur que nunca subiu ao ringue.
Ora, por falar em ringue, foi exatamente para este lugar que Karl Popper e Wittgenstein quase se deslocaram na primeira e única vez que se encontraram, e por poucos minutos. Popper sempre foi um polemista ardente e adorava uma contenda. E, se confiarmos nas observações de Bertrand Russel sobre Wittgenstein, que dizia “vou ver se Deus chegou” ao avisar a esposa que iria buscar seu jovem amigo à estação, o quase-pugilismo (ou esgrima – por conta do “poker”) é perfeitamente compreensível. Isso não os fez menos inteligentes, nem menos razoáveis. Ambos sabiam bem – como também Russell sabia – que filósofos ocidentais são, antes de tudo, ocidentais, não são monges.
Bem, é certo que Nietzsche até achava que todos os filósofos eram da mesma linhagem de Buda e Cristo, mais (dissimuladamente) mansos do que deveriam ser. Mas, o fato é que entre o folclore que restou do encontro, uma das versões diz que a mansidão só imperou porque o anfitrião Bertrand Russell interveio, e assim Wittgenstein e Popper não chegaram a ficar feridos.
As versões sobre o evento são contestadas, sendo que as fãs de ambos os contendores ainda hoje se mobilizam para puxar a brasa para as suas sardinhas. Além disso, essa é uma disputa esquisita, pois ao contrário do que ocorre no desporto, neste caso até surgiram fãs do árbitro. Há os que viram Bertrand Russell no papel de herói do momento que, com sua autoridade, rugiu na sala em favor de Popper, o visitante. Tudo teria ocorrido a partir de um determinado momento da palestra de Popper. Popper estava ali para falar sobre “Os problemas da filosofia”, e estava a enumerá-los. Wittgenstein interveio e de maneira rápida tentou desqualificar todos os problemas, insistindo que eram pseudo-problemas. Wittgenstein gesticulava com uma bengala na mão, que costumava usar, e Popper aproveitou a chance: “Not to threaten visiting lecturers with pokers.” Ainda na versão de Popper, Wittgenstein deitou a bengala ao chão e saiu batendo a porta com força.
Wittgenstein de fato usava tal bengala e, não raro, quando se entusiasmava, gesticulava agressivamente, mas sem intenção de ir adiante, é claro. É certo que a maneira como Popper contou o caso colocou-o em boa posição; era como se tivesse tido presença de espírito e, ao colocar jocosamente Wittgenstein em situação de agressor, desmontou-o. Era a única coisa a fazer, diante da maneira seca de Wittgenstein atuar. Dado que Wittgenstein o desqualificava de modo rápido, sem grandes argumentos, o melhor seria livrar-se dele com um tipo de piada, de brincadeira. Usando um tom grave, Popper teria atraído a atenção de Russell que, conhecendo bem Wittgenstein – e também Popper – preferiu intervir o mais cedo possível.
Os adeptos de Danuza Leão podem ler tudo isso hoje e achar que os filósofos são “mal-educados”. Os medíocres podem achar que os filósofos são como que crianças – seres egocêntricos, imaturos. Os medíocres falam de “disputas de egos” para avaliar o encontro de filósofos, mas não possuem a menor idéia de como um ego filosófico funciona, pois não entendem o material de manuseio do filósofo.
Ambos os filósofos sabiam que o que defendiam era importante – importantíssimo. E de fato ali ocorreu um confronto entre as duas principais maneiras de se compreender a filosofia no mundo contemporâneo. Popper sempre acreditou que podia distinguir ciência de não-ciência de uma maneira filosófica tão rigorosa quanto aos critérios que exigia para que uma teoria fosse ciência. Por sua vez, Wittgenstein acreditava – contra o seu passado – que a filosofia não tinha esse poder, uma vez que seu papel, ao menos até então, havia sido o de criar problemas por causa da sua vocação para a desterritorialização da linguagem (…)

*Paulo Ghiraldelli Jr.

As possibilidades de sentir

De dois prazeres, se houver um ao qual todos ou quase todos aqueles que tiveram a experiência de ambos derem uma preferência decidida, independentemente de sentirem qualquer obrigação moral para preferi-lo, então será esse o prazer mais desejável. Se um dos dois for colocado, por aqueles que estão competentemente familiarizados com ambos, tão acima do outro que eles o preferem mesmo sabendo que é acompanhado de um maior descontentamento, e se não abdicarem dele por qualquer quantidade do outro prazer acessível à sua natureza, então teremos razão para atribuir ao deleite preferido uma superioridade em qualidade que ultrapassa de tal modo a quantidade que esta se torna, por comparação, pouco importante.

