quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Mundo Tupinambá

A idéia de uma filial terrena do Éden bíblico, onde ninguém precisaria de ler leis escritas para ser feliz para sempre existia muito antes de 1500 (1502 era a data da carta de Américo Vespúcio ao banqueiro Lourenço de Medici em 1502, relatando a descoberta na baia de Guanabara, de um grupo de índios, os Tupinambás. Esta carta segundo teses citadas pelo autor serviria de inspiração à obra de Thomas More Utopia)O problema era que não se sabia onde ficava esse Éden e quais eram as horas de visita. Mas, com as grandes navegações, vieram os descobrimentos e os primeiros contatos com as populações dos trópicos. Finalmente se tinha um Éden para mostrar, melhor ainda que o do Gênesis - e, pelo que se depreendeu do relato de Vespúcio, ele ficava no Rio. Por quê?

Porque, aqui, em meio da natureza mais exuberante que se pudesse imaginar, vivia um povo doce e inocente, sem noção de governo, moeda, bens materiais ou propriedade privada, desprovido de cobiça, inveja e egoísmo, e alheio a qualquer noção de "bem" e de "mal". Sem culpa também, porque, no perene verão da Guanabara, os homens, mulheres, crianças e velhos circulavam nus dia e noite, sem que isso levantasse sobrolhos entre eles. E, ao contrário do que se poderia pensar, não se tratava de feras com o corpo coberto de pêlos e um terceiro olho na testa, mas de uma gente simpática, de grande beleza física e com uma saúde de fazer inveja a qualquer europeu. O "homem natural", filho direto de Adão, existia de verdade, e que isto servisse de lição para o homem europeu, subitamente esmagado pelo surgimento das grandes potências, pela emergência do capitalismo e pelo individualismo que começava a grassar - eis o recado da Utopia de sir Thomas More.
Tudo isso era confirmado pelos piratas franceses, normandos e bretões que começaram a aportar na Guanabara em 1504, apenas dois anos depois de Vespúcio, e que voltavam para contar a história. Diziam eles que, ao se aproximar do Rio, assim que as suas naus despontavam na barra, eram cercados pelas canoas dos tupinambás e recebidos com tratamento VIP. Os indígenas subiam a bordo, faziam-lhes festinhas, ofereciam-lhes frutas e presentes e ainda lhes entregavam as mulheres. (...)

Surpreendentemente, uma outra especialidade dos Tupinambás, observada pelos visitantes, não conseguiu diminuir sua cotação em sociedade: o canibalismo. Talvez porque o seu hábito de comer carne humana fosse movido apenas por vingança (nada a ver com escassez de alimento na praça) e obedecesse a rígidas regras de etiqueta. Primeiro só comiam os seus prisioneiros de guerra e, mesmo assim, só os fortes e corajosos - de preferência os temiminós, uma tribo com quem mantinham uma guerra quase esportiva havia quinhentos anos. Segundo, nada era feito às pressas: o prisioneiro tinha uma série de direitos e deveres antes de morrer.
*Ruy Castro

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Confusões do fim

"Óbito do Autor"

Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo. Moisés, que também contou a sua morte, não a pôs no intróito, mas no cabo; diferença radical entre este livro e o Pentateuco.
Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta feira do mês de agosto de 1869, na minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e prósperos, era solteiro, possuía cerca de trezentos contos e fui acompanhado ao cemitério por onze amigos. Onze amigos!

(...)

"O delírio"

