terça-feira, 19 de maio de 2009

Beleza, contemplação e desejo

Contemplação e desejo

É (...) verdade que os objetos do juízo estético e do desejo sexual podem ser ambos descritos como belos, mesmo se eles fazem surgir interesses radicalmente diferentes naquele que os descreve como tal. Uma pessoa, ao deparar-se com o rosto de um homem de idade, cheio de interessantes rugas e pregas, mas de olhar distinto e plácido, pode descrevê-lo como belo. No entanto, não entendemos o juízo da mesma maneira na exclamação ‘Ela é uma beleza!’, proferida por um jovem impetuoso ao olhar para uma moça. O jovem vai atrás dessa moça, deseja-a, não apenas no sentido de querer olhar para ela, mas porque quer abraçá-la e beijá-la. O ato sexual é descrito como a ‘consumação’ deste tipo de desejo – embora não devamos pensar que seja necessariamente aquilo que à partida se quer, ou que o ato sexual faça desaparecer o desejo, tal como beber um copo de água faz desaparecer o desejo de beber água.
No caso do belo ancião, não há este gênero de ‘ir atrás’: nenhuma segunda intenção, nenhum desejo de possuir o (ou, de alguma maneira, de retirar algum benefício do) belo objeto. O rosto do homem de idade tem, para nós, significado, e se procuramos alguma satisfação, encontramo-la nesse rosto, na coisa que contemplamos e no ato de contemplação. É seguramente absurdo pensar que este estado de espírito é igual ao do jovem empolgado que procura a conquista. Quando, no meio do desejo sexual, contemplamos a beleza de quem é a nossa companhia, afastamo-nos do nosso desejo, como que o absorvendo numa intenção mais alargada e menos imediatamente sensual. Este é, decerto, o significado metafísico do olhar erótico: ele é uma procura de conhecimento – um pedido para que outra pessoa brilhe diante de nós, na sua forma sensória, dando-se assim a conhecer.

Por outro lado, não há dúvida de que a beleza estimula o desejo no momento de excitação. Significa isto que o nosso desejo é dirigido à beleza de outro? Tem esse desejo a ver com essa beleza? O que se pode fazer com a beleza de outra pessoa? O amante saciado é tão incapaz de possuir a beleza do seu amado, quanto aquele que sem esperança a observa à distância. Esta é uma das ideias que inspirou a teoria de Platão. O que nos instiga, na atração sexual, é algo que pode ser contemplado, mas nunca possuído. O nosso desejo pode ser consumado e temporariamente extinto, mas ele não é consumado pela posse da coisa que o inspira. Esta permanece sempre para além do nosso alcance - o ser do outro que não pode jamais ser partilhado.



Corpos belos

Ninguém mais do que Platão estava consciente da tentação que jaz emaranhada no coração do desejo – a tentação de separar o nosso interesse da pessoa e ligá-lo apenas ao corpo, pondo de lado a experiência moralmente exigente de possuir o outro como indivíduo livre, tratando-o, em vez disso, como um mero instrumento do nosso prazer localizado. Platão não se referiu a esta ideia exatamente desta maneira, mas ela está subjacente a todos os seus escritos sobre os temas da beleza e do desejo. Platão acreditava que há uma forma básica de desejo, que tem em mira o corpo; e uma forma mais elevada, que tem em mira a alma e – através desta – a esfera eterna da qual os seres racionais descendem em última análise.

Não temos de aceitar esta concepção metafísica para reconhecer o elemento de verdade presente no argumento de Platão. Há uma distinção, familiar a todos, entre um interesse na carne de uma pessoa e um interesse na pessoa enquanto incorporada. Um corpo é um conjunto de realidades corpóreas; uma pessoa incorporada é um ser livre revelado pela carne. Quando falamos de um belo corpo referimo-nos à bela incorporação de uma pessoa e não ao corpo considerado meramente como tal.

Isto torna-se evidente se centrarmos a nossa atenção numa pequena parte do corpo, digamos, no olho ou na boca. Podemos ver a boca apenas como uma abertura, um buraco na carne, pelo qual se engolem coisas e do qual coisas emergem. Um cirurgião pode ver a boca desse modo, durante o tratamento de uma doença. Não é essa a maneira pela qual nós vemos a boca quando estamos face a face com outra pessoa. A boca não é, para nós, uma abertura através da qual emergem sons, mas uma coisa que fala, uma continuidade do ‘eu’, do qual é porta-voz. Beijar essa boca não é colocar uma parte do corpo contra outra, mas tocar a outra pessoa no seu próprio ser. Por isso, o beijo compromete – é um movimento de um eu para outro eu e o chamar do outro à superfície do seu ser.

As maneiras à mesa ajudam a manter a percepção da boca como uma das janelas da alma, a despeito do ato de comer. É por isto que as pessoas procuram não falar com a boca cheia ou deitar comida da boca para o prato. É por isto que os garfos e os pauzinhos foram inventados e que os africanos, quando comem com as mãos, dão uma forma graciosa às suas mãos para que a comida passe pela boca sem ser notada. Assim, ao ingerir-se a comida, a boca retém a sua dimensão sociável.

Estes são fenômenos familiares, embora descrevê-los não seja fácil. Recorde-se a náusea que se sente quando – por qualquer razão – vemos de repente um pedaço de carne onde até esse momento viramos uma pessoa encarnada. É como se nesse instante o corpo se tornasse opaco. O ser livre desapareceu por detrás da sua própria carne, carne essa que já não é a pessoa, mas um simples objeto, um instrumento. Quando este eclipse da pessoa pelo seu corpo é propositadamente produzido, falamos de obscenidade. O gesto obsceno é o gesto que exibe o corpo como puro corpo, destruindo assim a experiência da incorporação. Repugna-nos a obscenidade pela mesma razão que repugnava a Platão a lascívia física que envolve, por assim dizer, o eclipse da alma pelo corpo.

Estes pensamentos sugerem algo de importante acerca da beleza física. A beleza distintiva do corpo humano deriva da sua natureza enquanto incorporação. A sua beleza não é a beleza de uma boneca e é mais do que questão de forma ou proporção. Quando encontramos beleza humana numa estátua, como o Apollo Belvedere ou a Daphne de Bernini, o que está representado é a beleza humana – carne animada pela alma individual, expressando individualidade em todas as suas partes. Quando o herói do conto de Hoffmann se apaixona pela boneca, Olímpia, o efeito tragicómico deve-se inteiramente ao fato de a beleza de Olímpia ser meramente imaginada, desaparecendo à medida que o mecanismo perde a corda.

Tudo isto tem enorme significado, como mostrarei mais à frente, na discussão sobre a arte erótica. Mas chamo desde já a atenção para uma observação importante. Quer suscite contemplação, quer induza o desejo, a beleza humana é vista em termos pessoais. Ela reside especialmente naqueles traços – a face, os olhos, os lábios, as mãos – que atraem o nosso olhar no curso das relações pessoais, através das quais nos relacionamos entre nós, eu para eu. Apesar das modas no que toca à beleza humana, e apesar de o corpo ser embelezado de diferentes maneiras em diferentes culturas, os olhos, a boca e as mãos têm um poder de atração universal, pois é por estes traços que a alma do outro brilha para nós e se deixa conhecer.

*Roger Scruton, Beauty (Oxford, 2009, pp. 42-3 e 47-48). Tradução de Carlos Marques (Adaptado).

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