Ora, é um fato inquestionável que aqueles que estão igualmente familiarizados com ambos, e que são igualmente capazes de apreciá-los e de se deleitar com eles, dão uma preferência muitíssimo marcada ao modo de existência que emprega as suas faculdades superiores. Poucas criaturas humanas consentiriam ser transformadas em qualquer dos animais inferiores perante a promessa da plena fruição dos prazeres de uma besta, nenhum ser humano inteligente consentiria tornar-se tolo, nenhuma pessoa instruída se tornaria ignorante, nenhuma pessoa de sentimento e consciência se tornaria egoísta e vil, mesmo que a persuadissem de que o tolo, o asno e o velhaco estão mais satisfeitos com a sua sorte do que ela com a sua. (...) Um ser com faculdades superiores precisa de mais para ser feliz, provavelmente é capaz de um sofrimento mais agudo e certamente é-lhe vulnerável em mais aspectos. Mas, apesar destas desvantagens, não pode nunca desejar realmente afundar-se naquilo que se lhe afigura como um nível de existência inferior. (...) Quem supõe que esta preferência implica um sacrifício da felicidade - que, em igualdade de circunstâncias, o ser superior não é mais feliz que o ser inferior - confunde as idéias muito diferentes de felicidade e de contentamento. É indiscutível que um ser cujas capacidades de deleite sejam baixas tem uma probabilidade maior de as satisfazer completamente, e que um ser amplamente dotado sentirá sempre que, da forma como o mundo é constituído, qualquer felicidade que possa procurar é imperfeita.

*John Stuart Mill in Utilitarismo

Entre o voluntário e o intencional

Para explicar a estrutura do comportamento humano, preciso de introduzir um ou dois termos técnicos. A noção nuclear da estrutura do comportamento é a noção de intencionalidade. Dizer que temos intencionalidade significa que esperamos que uma coisa aconteça (temos essa crença), ou pretendemos que uma coisa aconteça, (temos um desejo). Um estado intencional pode ser querer, desejar, esperar ou ter uma intenção. Assim podemos ter o mesmo resultado para diversos estados intencionais: posso querer sair da sala, julgar que irei sair da sala ou tencionar sair da sala.Em cada caso temos o mesmo conteúdo para diferentes modos psicológicos: crença, deseja e intenção, respectivamente.

Por comportamento (...) entendo o comportamento humano voluntário e intencional. Entendo coisas como caminhar, correr, comer, fazer amor, votar nas eleições, casar-se, comprar e vender, ir de férias, trabalhar no emprego. Não entendo coisas como digerir, envelhecer ou ressonar. Mas, mesmo restringindo-nos ao comportamento intencional, as atividades humanas apresentam-nos uma desconcertante variedade de tipos. Precisaremos distinguir entre comportamento individual e comportamento social; entre comportamento social coletivo e comportamento individual dentro de um coletivo social; entre fazer alguma coisa por mor de outra coisa e fazer alguma coisa por mor de si mesma. E, talvez o mais difícil de tudo, precisamos explicar as consequências melódicas do comportamento ao longo da passagem do tempo. As atividades humanas, ao fim e ao cabo, não se assemelham a uma série de instantâneos parados, mas sim ao filme da nossa vida.

*John Searle in Mente , cérebro e Ciência

A Arte como vazão das emoções

Aquele que fabrica a arte, aquele que escreve, não devia nunca esquecer que reforça a coletividade. A sua individualidade não é senão uma forma de coletivo. É preciso que saiba que a sua expressão, como a da linguagem, é sempre, faça o que fizer, uma tentativa com vista à aprovação e não à revolta. E tudo aquilo que ele pensa e diz envolve totalmente a comunidade, a sua comunidade. (…)

O artista engana-se ao querer estar só; são perigosos e ilusórios os prazeres retirados do hermetismo. Podem conduzir à inexpressão, quer dizer à morte. O artista não é um semideus nem um profeta. Não é mesmo forçosamente um homem inteligente. É um emotivo, só isso. Não inventa nada; não cria nada. Não tem gênio. Sabe apenas fazer sínteses. É um bom organizador. Hoje não exigimos mais ao artista que seja artesão. As especializações vêm-nos do tempo em que os dons da expressão nos indivíduos eram desiguais; havia o hábil de mãos, o que falava bem, aquele que tinha boa voz para cantar, ou boas pernas para dançar. Mas a sociedade atual não sente mais a necessidade de perfeição expressiva; está aberta a todas as formas. Cada um tem verdadeiramente uma alma, cada um tem qualquer coisa a dizer. A noção de estilo existe ainda por hábito, mas a verdade da arte, hoje, está na sensibilidade, já não está na técnica. A arte não é possível de outro modo senão pela emoção. O que procuramos, é menos um cálculo exato do mundo do que uma evocação afetiva que o permite entender num plano exterior à realidade.