Pobre minuto! exclamou. Para que queres tu mais alguns instantes de vida! Para devorar e seres devorado depois! Não estás farto do espetáculo e da luta? Conheces de sobejo tudo o que eu te deparei menos torpe ou menos aflitivo: o alvor do dia, a melancolia da tarde, a quietação da noite, os aspectos da terra, o sono, enfim, o maior benefício das minhas mãos. Que mais queres tu, sublime idiota?
Viver somente, não te peço mais nada. Quem me pôs no coração este amor da vida, se não tu? e, se eu amo a vida, por que te hás de golpear a ti mesma, matando me?
Porque já não preciso de ti. Não importa ao tempo o minuto que passa, mas o minuto que vem. O minuto que vem é forte, jocundo, supõe trazer em si a eternidade, e traz a morte, e perece como o outro, mas o tempo subsiste. Egoísmo, dizes tu? Sim, egoísmo, não tenho outra lei. Egoísmo, conservação. A onça mata o novilho porque o raciocínio da onça é que ela deve viver, e se o novilho é tenro tanto melhor: eis o estatuto universal. Sobe e olha.
Isto dizendo, arrebatou me ao alto de uma montanha. Inclinei os olhos a uma das vertentes, e contemplei, durante um tempo largo, ao longe, através de um nevoeiro, uma coisa única. Imagina tu, leitor, uma redução dos séculos, e um desfilar de todos eles, as raças todas, todas as paixões, o tumulto dos impérios, a guerra dos apetites e dos ódios, a destruição recíproca dos seres e das coisas. Tal era o espetáculo, acerbo e curioso espetáculo. A história do homem e da terra tinha assim uma intensidade que lhe não podiam dar nem a imaginação nem a ciência, porque a ciência é mais lenta e a imaginação mais vaga, enquanto que o que eu ali via era a condensação viva de todos os tempos. Para descrevê la seria preciso fixar o relâmpago. Os séculos desfilavam num turbilhão, e, não obstante, porque os olhos do delírio são outros, eu via tudo o que passava diante de mim, flagelos e delícias, desde essa coisa que se chama glória até essa outra que se chama miséria, e via o amor multiplicando a miséria, e via a miséria agravando a debilidade. Aí vinham a cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba, e a enxada e a pena, úmidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancolia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, até destruí lo, como um farrapo. Eram as formas várias de um mal, que ora mordia a víscera, ora mordia o pensamento, e passeava eternamente as suas vestes de arlequim, em derredor da espécie humana. A dor cedia alguma vez, mas cedia à indiferença, que era um sono sem sonhos, ou ao prazer, que era uma dor bastarda. Então o homem, flagelado e rebelde, corria diante da fatalidade das coisas, atrás de uma figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalpável, outro de improvável, outro de invisível, cosidos todos a ponto precário, com a agulha da imaginação; e essa figura, nada menos que a quimera da felicidade, ou lhe fugia perpetuamente, ou deixava se apanhar pela fralda, e o homem a cingia ao peito, e então ela ria, como um escárnio, e sumia se, como uma ilusão.
*Machado de Assis

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Moral como decadência; Institucionalismo como vingança dos fracos

(...) Não há absolutamente atos “desinteressados”. Os atos nos quais o indivíduo se torna infiel aos seus próprios instintos e escolhe em seu detrimento, são sinais de decadência (uma quantidade de “santos” os mais célebres estão decididos em ser decadentes, simplesmente devido a sua falta de “egoísmo”—). Os atos de amor, de “heroísmo” são de tal forma pouco “altruístas”, que são precisamente a prova dum “ego” vigoroso e abundante: os “pobres” não são livres para abandonar algo de si mesmos... estão privados também da grande intrepidez, da alegria da aventura que participa do “heroísmo”. Não é sacrificar-se que é o “fim”, mas desabrochar fins onde as conseqüências não nos inquietam, devido a confiança que temos em nós mesmos, fins que vos são indiferentes...

Psicologia dos atos que chamamos não-egoístas. — Na realidade são regulados estritamente conforme o instinto de conservação. É o caso contrário para atos que chamamos egoístas: ali o instinto diretor falta precisamente, — a consciência profunda do que é útil e prejudicial. Toda força, toda saúde, toda vitalidade, pelo fato de que aumentam a tensão, visam o instinto soberano do eu. Todo afrouxamento é decadência.

Segundo sua origem, a moral é a soma das condições de existência de uma espécie de homens pobre e malnascida. Esta pode ser o “grande número”: daí seu perigo. Nas suas aplicações é o principal meio do parasitismo dos sacerdotes, em sua luta contra os fortes, contra as afirmações da vida. — Os sacerdotes ganham o “grande número” (os humildes, os que sofrem, em todas as classes — as vítimas de toda espécie —. Uma espécie de insurreição geral contra o pequeno número dos seres bem-nascidos... (— crítica dos “reformadores”—). Em suas conseqüências, chega a falsear radicalmente, a aniquilar até as camadas de exceção. Estas terminam, para apenas poderem se sustentar em não serem verídicas, em nenhum ponto, quanto a si mesmas — a completa corrupção psicológica com o que daí se segue... (Crítica dos homens “bons”—).
*Nietzsche

É encargo da arte criar uma realidade paralela?

