I
Levei-te a minha casa mas nenhum
de nós dois foi capaz de me encontrar
tu por ser já talvez um pouco tarde
eu pelos anacronismos do costume
Por isso amada se apesar de tudo
nem sempre fomos só iguais a nada
teremos de arranjar novo teatro
onde a verdade logre melhor lume
mais capaz de a si próprio se tornar
esse instante de cada instante único
em que o instante ou só passa ou a passagem
mais que só consumir-se nos consuma
pois nem o tempo pode outro lugar
que não nos falte ou exceda onde nos une
II
Que sabes tu do inferno de onde estou
a telefonar-te agora? Mas também
como haverias tu de o saber se nem
eu sei já onde estou nem bem quem sou?
Porquê tentar de resto que o soubesses
em vez de te falar dessa promessa
nisso mostrando já melhor cabeça
que seria qualquer sítio onde estivesses
por acaso e eu chegasse por acaso
e depois sucedesse que em me vendo
quisesses cavalgar o tanto atraso
de quanto até então eu fora sendo?
E o rio cuja agonia ao fundo estancas
singraria as tuas mãos nas minhas ancas
*Miguel Serras Pereira
quinta-feira, 20 de janeiro de 2011
Os Desinteressados
Durante milênios o mundo foi semelhante a essas pinturas italianas da Renascença onde, sobre as lajes frias, são torturados homens enquanto outros olham para outro lado na distração mais perfeita. O número dos “desinteressados” era vertiginoso em comparação com o dos interessados.
O que caracterizava a história era a quantidade de pessoas que não se interessavam pela desgraça dos outros. Algumas vezes os desinteressados também se tornavam vítimas. Mas passava-se tudo no meio da distração geral e uma coisa compensava a outra. Hoje toda a gente faz menção de se interessar. Nas salas do palácio as testemunhas voltam-se de súbito para o flagelado.
*Albert Camus
O que caracterizava a história era a quantidade de pessoas que não se interessavam pela desgraça dos outros. Algumas vezes os desinteressados também se tornavam vítimas. Mas passava-se tudo no meio da distração geral e uma coisa compensava a outra. Hoje toda a gente faz menção de se interessar. Nas salas do palácio as testemunhas voltam-se de súbito para o flagelado.
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Apresentação do Corpo
Deslocações de ar, de palavras, partes do corpo
deslocações de sentido nas partes do corpo.
As ribeiras tremem na base das montanhas —
geladas, de costas,
as montanhas tremem sobre as águas deslocadas de repente.
Os animais apoiam-se no seu próprio sangue.
As flores apoiam-se na sua própria cor.
As idades apoiam-se na sua própria memória.
E o sono desloca-se da terra para o coração.
Vive-se com o coração a tremer
como uma montanha sobre ribeiras de luz —
e depois a treva desloca-se da idade para o coração
como um lugar inteiro.
E um dia os animais passam junto aos lençóis estendidos,
e a sua passagem queima a brancura
exposta a todas as deslocações.
Então candeias e papoulas deslocam-se sobre imagens cheias de patas —
e fechamos os olhos para a terrível dor da carne,
respiramos mal,
trememos apoiados no nosso próprio terror.
(...)
O dia apoia-se no seu próprio movimento.
O peixe apoia-se na sua própria submersão.
O amor apoia-se no seu próprio êxtase.
E as vozes apoiam-se no seu próprio som.
Apenas as flores se apoiam no perfume veloz.
Apenas os corpos se apoiam nas flores que eles próprios são —
atados como ramos de um cego e amargo e monstruoso e veloz perfume,
como um perfume de corpos.
As ribeira de luz respiram a prumo.
As ribeiras de treva respiram a prumo.
Vive-se a tremer com o pavor e a glória.
Vive-se de uma ponta à outra o extremo amor, o amor,
e a solidão como um lugar inteiro.
(...)
Alguém ferve pela luz adiante até entrar nas trevas
e ficar respirando nas trevas.
Um perfume de esperma.
Um perfume de salsa.
Um perfume de enxofre que estonteia.
Alguém se transforma numa coisa inominável.
(…)
*Herberto Helder
deslocações de sentido nas partes do corpo.
As ribeiras tremem na base das montanhas —
geladas, de costas,
as montanhas tremem sobre as águas deslocadas de repente.
Os animais apoiam-se no seu próprio sangue.
As flores apoiam-se na sua própria cor.
As idades apoiam-se na sua própria memória.
E o sono desloca-se da terra para o coração.
Vive-se com o coração a tremer
como uma montanha sobre ribeiras de luz —
e depois a treva desloca-se da idade para o coração
como um lugar inteiro.
E um dia os animais passam junto aos lençóis estendidos,
e a sua passagem queima a brancura
exposta a todas as deslocações.
Então candeias e papoulas deslocam-se sobre imagens cheias de patas —
e fechamos os olhos para a terrível dor da carne,
respiramos mal,
trememos apoiados no nosso próprio terror.
(...)
O dia apoia-se no seu próprio movimento.
O peixe apoia-se na sua própria submersão.
O amor apoia-se no seu próprio êxtase.
E as vozes apoiam-se no seu próprio som.
Apenas as flores se apoiam no perfume veloz.
Apenas os corpos se apoiam nas flores que eles próprios são —
atados como ramos de um cego e amargo e monstruoso e veloz perfume,
como um perfume de corpos.
As ribeira de luz respiram a prumo.
As ribeiras de treva respiram a prumo.
Vive-se a tremer com o pavor e a glória.
Vive-se de uma ponta à outra o extremo amor, o amor,
e a solidão como um lugar inteiro.
(...)
Alguém ferve pela luz adiante até entrar nas trevas
e ficar respirando nas trevas.
Um perfume de esperma.
Um perfume de salsa.
Um perfume de enxofre que estonteia.
Alguém se transforma numa coisa inominável.
(…)
*Herberto Helder
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