É isto, um erro? Terá sido este deslizamento do domínio do real para o domínio do emotivo que desviou a arte do seu percurso na direção da consciência? Ou é o começo de um novo caminho na direção de uma consciência verdadeiramente humana, por assim dizer presa na sua própria aventura falível e sem verdade intemporal?

Talvez o movimento na direção da beleza não seja mais que uma espécie de tentativa para alcançar a revelação. Beleza dos objetos que é preciso aprender a ver como são, desprovidos dos seus mistérios e dos seus rituais, reino de tudo o que é igual, não igualmente indiferente, mas igualmente poderoso, igualmente atroz, igualmente suntuoso, reino de tudo o que acontece.

*Jean-Marie Gustave Le Clézio in L'extase matérielle

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Dos grilhões invisíveis: o homem e seus simbolismos

O processo de adestramento do homem enquanto espírito livre se cristaliza nas formas mais difusas, entretanto é inegável a importância de um dos métodos utilizados na milenar arte de agrilhoar o ser em flagelos invisíveis. Na sociedade ocidental herdeira direta dos valores romano-cristãos e em princípio formatada a partir deles, incide de forma capital a idéia advinda do argumento teológico, hoje já um imperativo no arcabouço de crenças da nossa tradição onde o homem se vê projetado na figura do próprio “Deus”, uma vez que foi concebido à sua imagem e semelhança. O aceite dessa condição leva o indivíduo a uma perigosa jornada transnatural, fazendo-o interagir em um mundo alheio ao seu. Em primeira análise poderia isso ser de grande valia, pois o homem mediano, o decadente que habita em nós consegue se aprazer em seu instante particular de meditação onde contempla essa origem divina, mais que isso, essa cristalização do macrocosmo em microcosmo. Todavia, é mister observar que o êxtase proporcionado por esse breve momento é quebrado tão logo se restitui o senso comum, e o homem ou se vê impotente ou se vê em uma espécie de exílio não voluntário, e por esse igualmente oprimido. A idéia de deidificação do homem o faz perder contato com sua essência humana, assim ele permanece estranho a si mesmo, e a fé que deveria edificar uma sociedade justa, um resgate da verdade de ser belo por ser imperfeito, já não se encontra mais disponível, uma vez que fora alienada na busca ininterrupta daquela medida de perfeição a que teríamos direito de acordo essa gênese criacional ofertada a nós pela tradição. O que se pretende dizer com isso, em linhas gerais, é que a perda da identidade humano-temporal para uma identidade humano-atemporal (seguindo-se o raciocínio da busca de uma equivalência entre homem e Deus), afasta o indivíduo do prazer das coisas simples, do sentido de fraternidade e bem coletivo que só pode ser restaurado quando o homem voltar-se integralmente a si mesmo e não mais a metas inalcançáveis de perfeição. Revisitando a visão Grega, nota-se que o indivíduo era a polis e a polis era o indivíduo, e assim confundido com a coletividade o homem se via imediatamente livre e universal, diferente dessa realidade cotidiana onde o ser se coloca individual necessitando deliberadamente de símbolos que justifiquem a sua condição. O fim da cidade Grega representa com efeito, na nossa tradição, o momento de ruptura, o início da tragédia de existir. Esse é o momento onde sociedade, cultura, o eu e o espírito operam-se na criatura humana como peças separadas de um quebra-cabeças, muitas vezes antagônicas e estranhas umas as outras. Talvez por força desse dilema, a humanidade desconstruída venha buscar alento na quimera da perfeição divina e da missão de alcançá-la a qualquer custo. Daí surgem inúmeras manifestações como a criação do mártir e a moral do vencido, tão típicas da decadência desses tempos. Todavia, minha fé reside na crença de que apenas o amor entre homens (concreto) e não só em Deus (abstrato), é o que pode restituir a essência desse perdido sonho trazendo de volta ao âmago humano a perfeição que hoje se vê alienada no “divino”, despertando a consciência adormecida e tirando-nos de uma vez por todas dessa existência medíocre.
*Leandro M. de Oliveira

Felicidade clandestina

Como eu quisesse arrancar sua alma com os dentes, conservando-a desse modo imaculada, antes que violasse o teu sexo como uma tropa em marcha para o campo. Como eu quisesse pensar que tudo me era permitido, mesmo ser augusto ante o horror da vida. Pressenti tuas cores, imaginei teu gesto. E te desejei como se deseja um membro do próprio corpo e te amei como se ama a um cão morto.
*Leandro M. de Oliveira

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Revolução Cubana: 50 anos de resistência e dignidade

Em menção ao aniversário de 83 anos de "El Comandante" abaixo segue um texto publicado no Le Monde (Edição Brasil) da lavra de Tiago Nery, nesse artigo o autor apresenta um balanço sobre os 50 anos de socialismo cubano, suas conquistas, lutas e todo o tipo de coisa que "eles" não querem que nós saibamos...