Que, para o artista, o talento máximo seja imitar a realidade até se confundir com ela é, no entanto, um lugar comum do juízo estético que, mesmo entre nós até a época recente, prevaleceu durante muito tempo. Para glorificarem os seus pintores, os gregos reuniam pequenas histórias: uvas pintadas que os pássaros vinham debicar, imagens de cavalos que os seus congêneres pensavam estar vivos, cortina pintada que um rival pedia ao autor que levantasse para poder contemplar o quadro dissimulado por detrás. A lenda atribui a Giotto e a Rembrant este mesmo tipo de proeza. Sobre os seus pintores famosos, a China e o Japão contam histórias muito semelhantes: cavalos pintados que, à noite, deixam o quadro para irem pastar, dragão partindo a voar pelos ares quando o artista acrescenta o último pormenor que faltava.

Quando os índios das pradarias da América do Norte viram, pela primeira vez, um pintor branco a trabalhar, ficaram confusos. Catlin tinha retratado um deles de perfil; um outro índio que não simpatizava com o modelo, gritou que o quadro provava que aquele era apenas uma metade de homem. Seguiu-se uma desordem mortal.

É a imitação do real que Diderot começa por admirar em Chardin: "Este vaso é de porcelana, estas azeitonas ficam de fato separadas do olhar pela água em que nadam (...) estes biscoitos é só agarrá-los e comê-los."

(...)

A sabedoria das nações atesta que Pascal levanta um verdadeiro problema ao exclamar: "Que vaidade a da pintura, que suscita a admiração pela semelhança com coisas cujos originais não são admirados." O romantismo para quem a Arte não imita a Natureza mas, exprime o que o artista põe de si próprio nos quadros, não escapa ao problema; o mesmo acontecendo à crítica contemporânea que faz do quadro um sistema de signos. Pois o trompe - l'oil¹ exerceu, e continua a exercer, o seu império sobre a pintura. Refaz o visível quando pensamos que ela se libertou definitivamente dele.
*Claude Lévi - Strauss
**1 Trompe-l'oeil é uma técnica artística que, com truques de perspectiva, cria uma ilusão óptica que mostre objetos ou formas que não existem realmente. Provém de uma expressão em língua francesa que significa engana o olho e é usada principalmente em pintura ou arquitetura.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

A ALEGRIA E O TRÁGICO EM NIETZSCHE

Roberto Machado é o convidado da série "Café Filosófico" e nessa oportunidade apresenta a construção do trágico no pensamento de Nietzsche. Uma aula de muito bom conteúdo acerca das formas poéticas de obtenção do sublime pela consciência do ser enquanto objeto decadente. Aconselho a tdos...







*Leandro M. de Oliveira

Indelicadeza igual a decadência?

Assim, entre a quantidade de grandes virtudes do gênero Bem, Belo, Verdadeiro, Justo, procuraremos em vão uma minúscula virtude capaz de produzir efeitos magníficos. O BEM, sim, mas como? De que modo? Dissertar com ídolos maiúsculos afasta-nos da realidade que é, no entanto, o terreno de toda a intersubjetividade ética. (...)

A delicadeza fornece a voz de acesso às realizações morais. Pequena porta de um grande castelo, ela conduz diretamente ao outro. Que diz? Afirma diante do outro que o vimos. Logo, que ele é. Segurar uma porta, praticar o ritual das fórmulas, perpetuar a lógica das boas maneiras, saber agradecer, acolher, dar, contribuir para uma alegria necessária na comunidade minimal - dois - eis como fazer ética. Criar a moral, encarnar os valores. O saber viver como saber ser.

A civilidade, a gentileza, a doçura, a cortesia, a urbanidade, o tato, a boa-vontade, a reserva, a complacência, a generosidade, o dom, a despesa, a atenção, tantas variações sobre o tema da moral hedonista. O cálculo hedonista supõe, assim como o cálculo mental, uma prática regular precisamente para gerar a velocidade necessária. Quanto menos praticarmos a gentileza, mais ela se torna difícil de concretizar. Inversamente, quanto mais a ativamos, melhor ela funciona. O hábito supõe o adestramento neurológico. Fora do campo ético, não encontramos senão um campo etológico. A indelicadeza caracteriza a selvageria. As civilizações mais pobres, mais sombrias, mais modestas, dispõem de regras de delicadeza. Só as civilizações divididas, em risco de desaparecer, submetidas por outras mais fortes, praticam a indelicadeza em larga escala (...)
*Michel Onfray

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Santa Claus is a "Bad Guy"

Que o natal é outra maldita invenção do comércio, qualquer pessoa com o mínimo de senso crítico pode constatar. E como sinceramente ha muito tempo me cansei de dialogar com a esquizofrenia capitalista, sem mais discussões, aí vai nosso singelo protesto com a música do "Garotos Podres" que tem aquela letrinha infame sobre essa personagem a meus olhos tão suspeita.

