Para eliminar as ambigüidades associadas à palavra "arte" temos de olhar para a sua história. O sentido estético da palavra, o sentido que nos diz aqui respeito, é de origem muito recente. Ars em latim antigo, como em grego, quer dizer algo muito diferente. Quer dizer um ofício ou tipo especializado de competência, como a carpintaria ou a ferraria ou a medicina. Os gregos e os romanos não tinham concepção do que chamamos "arte" como algo diferente de um ofício; o que chamamos "arte" era por eles encarado meramente como um grupo de ofícios, como o ofício da poesia (ars poetica), que entendiam, por vezes sem dúvida com algumas apreensões, como em princípio precisamente como a carpintaria e tudo o resto, diferindo de cada um desses ofícios apenas do mesmo gênero de modo em que estes diferem entre si.
É difícil darmo-nos conta deste fato, e ainda mais difícil darmo-nos conta das suas implicações. Se as pessoas não têm uma palavra para um certo tipo de coisa, é porque não estão cientes dela como uma coisa distinta. Porque admiramos a arte dos gregos antigos, supomos naturalmente que eles a admiravam com o mesmo tipo de espírito que nós. Mas nós admiramo-la como um tipo de arte, carregando consigo a palavra "arte" todas as implicações sutis e elaboradas da consciência estética européia moderna. Podemos estar perfeitamente certos que os gregos não a admiravam desse modo. Abordavam-na de outro ponto de vista. Como o faziam, podemos talvez descobri-lo lendo o que pessoas como Platão escreveram sobre isso; mas não sem grandes dificuldades, porque a primeira coisa que qualquer leitor moderno faz, quando lê o que Platão tem a dizer sobre a poesia, é pressupor que Platão está a descrever uma experiência estética semelhante à nossa. A segunda coisa que faz é perder a paciência porque Platão a descreve tão mal. Com a maior parte dos leitores não há uma terceira fase.
Ars no latim medieval, assim como "arte" no inglês moderno primordial, que tomou de empréstimo tanto a palavra como o sentido, queria dizer qualquer forma especial de saber livresco, como a gramática ou a lógica, a magia ou a astrologia. É esse ainda o que quer dizer no tempo de Shakespeare: "repousa, minha arte", profere Próspero, pondo de lado a sua toga de mágico. Mas a renascença, primeiro em Itália e depois noutros países, restabeleceu o significado antigo; e os artistas renascentistas, como os do mundo antigo, encaravam-se na verdade a si mesmos como artífices. Não foi senão no séc. XVII que se começou a desenredar os problemas e concepções do estético dos do técnico ou da filosofia do ofício. No final do séc. XVIII, esse desenredar tinha sido tão completo que estabeleceu uma distinção entre as belas artes e as artes úteis; sendo que em inglês se chamava fine arts às primeiras, mas não no sentido de serem delicadas ou de exigirem habilidade, mas no sentido de serem belas (les beaux arts, le belle arti, die schöne Kunst). No séc. XIX esta expressão, abreviada eliminando o epíteto e generalizada substituindo o plural distributivo pelo singular, tornou-se "arte".
Neste ponto, a separação entre a arte e o ofício ficou completa, em termos teóricos. Mas só em termos teóricos. O novo uso da palavra "arte" é uma bandeira colocada no cume de uma montanha pelos primeiros conquistadores; não prova que o cume está efetivamente ocupado.
*R. G. Collingwood
quinta-feira, 9 de julho de 2009
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"Só a arte permite a realização de tudo o que na realidade a vida recusa ao homem " [Goethe]
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