"Arrancados de séculos de opressão e atraso, os cubanos jamais se resignarão. Como um país pobre pode construir uma sociedade mais justa para todos. Depois de 50 anos da revolução, Cuba tem a mais baixa taxa de mortalidade infantil e um dos maiores pólos culturais da América Latina"

por Tiago Nery

(12/01/2009)

Equilibrando-se entre o realismo e a utopia, a Revolução Cubana está completando 50 anos. Nos primeiros dias de janeiro de 1959, após pouco mais de dois anos de luta guerrilheira, o Exército Rebelde, liderado por Fidel, Raul, Camilo e Guevara, entrava triunfalmente em Havana, iniciando um novo capítulo na história do país. O impacto da Revolução iria transcender em muito seus limites territoriais, repercutindo sobre sucessivas gerações de jovens, trabalhadores e intelectuais de várias partes do mundo, sobretudo da América Latina. Pela primeira vez, a própria idéia de revolução, que soava sempre tão distante para os latino-americanos (a exemplo das revoluções mexicana, russa e chinesa), passava a ser um tema da atualidade.

A polarização da época da Guerra Fria fez com que muitas análises sobre a Revolução Cubana estivessem impregnadas pelo clima daquele período e ignorassem as verdadeiras origens do movimento comandado por Fidel Castro. A revolução de 1959 tem profundas raízes na trajetória histórica nacional, cujos antecedentes remontam ao período da luta pela independência. Cuba foi a última colônia da América Latina a libertar-se da Espanha, em 1898, num processo que se estendeu por um período de 30 anos, em que se sucederam duas guerras de independência. A primeira, conhecida como a “Guerra dos dez anos” (1868-1878), foi liderada pelo advogado e proprietário de terras Carlos Manuel de Céspedes, considerado o “pai da pátria”. A segunda, iniciada em 1895, teve como principal ideólogo o advogado, jornalista e poeta José Martí, principal intelectual cubano e um dos mais importantes do continente, que desencadeou um movimento mobilizando amplos setores populares.
Antes de se tornar socialista, a Revolução Cubana foi um movimento de afirmação da soberania nacional. Já Fidel e Guevara representavam a sublimação do tradicional caudilho latino-americano em líder autenticamente popular

No momento em que a vitória das forças independentistas estava próxima a concretizar-se, o governo dos EUA resolveu entrar no conflito, provocando uma guerra contra a Espanha. Vitoriosos, os norte-americanos reconheceram a independência de Cuba, apesar de imporem, em 1902, uma emenda constitucional (emenda Platt), que permitia aos Estados Unidos exercerem o direito de intervenção no sentido de “preservar a independência cubana”. Com isso, Cuba tornava-se, na realidade, um protetorado dos EUA.

A atuação norte-americana frustrou as expectativas de liberdade e soberania que alimentaram o movimento desde o início. A desilusão com o desfecho serviria como elemento crucial para a formação de uma singular consciência nacionalista, que passaria a reivindicar uma terceira guerra emancipatória - contra o imperialismo estadunidense. Dessa forma, o processo revolucionário que derrubou a ditadura de Fulgencio Batista retomaria a trajetória dos movimentos independentistas do século 19, vinculando a libertação nacional e social aos desafios da Guerra Fria (Ayerbe, 2004).

O movimento revolucionário de 1959, iniciado em 1953, com a criação do Movimento 26 de Julho, guarda profundas conexões com aquele liderado por Martí algumas décadas antes. Em A história me absolverá, histórica autodefesa de Fidel Castro por ocasião de sua prisão, após a frustrada tentativa de tomar o quartel de Moncada, o futuro líder da revolução afirmou: “Impediram que chegassem às minhas mãos os livros de Martí. Parece que a censura da prisão os considerou demasiado subversivos. Ou será porque considerei Martí o autor intelectual do 26 de Julho?” (Castro, 1979, p. 22). Percebe-se, dessa forma, que antes de se tornar socialista, a Revolução Cubana foi um movimento de afirmação da soberania nacional. A guerra revolucionária não recebeu nenhuma ajuda da então URSS, assim como o Partido Socialista Popular (comunista), que inicialmente rejeitara as ações armadas e havia condenado o assalto ao Moncada, só apoiaria a guerrilha em sua fase final.