*Leandro M. de Oliveira

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Senhora Liberdade

Senhora Liberdade, curta metragem dirigido por Caco Souza e rodado em 2004, baseia-se na história de William da Silva Lima um dos idealizadores do atualmente denominado Comando Vermelho, movimento gerado no Instituto Penal Cândido Mendes em Ilha Grande (RJ) no final dos anos 1970. Memória viva dos primórdios do Comando Vermelho, William é o único sobrevivente desse período de formação do movimento criminoso mais articulado da história recente do país. Quando foi feita a entrevista que aparece no filme, William estava cumprindo 36 anos de pena no presídio Ary Franco, seu testemunho sobre a gênese da concepção de uma causa social para a atuação criminosa é de fundamental importância para a compreensão do contexto de violência urbana que nesses dias vem assolando as grandes cidades do Brasil. Ele relembra a convivência com os presos políticos (intelectualizados) da ditadura militar e as contribuições desse para a formatação da ideologia do grupo, que originalmente, diga-se de passagem, era focada em fazer uma espécie de justiça aos excluídos, levando até os marginalizados do sistema as coisas que o estado não era capaz. Isso tem reflexos claros na orientação atual das relações criminais do país. No estatuto do PCC por exemplo, ha uma menção direta da ligação ou influência exercida pelos ideais do Comando Vermelho, ele diz:
"Em coligação com o CV, iremos revolucionar o país de dentro das prisões e o nosso braço armado será o terror "dos poderosos" opressores e tiranos que usam o "anexo de Taubaté" e o Bangu 1 no Rio de Janeiro como instrumento de vingança da sociedade na fabricação de monstros".
Além disso o estatuto do PCC difunde várias das idéias centrais que nortearam a fundação do Comando Vermelho, como a proibição da prática de estupro, assalto e extorsão dentro das cadeias (cujo desrespeito é punido com a morte) e a formação de um caixa para financiar o grupo nas prisões e suas famílias do lado de fora.
Vale a pena assistir o depoimento desse sobrevivente.


quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Sócrates contra a demagogia retórica

"É incrível como as histórias se repetem. Às vezes fico questionando sobre os líderes de nosso tempo, o quão mau intencionados são e foram, as técnicas de alienação, a forma como bajulam as massas, com suas mentiras e suas indulgências pré-fabricadas. As eternas promessas, pra sempre irrealizáveis... Mas, a verdade é que a demagogia não é um fenômeno da era moderna, nas linhas que seguem, retiradas de um texto platônico escrito ha 2.400 anos, começo a compreender que o homem esta para a dominação assim como dezembro tem estado para as chuvas. Em se tratando de história humana, desde eras remotas, talvez o impulso capital nas ações dos de nossa espécie seja mesmo a vontade de poder."

Sócrates -Vou expressar-me com mais clareza. Depois que concordamos, eu e tu, que há algo bom e também algo agradável, e que o agradável é diferente do bem, e que para a aquisição de cada um deles há uma espécie de exercício e de preparação: de uma parte a caça ao agradável, de outra, ao bem... Mas, a esse respeito, declara primeiro se estás ou não de acordo comigo. Estás?


Cálicles — Estou.

Sócrates — Então prossigamos, e começa por declarar-me se o que eu disse há pouco a estes aqui, te parece acertado, o que lhes disse foi que para mim a culinária não é arte, porém simples rotina, o que não se dá com a medicina, que é arte, firmado em que ela só trata da doença depois de estudar a sua natureza e conhecer a maneira por que atua, e no fato de poder apresentar a razão de ser de tudo isso, a medicina, enquanto a outra, que só visa o prazer, procede sem arte na prossecução de sua finalidade, e não examina nem a natureza do prazer nem a sua causa, procede pois de maneira inteiramente irracional, por assim dizer, e sem calcular coisa alguma, só alcançando pela prática e pela rotina uma noção vaga do que é costume fazer-se, com o que, precisamente, proporciona prazer. Inicialmente, desafio-te a considerar se há fundamento no que eu disse e se não existirão processos idênticos com relação à alma, alguns, de fato, baseados em arte e preocupados em promover os mais elevados interesses da alma, outros negligenciando de todo esses interesses e só cuidando, como no caso anterior,do prazer da alma e de que modo possa ser alcançado, mas sem distinguir entre os prazeres bons e os maus, com o que não se preocupam no mínimo, pois têm em vista apenas a produção do prazer, pouco importando se é para o bem ou para o mal. A meu ver, Cálicles, existem esses processos, que não sei definir a não ser como adulação, tanto em relação ao corpo como à alma, ou onde quer que sejam empregados com vistas à produção do prazer, sem considerarem se é em proveito ou detrimento próprio. A este respeito, como te comportas? Estás de acordo com esta maneira de pensar ou rejeita-a?

Cálicles — Não, não rejeito; pelo contrário: concordo, não só para ser agradável a Górgias, como para que chegues ao fim de tua demonstração.

Sócrates — E isto é válido só para uma alma, não o sendo para duas ou para muitas?

Cálicles — Não; vale também para duas e para muitas.

Sócrates — Sendo assim, é possível o desejo de agradar a um grande número de almas,
sem saber dos seus verdadeiros interesses? E agora, poderás dizer-me quais são as ocupações que produzem esse efeito?

(...)

Sócrates — Muito bem. E com relação à retórica que se dirige ao povo ateniense e ao de outras cidades de homens livres, que diremos que seja? És de parecer que os oradores falam sempre com a finalidade precípua do maior bem e que só têm em mira, com seus discursos, deixar virtuosos, quanto possível, os cidadãos? Ou, pelo contrário, só desejam agradar aos cidadãos e descuidam, no interesse próprio, dos interesses da comunidade, além de tratarem as multidões como a crianças, por só pensarem em lhes ser agradável, sem se preocuparem, no mínimo, se desse modo eles virão a ficar melhores ou piores?

Cálicles — Essa pergunta não é simples. Há oradores que dizem o que dizem no interesse dos cidadãos, e há outros como acabaste de descrever.

Sócrates — Isso basta-me. Se há, portanto, duas maneiras de falar ao povo, uma delas é adulação e oratória da pior espécie; a outra é algo belo, porque se preocupa com deixar boa quanto possível a alma dos cidadãos, esforçando-se para dizer o que é melhor, quer agrade quer não agrade ao auditório. Porém nunca viste oratória dessa espécie; e se já encontraste algum orador com semelhantes características, por que não declaraste quem ele seja?

Cálicles — Não, por Zeus! Não conheço nenhum orador nessas condições, pelo menos entre os modernos.

(...)
*Platão, Górgias 380 a.c.

domingo, 6 de dezembro de 2009

A literatura e o fim de tudo

A reflexão sobre a cultura está conspicuamente a tomar a forma de uma necrofilia. Esta já tem uma tradição centenária, se pensarmos que a primeira morte foi anunciada há um século quando Zarathustra anunciou então a morte de Deus e nos anunciou a visão do homem do futuro, o super-homem para além do bem e do mal, o qual representa uma transcendência ao mesmo tempo do humano e do divino.

A segunda morte teve lugar já no neste século [XX], após a Segunda Guerra Mundial, ao ser anunciada a morte do homem e, eo ipso, a inexequibilidade do projecto do super-homem. Estas duas mortes estão entre si relacionadas, uma vez que a morte de Deus foi causada pela ciência e a morte do homem foi causada por um produto da ciência, a máquina. Assim, enquanto a ciência levou à eliminação da percepção mágica do mundo, a máquina eliminou o comportamento mágico do homem e transformou-o num autómato.

Somos contemporâneos da terceira morte, a morte da Literatura, tal como ela é anunciada no ensaio de Hans Magnus Enzensberger com o depressivo título Mediocridade e Loucura. Os algozes da Literatura não são uma entidade abstracta, como a ciência, ou um objecto material, como máquina, eles são antes os consumidores dos meios de comunicação de massas, para os quais Hans Magnus Enzensberger adopta a designação hierárquica de «analfabetos secundários». Estes distinguem-se dos analfabetos primários sobretudo pelo facto de, além de saberem ler e escrever (com erros), estarem limitados a imitar a linguagem dos meios de comunicação de massas.

Assim, enquanto a contradição entre a magia e a ciência dá origem à morte de Deus, e a contradição entre a alma e a máquina dá origem à morte do homem, agora a contradição entre a linguagem da imaginação e a dos meios de comunicação de massas dá origem à morte da Literatura.