Comentando sobre a originalidade do processo cubano, o crítico literário Antonio Candido (1992) afirmou que líderes como Fidel e Guevara representavam uma formação política singular e aparentemente impossível: a sublimação do tradicional caudilho latino-americano em líder autenticamente popular. Dessa maneira, assim como em Cuba o caudilho potencial transformou-se em líder responsável, comprometido com o socialismo, a tradição radical, vinda de pensadores como José Martí, permitiria que o marxismo se ajustasse à realidade do país.
as experiências socialistas do século 20 foram obrigadas a dividir seus esforços entre a sobrevivência em relação aos inimigos externos e a construção de uma sociedade que se pretendia mais justa e avançada

A queda do Muro de Berlim e o fim da URSS só viriam confirmar que Cuba não era um satélite soviético. Por acreditar que, sem o apoio do bloco socialista, a queda do regime cubano seria apenas uma questão de tempo, o governo dos EUA endureceu o bloqueio econômico nos anos 1990, por meio de medidas extraterritoriais como a emenda Torricelli e a lei Helms-Burton. De acordo com o direito internacional, o embargo unilateral é considerado uma medida ilegal. Recentemente, a Assembléia Geral das Nações Unidas aprovou, pela 17ª vez consecutiva, uma resolução que condena os EUA pelo bloqueio imposto a Cuba há 47 anos. Dos 192 países que pertencem à ONU, 185 condenaram o embargo estadunidense.

Mesmo com o recrudescimento das sanções, o governo cubano conseguiu não apenas manter mas também melhorar algumas das principais conquistas sociais da revolução. No âmbito da saúde, Cuba atingiu recentemente a mais baixa taxa de mortalidade infantil da sua história: 5,3 em cada mil nascidos vivos. Trata-se da segunda menor taxa das Américas, ao lado do Canadá. Na área cultural, a Casa das Américas, fundada por Haydée Santamaría, continua sendo um importante centro de difusão da literatura latino-americana. Igual importância tem o festival internacional de cinema de Havana, que acaba de realizar sua 30ª edição.

Além dos avanços, a Revolução Cubana também apresenta contradições e problemas. Por exemplo, muitos questionam o regime de partido único, o monopólio da imprensa estatal e as restrições a algumas liberdades individuais. Ademais, nos últimos anos, em virtude das reformas econômicas introduzidas com o colapso do campo socialista, a sociedade cubana passou a experimentar um nível de desigualdade ao qual não estava acostumada.

No entanto, entre as principais fragilidades das críticas endereçadas a Cuba, ressalta-se a ausência de perspectiva histórica, que ignora os contextos e os desafios que influenciaram as escolhas dos dirigentes cubanos, sempre condicionadas pela ação dos sucessivos governos norte-americanos. Além disso, deve-se observar que as experiências socialistas do século 20 foram obrigadas a dividir seus esforços entre a sobrevivência em relação aos inimigos externos e a construção de uma sociedade que se pretendia mais justa e avançada. No caso de Cuba, a pressão do exterior tem sido incessante ao longo dos últimos 50 anos. Segundo o historiador Luis Fernando Ayerbe, “nenhum sistema pode desenvolver suas potencialidades vivendo em clima de permanente conflito, que é justamente o mais favorável ao fortalecimento das tendências autoritárias existentes” (Ayerbe, 2004, p.119).

Com seus erros e acertos, a Revolução Cubana mostrou a muitos povos que um país pobre pode construir uma sociedade mais justa para todos. Trata-se de uma ilha, arrancada de séculos de opressão e atraso, que se ergueu para construir uma nova história, a que lhe foi negada. Darcy Ribeiro afirmou certa vez que, na América Latina, só havia dois destinos: ser resignado ou ser indignado. Os cubanos jamais se resignarão.


Referências Bibliográficas:

AYERBE, Luis Fernando. A Revolução Cubana. São Paulo: Editora UNESP, 2004. (Coleção Revoluções do século XX)

CANDIDO, Antonio. “Cuba e o socialismo” In: SADER, Emir (Org.) Por que Cuba?. Rio de Janeiro: Revan, 1992.

CASTRO, Fidel. A história me absolverá. 3ª ed. São Paulo: Alfa - Omega, 1979.


*Gracias Fidel, hasta la victoria siempre!