Mas a morte da Literatura não pode ser exclusivamente imputada aos analfabetos secundários, e a injustiça desta imputação torna-se mais óbvia se considerarmos os géneros literários tradicionais.

O fim da poesia épica tem de ser atribuído a causas alheias à cultura da audiência a quem o poeta épico se dirige. O sentido do poema épico consiste essencialmente em apoiar a configuração de uma concepção de Estado, já realizada ou a realizar. Mas como os fins que os Estados actualmente propõem aos seus súbditos não podem ser sublimados, porque são manifestamente imorais ou porque são simplesmente mercenários, a degradação da figura do Estado arrasta consigo a obsolescência da poesia épica.

A morte da poesia trágica é também independente da incultura das massas. Ao contrário, é um produto da cultura que está na origem do desaparecimento do género trágico. Este produto da cultura é a doutrina ética conhecida pelo nome de «voluntarismo», uma doutrina segundo a qual a vontade precede e determina a acção. Mas é óbvio que num mundo onde eu só faço aquilo que quero, deixo também de ter qualquer experiência trágica.

Enfim, no que diz respeito à poesia lírica, os temas do sujeito lírico e da sua união com a natureza são inconciliáveis com a catástrofe ecológica. Para o poeta lírico, o mundo não só deixou de ser mágico como se tornou repugnante: os rios, as florestas e a lua já o são, em breve seguem-se os planetas do sistema solar e o espaço cósmico em geral.

É preciso tornar cristalinamente óbvio em que é que consiste a minha diferença em relação às teses de Enzensberger. Sem dúvida que a constituição de uma plebe audiovisual, com um número sempre crescente de participantes, torna a Poesia impossível, uma vez que deixa de haver interlocutor para a asserção poética. Simplesmente a plebe audiovisual, que representa a negação da cultura, está paradoxalmente associada com alguns produtos da cultura, os quais também podem ser vistos como a causa eficiente da morte da Literatura.

Deixando agora de lado os factores de carácter político e económico que estão na origem da decadência da poesia épica e da poesia lírica, voltemo-nos uma vez mais para os factores endógenos da cultura. Além do voluntarismo, a que já aludi acima como responsável pela obsolescência da tragédia, a doutrina de estética literária conhecida pelo nome de «funcionalismo» produz efeitos em tudo idênticos aos do analfabetismo secundário.

Para o escritor funcionalista, o fim da obra literária é a comunicação de uma ideia. E tal como numa comunicação telefónica a forma está subordinada à informação a transmitir, assim também na obra de arte literária a forma é função da mensagem. Nestas circunstâncias, o valor de uma obra de arte literária é o valor da ideia nela representada. Enquanto para Auerbach a narrativa do Novo Testamento é responsável pela queda da doutrina clássica dos estilos, em virtude de uma mesma pessoa ser ao mesmo tempo uma reencarnação do sublime e do vulgar, agora estamos perante uma doutrina para a qual o estilo e a forma deixam de ser o fim da obra de arte literária.

Não é assim de surpreender que ao funcionalismo se viesse juntar aquela forma de cepticismo estético que é representada pelo relativismo, o ponto de vista da estética literária segundo o qual tudo tem igualmente o mesmo valor: não há fronteiras entre o literário e o não-literário, e é indiferente se se lê uma crónica da Bolsa ou uma página de Proust. Mas evidentemente se tudo é igual a tudo, então também não vale a pena dizer nada, e é esta genuinamente a morte da Literatura.

A consequência prática desta doutrina é a abolição da diferença entre o escritor e o analfabeto secundário, caminhando ambos para uma legitimação recíproca e sem conflitos. Os escritores legitimam a plebe audiovisual escrevendo sem estilo e sem forma, sem exigências para consigo ou para com o seu público, o qual, por sua vez, legitima o escritor não fazendo perguntas, porque nem autor nem leitor sabem o que é o ramo de Eneias, o que é que Ariana faz na ilha de Naxos.

Entretanto, cem anos de perplexidade chegaram para mostrar que Deus não morreu, uma vez que a todo o momento os deuses ressuscitam. A segunda prognose também ainda não se realizou e, embora pendurado à beira de um abismo, o homem ainda não morreu. Ambos, Deus e o homem, são uma criação da Literatura, do Logos, que é o princípio por meio do qual as coisas passam a ser. Assim a morte da Literatura é o Apocalipse.
*M. S. Lourenço